Quando fala baixo, reza. Seus silêncios cheios de mistério levam o interlocutor para a missa. Não se sabe o que pesa mais ali, as palavras ou as pausas. É como se Baixo, apelido de Fernando Faro impresso pelo cantor Cassiano nos anos 70, estivesse sempre no banquinho do Ensaio, o programa da TV Cultura que criou há 40 anos com uma linguagem que extermina a figura do entrevistador para atingir o centro do entrevistado. Faro, aos 83 anos e com mais de 700 entrevistas nas costas, viu a história de três gerações ser contada ali mesmo, à sua frente. A forma de fazer isso nunca mudou e, segundo ele, nunca mudará. “Mais do que um ruído, o entrevistador é um barulho”, diz. Até quando quer seguir? “Até quando houver música.” E se a música acabar? “Ficarão os ossos.” E imaginar que tudo começou com a entrevista de um bandido que, por pouco, não lhe meteu uma bala na cabeça.
“Eu acho que o entrevistador é um ruído”
Que história é essa de criar o programa depois de entrevistar um bandido?
Fernando Faro– Era 1958, 1959, eu trabalhava em um jornal de televisão e havia dois bandidos famosos, Promessinha e Jorginho, que eu queria muito entrevistar. Um amigo marcou com eles em um restaurante, mas cheguei um pouco depois de Jorginho ir embora. Fui até o barraco dele, a luz estava acesa, gritei e nada. No dia seguinte, Jorge foi preso e eu fui até a delegacia falar com ele. A polícia não deixou eu entrar com o equipamento de gravação. Então, passei o microfone para gravar pelo menos as respostas do Jorge, que estava na cela.
E ele falou com você?
F.F.– Ele disse: “Rapaz, quase apaguei você ontem. Você me chamou, eu estava lá, quase te apaguei.” Aí eu perguntei: “É verdade que você passou com um carro por cima de um quitandeiro japonês?” E ele: “É, mas ele já estava morto” (risos). Aí ficamos conversando. Peguei esse material, só com o áudio dele, escutei e disse: não preciso mais de nada. E aí veio a ideia do Ensaio.
E há algum momento mais marcante nesses anos todos de Ensaio?
F.F.– Uma vez Chico Buarque chegou à TV Tupi de fusquinha. Disse: “Baixo, queria te apresentar meu amigo aqui, ele é cantor, eu não sou, entrevista ele, vai.” O “ele” era o Taiguara.
Com o Ensaio, você tirou a figura do entrevistador de cena. Foi um golpe no ego do jornalista…
F.F.– Eu acho que o entrevistador é um ruído. Mais que isso, é um barulho. Quando ele está lá, o depoimento fica dividido. Ora, se eu pergunto a um artista “Onde você nasceu?”, ele começa a resposta dizendo “Eu nasci em tal lugar.” Logo, a pergunta deixa tudo redundante.
“Com a Beth Carvalho tive uma experiência ruim”
E como os artistas reagem?
F.F.– Eu tive mais dificuldades com o Milton Nascimento quando fizemos a primeira entrevista, em 1963. Ele era muito tímido. Eu dizia assim: “Você nasceu no Rio?” E ele: “É” (silêncio). E eu: “Mas agora mora em Três Pontas?” E ele: “É” (silêncio). Então era uma coisa monossilábica. Agora o Milton é um orador.
E quem o senhor não conseguiu entrevistar?
F.F.– A Hebe Camargo. Quando a convidei para o programa, ela disse: “Baixinho, não posso fazer seu programa porque não aguento uma câmera perto de mim. Meu rosto não aguenta aquela sua linguagem.”
Roberto Carlos?
F.F.– Nem pensei. Ele sempre foi distante, era uma coisa à qual eu não tinha acesso.
Existe pergunta proibida?
F.F.– Se precisar perguntar, eu pergunto. Mas passamos por tudo. O Ney Matogrosso é o artista mais profissional que conheci. Já com a Beth Carvalho tive uma experiência ruim. O programa estava marcado para as 15 horas e ela chegou às 22.
“Conhecer é lembrar”
E Tim Maia?
F.F.– Chegou antes (risos). Ele me liga de repente, às 11h30, perguntando se eu não ia gravar o programa. Aí eu fui pra lá. E ele dizia assim: “Baixinho, me pergunta o que você quiser, só não me pergunte do Cassiano nem do Boni.” Foi lindo o programa. Ele cantava dizendo “agora todo mundo” e o auditório não tinha ninguém (risos).
Já que não tem pergunta proibida: parece que o presidente da Fundação Padre Anchieta, João Sayad, não sabia bem quem o senhor era. Isso o chateou?
F.F.– Eu fiquei meio chocado, acho que ele deveria saber… Aí ele me convidou para uma reunião depois. E eu o achei até simpático (risos).
O senhor fará perguntas até quando?
F.F.– Se eu quero continuar com o programa? Quero. E sabe por quê? Porque a música brasileira se renova. Eu trouxe o Vinícius e agora trago o Marcelo Jeneci. Vou até o fim, a não ser que a música acabe. E, mesmo se acabar, os ossos ficarão por aqui.
Aos 83 anos, onde o senhor passa mais tempo: no passado, no presente ou no futuro?
F.F.– Foi Platão quem disse que conhecer é lembrar.