Wednesday, 04 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1316

Ecos de uma história mal resolvida

Ele voltou. Quatro meses depois do balanço – extremamente negativo – intitulado ‘Agora eles nos contam’, sobre a cobertura do New York Times antes da guerra dos EUA ao Iraque (edição de 26/2), Michael Massing está de volta à revista The New York Review of Books para afligir mais um pouco o já sofrido jornalão e alguns de seus concorrentes.

Em ‘Impróprio para publicação’ [referência ao slogan do Times, ‘All the news that fit to print’, em tradução livre, todas as notícias dignas de publicação], edição de 24/6, Massing começa pela retomada de sua referência anterior a Bob ‘Watergate’ Woodward, cujo livro mais recente, Plano de ataque, contém trecho revelador sobre o comportamento da imprensa às vésperas da guerra. Um resumo: em meados de março Woodward ouvira de três fontes diferentes que as alegadas provas do arsenal de armas de destruição em massa (ADM) no Iraque eram circunstanciais. Walter Pincus, seu colega no Washington Post, apurara o mesmo com outras fontes. Woodward escreveu então um esboço de matéria, considerado forte demais por um editor do Post. Em 16 de março, Pincus assinou reportagem bem mais leve em páginas internas. Agora, Woodward acha que deveria ter forçado a barra para a matéria sair na primeira página, conta Massing.

Analisando o método de Woodward, Massing diz que, como a maioria dos livros do famoso repórter, Plano de ataque contém muita informação que, se divulgada ‘em tempo real’, poderia ter tido efeito no curso dos acontecimentos. Afinal, ele era livre para revelar as dúvidas de suas fontes. Sua decisão de não publicá-las, afirma Massing, é uma evidência a mais da relutância do Post (e de outras empresas de mídia) em desafiar as alegações da Casa Branca.

Ao entrar em seu tema favorito, as falhas do New York Times, Massing comenta que o detalhado mea-culpa de 26/5 [ver remissão abaixo] do jornalão merece crédito – e até incorpora muitas críticas presentes no artigo dele de fevereiro –, mas também condenação por não citar os repórteres que pisaram na bola, especialmente Judith Miller e Michael Gordon. O pedido de desculpas prefere culpar ‘editores de vários níveis’, muitos dos quais partiram com Howell Raines, o editor-executivo defenestrado pelo escândalo Jayson Blair.

Correndo da raia

Para Massing, apesar do mea-culpa o jornal continuou falhando na cobertura da guerra, inclusive na das torturas a prisioneiros iraquianos em Abu Graib. Nesse episódio, o Times errou não somente porque demorou a publicar as fotos dos torturados ou a relatar os fatos na primeira página – o erro maior foi ter destacado o assunto somente a partir de declarações de Bush sobre as denúncias. ‘A primeira matéria de capa do Times sobre o tema não tratou dos abusos propriamente ditos, mas da resposta do presidente a eles’, cutuca. O articulista vê nestas seguidas hesitações uma tendência a sacar da capa as notícias prejudiciais ao governo Bush. Ele enumera vários exemplos da lentidão do jornal na divulgação de fatos importantes: o pedido da Casa Branca de mais 25 bilhões de dólares ao Congresso para o esforço de guerra; as antigas denúncias da Cruz Vermelha sobre maus-tratos a prisioneiros iraquianos; as disputas internas na área militar sobre a condução da guerra – tudo publicado em outros veículos.

‘Complacente e cauteloso’, resumiu Massing ao descrever o pouco ímpeto do jornal na apuração de fatos novos, confirmando opinião de Howell Raines de que o Times chove muito no molhado – e constantemente fica atrás de seu concorrente maior, o Post [remissão abaixo]. Um, atrasado e letárgico; outro, astuto e agressivo. Nem por isso o Post escapa da crítica. Massing cita coluna de 9/5 do ombudsman Michael Getler [remissão abaixo], que considerou ‘lenta’ a cobertura do jornal sobre Abu Graib: o Comando Central militar dos EUA divulgara, em 16/1/2004, relatório sobre maus tratos na prisão. Na mesma semana a CNN anunciou que havia fotografias dos abusos. Mas só após reportagem no 60 Minutes II, mais de três meses depois, é que o Post entrou no assunto.

Assim, conclui Massing a primeira parte de seu artigo, quanto mais cruel ficava a guerra no Iraque mais a imprensa americana corria da raia. Um reflexo, segundo ele, de limitações estruturais impostas ao enfoque dos jornalistas sobre a guerra.

Mentalmente embedded

No início de abril, quando os combates explodiram em Faluja, os correspondentes americanos pediram proteção aos fuzileiros lá acantonados, numa repetição do que ocorrera na invasão, quando 600 jornalistas foram agregados [embedded] às tropas. Massing cita matéria impressionante da repórter Pamela Constable, do Washington Post , um relato cheio de angústias, silêncios, suposições – e muita falta de informação. Como antes, os jornalistas embedded estavam sujeitos às regras militares, e nada podiam apurar.

Mas a al-Jazira, a TV a cabo do Catar, tinha lá um correspondente, que diversas vezes ao dia ia ao ar com informes dramáticos da luta. Os sons amplificados pelos alto-falantes, que para Pamela seriam cânticos do Corão, eram na verdade apelos aflitos por ambulâncias e à resistência da população. Massing não tenciona criticar Pamela, até a elogia e a seus despachos. Ressalva que só quis destacar que as informações dos americanos eram filtradas pelos militares, enquanto os árabes informavam com independência (‘ainda que com sensacionalismo’). Massing reconhece que não está sendo fácil para o repórter americano apurar matéria em território notoriamente inimigo. E Pamela tem mostrado sempre essas dificuldades.

Daí a imprensa dos EUA apelar a profissionais iraquianos, que se movem com mais facilidade. À parte as considerações práticas, porém, Massing acredita que os jornalistas parecem embedded nas tropas não apenas fisicamente, mas mentalmente. Ele cita uma perturbadora entrevista à NPR de Tony Perry, repórter do Los Angeles Times embedded numa unidade de fuzileiros que ocupou os apartamentos de um prédio civil na periferia de Faluja. Depois de explicações desconcertantes para o fato de um jornalista invadir uma prosaica residência iraquiana, ele acrescenta que foi bom para os civis saírem dali, porque o prédio seria alvo das bombas iraquianas…

Recomendações concretas

Massing não perdoa. ‘Assim, os americanos expulsaram os iraquianos de suas casas para o próprio bem deles, e eles foram alegremente juntar-se a seus parentes tribais em áreas rurais, em vez de serem trancados num campo de refugiados.’ E não fica nisso não: o autor foi atrás das matérias de Perry no LA Times. Não deu outra: odes aos fuzileiros, com o detalhe de que em nenhuma delas Perry indica estar embedded. Para Massing, matéria de agregado deve conter esta informação nos créditos. Mas poucos jornais o fazem.

O articulista critica (de novo) o NYT pela matéria ‘Agentes de Hussein por trás dos ataques, descobre o Pentágono’ (observe a escolha da palavra ‘descobre’, em lugar de ‘alega’ ou ‘diz’, espicaça Massing.). Segundo o Pentágono, a resistência no Iraque não é espontânea, mas liderada por guerrilheiros (de 1.500 a 2 mil) organizados, inclusive ex-integrantes da guarda republicana de Saddam Hussein. O NYT encampa a tese. Massing lembra raro despacho de maio da Newsweek, na qual Joshua Hammer conta ter sido detido por três guerrilheiros. Um deles era um ex-universitário que apoiara a invasão americana, mas mudou de lado com a ocupação. Após alguns exemplos da visão unilateral da mídia americana sobre a guerra, Massing menciona sua conversa com Youssef Ibrahimum, experiente ex-correspondente de grandes publicações americanas no Oriente Médio, que não deixa de assistir à al-Jazira (‘a Fox News dos árabes’, define) para ter uma visão dos dois lados – porque assim aprendeu na escola americana de jornalismo. Detalhe: Ibrahimum é egípcio.

Massing encerra o texto com uma recomendação concreta: se a mídia americana quisesse verdadeiramente cobrir os eventos internos do Iraque deveria incorporar mais matérias e imagens da mídia internacional. Al-Jazira, al-Arabia e outras estações de língua árabe têm forte presença na região. Empresas européias de mídia como BBC, The Guardian, Financial Times e Le Monde mantêm correspondentes que falam árabe e conhecem bem o Oriente Médio; Reuters, AP e Agence France-Presse preservam muitos correspondentes em locais a que os americanos não chegam.

É notável, diz ele, como a visão desse pessoal pouco aparece na mídia americana.