Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Quando os jornais acusam os suspeitos errados

Houve uma cobertura excepcional das bombas da maratona de Boston e uma posterior caça às bruxas, tanto pela grande mídia quanto pela independente. Mas um aspecto, em especial, que se destacou entre muitos comentaristas foi o papel desempenhado pela mídia social. Para muita gente na área de Boston, plataformas como o Twitter e o Reddit tornaram-se fundamentais para que a comunidade pudesse expressar suas experiências e reações – raiva, medo ou orações. Na área de Watertown, as mídias sociais assumiram outro aspecto, como maneira de nos comunicarmos – sentados e trancados em nossas casas – em busca de notícias e apoio.

No entanto, também houve controvérsia em relação às mídias sociais – em especial, preocupações com a “caça às bruxas” entre usuários destas mídias quando os suspeitos ainda eram desconhecidos. Embora esses problemas não se limitassem às mídias sociais, houve comentários significativos sobre como elas ajudaram ou dificultaram os esforços de aplicação da lei e a compreensão do público numa situação de crise.

À medida que tentamos avaliar em perspectiva os acontecimentos do mês passado, pode ser útil lembrar que está longe de ser a primeira vez que reportagens sobre ações de terror criam equívocos e identificações erradas. Pelo contrário: o impulso natural em buscar identificar os autores de atos horrendos o mais rapidamente possível, muitas vezes leva à divulgação de esforços legais que atingem pessoas posteriormente julgadas inocentes de qualquer irregularidade. O exame dessas situações – e de suas consequências judiciais – pode revelar se estes são temas únicos que podem ser atribuídos às mídias sociais ou se são questões que geralmente surgem em reportagens após ataques terroristas. Abaixo, três desses casos.

A bomba de Lockerbie

No dia 21 de dezembro de 1988, um explosivo detonou o voo 103 da Pan American sobre a cidade de Lockerbie, na Escócia, resultando na morte de todos os passageiros e tripulação, assim como outras pessoas, no solo, mortas pelos destroços. No dia 31 de janeiro de 2001, um oficial do serviço secreto da Líbia foi condenado e preso, acusado de ter colocado a bomba no avião. Nos 12 anos de intervalo, houve uma ampla discussão e especulação sobre quem seria o responsável pela bomba, com o governo da Líbia no centro da principal teoria – mas com muitas outras teorias alternativas.

Uma delas foi publicada como matéria de capa da revista Time, em abril de 1992, e sugeria que a bomba era coisa de um grupo palestino procurando eliminar agentes de contraterrorismo norte-americanos que estariam no voo. Segundo o artigo, o grupo palestino teria identificado o voo que levava os agentes norte-americanos com a ajuda de um agente duplo (dos EUA/Irã) chamado David Lovejoy. A revista também publicava uma fotografia do suposto Lovejoy, que teria sido obtida de uma declaração sob juramento numa ação civil relacionada ao atentado. A declaração dizia que uma fonte anônima identificara Lovejoy como o homem da imagem.

Na realidade, a fotografia era de outro homem, Michael Schafer. O Tribunal de Recursos da 11ª Vara dos Estados Unidos descreveria o erro posteriormente dizendo que “o artigo da Time, portanto, identificou equivocadamente Schafer, que então trabalhava como zelador em Austell, estado da Geórgia, como traidor do governo dos Estados Unidos e participante do atentado à bomba do voo 103 da Pan American”. Schafer pediu uma retratação da Time, que a revista publicou mais de um mês depois. Ele também processou a empresa Time Inc. por difamação. O júri votou a favor da Time em menos de uma hora. Schafer entrou com recurso e o tribunal concedeu um novo julgamento por considerar que as instruções passadas ao júri eram vagas no que se referia a se Schafer apenas tinha de provar que a revista fora negligente ao apurar os fatos (o padrão adequado de responsabilidade) ou se houvera algum intuito por parte da Time de prejudicar alguém. O tribunal deliberou que seria concedido à revista Time o direito de argumentar, num novo julgamento, que não fora negligente ao confiar na declaração juramentada do advogado.

A Time chegou a um acordo com Schafer antes do novo julgamento.

A bomba no Parque Olímpico

No dia 27 de julho de 1996, uma bomba explodiu no Parque Olímpico Centenário em Atlanta, matando uma pessoa e ferindo mais de cem. Nos três dias que se seguiram, a cobertura da mídia identificou Richard Jewell, guarda de segurança do Parque Olímpico, como herói do evento, com base em seu relato sobre um embrulho suspeito, que ninguém esperava, e a diminuição do número de vítimas devido a seus esforços para evacuar as pessoas que se encontravam na área próxima ao embrulho. No dia 30, entretanto, o Atlanta Journal-Constitution identificou Jewell como “foco” da investigação que o FBI fazia do evento, o que deu início na imprensa a análises penetrantes e detalhadas sobre Jewell, seu passado e sua potencial conexão com a bomba.

Em outubro de 1996, Jewell foi isentado de qualquer responsabilidade em relação à bomba e o FBI divulgou uma declaração oficial, o que é pouco comum, dizendo que ele deixara de ser suspeito. (Em 2003, Eric Robert Rudolph foi julgado pelo atentado e condenado à prisão perpétua.) Jewell, na época, entrou com processos de difamação contra vários veículos da mídia, incluindo a NBC, a CNN, o New York Post e a Cox Enterprises, empresa responsável pelo Atlanta Journal-Constitution.

O caso contra o New York Post

Richard Jewell processou o New York Post em Nova York em relação a uma série de artigos, fotografias, manchetes e outros conteúdos divulgados pelo jornal entre 31 de julho e 2 de agosto de 1996. Os artigos continham informações variadas sobre Jewell, incluindo declarações sobre sua experiência profissional, seu caráter e as crenças de vários indivíduos e organizações (inclusive legais) sobre a probabilidade de Jewell ser responsável pela bomba. O Post tentou por fim ao caso argumentando, entre outras coisas, que as declarações em seus inúmeros artigos eram basicamente verdadeiras, e não difamatórias contra Jewell e/ou suas opiniões.

Em outubro de 1998, um tribunal concordou com parte da moção do Post e negou a outra parte. O tribunal manteve as declarações de que Jewell era o “principal” suspeito na investigação do FBI. Jewell reconheceu que era suspeito, mas negou que fosse o “principal” suspeito; o tribunal entendeu que se tratava de uma distinção sem uma diferença significativa em termos do impacto da cobertura do Post.

Em relação ao significado difamatório, muitas das declarações nos artigos do Post sobre as quais Jewell se queixou eram decididamente inócuas, como, por exemplo, a de que ele era “uma pessoa muito convencional que exagerava em tudo o que fazia” ou que estava “louco para aparecer como herói”. No entanto, ao fazer a leitura de tais declarações no contexto, o tribunal achou que essas características eram apresentadas em apoio à especulação, pelo Post e outros, de que Jewell era responsável pela bomba; assim sendo, o tribunal concedeu que as declarações tinham um significado difamatório. Do mesmo modo, o tribunal entendeu que as declarações de que o perfil de Jewell “se encaixava no do responsável pela bomba” não eram inócuas; no contexto, as declarações indicavam a convicção de que Jewell era o culpado. O tribunal manteve que o contexto dos artigos do New York Post era esse porque, para um leitor razoável, pelo menos algumas das declarações eram mera especulação ou opinião:

“Não esforça o conceito de advertência judicial… perceber que todos esperavam que o(s) indivíduo(s) responsável(is) pelo crime fossem rapidamente trazidos à justiça… Considerando a sucessão de acontecimentos e publicações, um leitor razoável teria compreendido a informação sobre o envolvimento de Jewell no atentado à bomba como tendo sido de natureza preliminar… A natureza preliminar de uma informação divulgada é um fator contextual que apoia – mas definitivamente não determina – a impressão de que as declarações são opinativas.”

Mas o tribunal também reconheceu considerações compensatórias:

“O fato simples é que estas declarações foram publicadas num jornal… Uma coluna de jornal é o produto de alguma deliberação, e não um momento de pique. Antes da publicação, passa pelas mãos de editores profissionais e, assim, carrega consigo a aura de credibilidade e autoridade daquele jornal específico e da profissão. Estas, sem dúvida, são circunstâncias que incentivam o leitor razoável a ser menos cético e mais disposto a concluir que a reportagem está afirmando ou sugerindo fatos recolhidos por um coletor de notícias profissional e repórter.”

O tribunal entendeu que, embora muitas declarações nos artigos fossem articuladas como especulação ou como linguagem retórica, outras foram afirmadas como fato. Além disso, o tribunal entendeu que muitas das declarações de opinião – como as crenças e especulação de que o perfil de Jewell se encaixava no do autor do atentado – podem significar a criação de falsas implicações do fato. Assim sendo, foi permitido que continuassem as denúncias de difamação na maioria das declarações.

O caso contra o Post foi encerrado em março de 1999 após um acordo cujo valor não foi divulgado.

O caso contra a Cox Enterprises

Jewell processou a Cox Enterprises, publisher do Journal-Constitution, num tribunal do estado da Geórgia, em 1997, em relação a declarações numa série de artigos, semelhante à do New York Post. Estes incluíam uma matéria de última hora que dizia que o FBI considerava Jewell suspeito, discutia de que maneira seu perfil se encaixava com o do responsável pela bomba e afirmava que ele havia buscado a publicidade da imprensa, comparando-o a um famoso serial killer de crianças de Atlanta, já condenado. Nenhum dos artigos do Journal-Constitution revelava as fontes de suas informações sobre a investigação que fazia de Jewell.

Ao contrário do New York Post, o Atlanta Journal-Constitution não fez um acordo com Jewell, continuando a luta judicial até a morte dele, em 2007. O tribunal da Geórgia acabou concedendo uma liminar aos réus em relação a todas as declarações em questão, decisão que foi confirmada pelo Tribunal de Recursos da Geórgia em 2011. Este afirmou que as declarações em questão eram fundamentalmente verdadeiras ou opiniões que não podiam ser comprovadamente falsas. Embora o Tribunal de Recursos tenha avaliado o contexto das declarações em questão de maneira semelhante àquela com que outro tribunal avaliou o caso do New York Post, chegou a um resultado consideravelmente diferente:

“Não podemos concluir que as declarações contidas nos artigos entre 1º de agosto e 4 de agosto, construídas no contexto da totalidade desses artigos e considerando seu significado razoável e natural, correspondam a uma acusação pelos réus de que Jewell tenha colocado a bomba. Ao invés disso, o leitor razoável teria compreendido que a informação seria de natureza preliminar e publicada no começo da fase inicial da atual investigação. Além disso, ambos os artigos não só divulgavam a suspeita de envolvimento de Jewell, como provas que tendem a desmentir essa suspeita. E, finalmente, fica registrado e estabelecido que, à época das publicações, os investigadores suspeitavam, de fato, que Jewell tivesse colocado a bomba e investigavam concretamente essa teoria…”

Embora o artigo de 31 de julho repita a opinião de investigadores que acreditariam que Jewell tivesse feito um telefonema para a polícia, também inclui em seu texto a suposição de opiniões divulgadas. Por exemplo: o artigo expõe aquilo que algumas pessoas descrevem como a abordagem ardorosa de Jewell às suas obrigações legais; expressões de preocupações manifestadas por um ex-empregador de Jewell; sua detenção, no passado, por se fazer passar por um oficial de polícia; e o fato de Jewell possuir uma mochila semelhante àquela em que estava a bomba. Não há nada no artigo que sugira ao leitor quaisquer fatos difamatórios senão aqueles divulgados ao longo do texto, o que, no devido contexto, é obviamente uma reportagem dos primeiros passos de uma investigação intensa e que ainda estava em curso.

O Tribunal de Recursos também entendeu que a comparação feita numa coluna entre Jewell e um famoso serial killer era uma “linguagem vaga, figurativa”, e não um “comentário literal que não possa ser razoavelmente interpretado como uma declaração de fatos concretos sobre uma pessoa”.

A Suprema Corte do estado da Geórgia negou um pedido de revisão da decisão do Tribunal de Recursos no dia 9 de janeiro de 2012, encerrando o caso quase precisamente 15 anos depois de seu começo.

Os ataques de antraz de 2001

Ao longo das várias semanas que se seguiram aos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, um desconhecido enviou pelo correio envelopes contendo pó de antraz para vários veículos da mídia e dois senadores dos EUA, resultando na morte de cinco pessoas e infecção de outras 17. Em 2002, na esteira imediata dos ataques, o colunista Nicholas Kristof, do New York Times, escreveu sobre a forma como o FBI tratou das informações relacionadas a um suspeito específico, chamado de “sr. Z”.

Boa parte dos textos de Kristof era dedicada a uma coleta de informações sobre o sr. Z que indicavam ser ele o responsável pelos ataques. Isso culminou num artigo de 13 de agosto de 2002, no qual Kristof identificou o sr. Z como o dr. Steven Hatfill, um pesquisador e cientista empregado pelo Departamento da Defesa, e afirmou que o FBI deveria “acabar com essa farsa imprópria, inocentando o dr. Hatfill ou prendendo-o”.

Hatfill processou o New York Times num tribunal federal do estado da Virgínia. De início, o tribunal descartou a queixa, considerando que Kristof estava apenas se referindo a uma investigação em curso na qual, à época, Hatfill estava em foco, e teve “o cuidado de desautorizar qualquer conclusão sobre a culpa de Hatfill”. O Tribunal de Recursos da 4ª Vara reverteu o parecer em 2005 e permitiu que o caso prosseguisse. Aquele tribunal rejeitou o argumento do Times de que as colunas eram agnósticas em relação à culpa de Hatfill:

“As colunas não descreveram qualquer outro alvo potencial da investigação e divulgaram informações detalhadas pertinentes unicamente a Hatfill. A partir do momento em que Kristof identificou Hatfill como o sr. Z (e talvez mesmo antes disso), um leitor razoável de suas colunas poderia acreditar que Hatfill tinha o motivo, os meios e a oportunidade para preparar e enviar as cartas com antraz no outono de 2001; que ele tinha uma perícia específica com os tipos de antraz em pó usados nas cartas enviadas; que era comum ele próprio vacinar-se contra antraz; que ele era o principal suspeito da comunidade de biodefesa assim como dos investigadores federais; que ele não fora aprovado em vários testes do polígrafo; que cachorros especialmente treinados haviam ‘respondido energicamente’ a Hatfill, a seu apartamento e ao apartamento de sua namorada, não o fazendo a qualquer outra pessoa ou local; e que Hatfill estaria possivelmente envolvido em outros casos de antraz nos últimos anos. Com base nessas afirmações, um leitor razoável das colunas de Kristof provavelmente concluiria que Hatfill era responsável pelo envio das cartas com antraz em 2001.”

É importante ressaltar que o tribunal não deliberou que as declarações nas colunas eram verdadeiras ou protegidas como declarações de uma opinião de Kristof – e sim, se as declarações poderiam ou não prejudicar a reputação de Hatfill.

Em última instância, as alegações de Hatfill foram recusadas depois que ele foi considerado uma figura pública com objetivos limitados, em conexão com a controvérsia maior sobre a prontidão do governo para ataques bioterroristas. Em decorrência disso, lhe foi pedido que provasse que Kristof publicara as declarações em questão com “malícia concreta”, ou seja, conhecimento subjetivo de sua falsidade ou um alto grau de consciência da provável falsidade. E, como frisou o tribunal, o registro do caso continha “provas consideráveis em apoio à posição do New York Times, de que Kristof na verdade acreditava que Hatfill fosse o principal suspeito”, inclusive uma longa lista de fatos relacionados à investigação do FBI cuja veracidade Hatfill não contestava. Consequentemente, o tribunal decidiu que “nenhum júri razoável poderia achar que Kristof tinha um alto grau de consciência de que o dr. Hatfill não era o responsável pelas cartas com antraz”.

O tribunal aprovou, em juízo sumário, a favor do Times e a Suprema Corte recusou um pedido de jurisprudência, encerrando o caso.

A investigação do FBI terminou com a prisão de um novo suspeito principal, Bruce Edwards Ivins, que cometeu suicídio em 2007. Em 2008, o FBI declarou que Ivins fora o único responsável pelos ataques.

Ecos do passado nos eventos de Boston

A aplicabilidade das conclusões legais finais nos casos acima discutidos é provavelmente limitada no que se refere a processos que surjam em relação aos eventos [da Maratona de Boston]. Embora esses casos invoquem, em geral, princípios da lei de difamação, as interpretações da lei variam de estado para estado. No entanto, os casos acima citados são interessantes no que se refere à divulgação das notícias num ambiente pós-ataque, o que os tribunais consideraram relevante para com questões de responsabilidade e prejuízo.

Aspectos semelhantes – inclusive relatórios de investigações preliminares pela aplicação da lei, confiabilidade em fotografias e outras informações de proveniência incerta e esforços para assumir um trabalho de detetive para deduzir quem eram os responsáveis – podem ser vistos na repercussão dos eventos [em Boston] tanto nas mídias sociais quanto reportagens profissionais. Entre os exemplos, vejamos:

** A reportagem do New York Post de 16 de abril, dizendo que um “cidadão saudita” era um “suspeito em potencial”, fora detido pela polícia perto do local em que uma das bombas explodiu e estava sendo interrogado no hospital feminino de Boston. Posteriormente, a polícia negou que tivesse suspeito algum àquela hora e disse que ninguém havia sido detido, embora reconhecesse que havia sido interrogada uma “pessoa de interesse”; mais tarde, essa pessoa foi isentada de qualquer responsabilidade.

** A identificação por alguns usuários do Reddit (divulgada pela The Atlantic Wire) e por usuários de outros serviços de redes sociais de suspeitos em potencial com base numa investigação independente, e às vezes confusa. Entre estes, encontravam-se um homem numa túnica azul, um homem com um chapéu branco e mais uma pessoa que se afasta do local e que não se sabe se é homem ou mulher. Nenhuma dessas pessoas estava envolvida com as bombas.

** Uma matéria da CNN, de 17 de abril, dizendo que um suspeito de “pele escura” fora preso e a confirmação de uma detenção pela Fox News. Nenhuma detenção fora feita.

** A sequência de fotos de dois homens publicada pelo New York Post em 18 de abril com a manchete de primeira página “HOMENS DAS BOLSAS: Federais procuram estes dois fotografados na maratona de Boston”. Essas fotos tinham circulado entre autoridades da comunidade de aplicação da lei, mas não publicamente, com o objetivo de identificar os dois homens, que acabaram sendo meros espectadores inocentes.

** Uma identificação errada por um usuário do Reddit (divulgada pelo Huffington Post), tarde na noite de 18 de abril, de um indivíduo fotografado na maratona como sendo o estudante Sunil Tripathi, da Universidade de Brown, dado como desaparecido. (Sabe-se, agora, que Tripathi está morto.) Seguiram-se a essa informação as opiniões de outros usuários dizendo que a foto de Tripathi batia com uma das fotos publicamente divulgadas pelas autoridades, o que levou a uma ampla discussão de que Tripathi seria o “suspeito # 2” das bombas. Logicamente, Tripathi não estava envolvido com coisa alguma.

** Mensagem via Twitter (divulgada pela revista The Atlantic), na manhã de 19 de abril: “Sobrenome: Mulugeta, M-U-L-U-G-E-T-A, M, como em Mike Mulugeta”. Aparentemente, isto decorreu da especulação de que um “Mike Mulugeta” era o “suspeito # 1” e combinava com a sugestão do item anterior de que as autoridades haviam identificado Sunil Tripathi como “suspeito # 2”. Aparentemente, não existe “Mike Mulugeta” algum e nem um “Mulugeta” nem Tripathi foram procurados pelas autoridades.

Existem, no entanto, muitas diferenças significativas em relação a eventos anteriores. O mais básico é o marco do tempo, que foi muito acelerado em relação a eventos anteriores. Os artigos indicando suspeitas sobre Richard Jewell circularam três dias depois da bomba no Parque Olímpico e ele foi exonerado mais de dois meses depois. O artigo da revista Time que, sem querer, implicou Michael Schafer foi publicado mais de três anos depois da bomba no voo 103 da Pan Am e a correção demorou mais de um mês para sair publicada. As colunas do New York Times sobre Steven Hatfill começaram em 2002, vários meses depois de terem sido enviados os envelopes com antraz, e Hatfill só foi exonerado pelo governo em 2008. No caso das bombas da maratona de Boston, todo o processo de investigação, suspeita, identificação errada e exoneração demorou menos de uma semana. A identificação dos irmãos Tsarnaev como suspeitos foi divulgada nacionalmente às 8 horas de sexta-feira, 19 de abril.

É claro que isto não significa que as identificações erradas feitas naquela semana não tenham sido devastadoras para as pessoas envolvidas e suas famílias. Mesmo uma breve identificação como suspeito de terrorismo pode causar um tremendo mal-estar, como foi mostrado pelo desespero de um adolescente que queria limpar seu nome devido a uma matéria do New York Post do dia 18 de abril, assim como o aumento do sofrimento da família de Sunil Tripathi, já desesperada com seu desaparecimento. Isto posto, o ritmo dos eventos foi tal que a informação correta foi divulgada em poucos dias, senão em horas, e portanto alguns aspectos desse calvário não foram prolongados.

Uma outra diferença importante entre o comportamento daquela semana – especialmente no Reddit – e incidentes anteriores foi o grau em que a ética de tentar identificar os suspeitos ficou em primeiro plano na discussão. Uma extensão no Reddit discutia como eram apropriados os esforços de identificar suspeitos através da obtenção de informações coletivas, de várias fontes [crowdsourcing], inclusive de presunção de inocência – lições do caso Jewell – e a possibilidade de arruinar a vida de uma pessoa inocente através de juízos apressados. Os usuários também mantiveram uma lista de pessoas declaradas inocentes (vinculada a uma cópia oculta no Google) para limitar o impacto da busca de informações coletivas. A própria arquitetura do Reddit, com seu mecanismo de voto, funciona para eliminar informações sem crédito da vista do público. A equipe do Reddit pediu desculpas publicamente e em particular à família de Sunil Tripathi e outras pessoas afetadas.

Deixarei para outros a discussão sobre a questão da utilidade geral das informações coletivas [crowdsourcing] em situações como estas e se esta prova de transparência e de auto-consciência compensa as consequências da atividade dos usuários. Para perspectivas interessantes e recentes sobre estas questões, veja o texto de Alexis Madrigal para The Atlantic aqui e sua posterior troca de mensagens pelo Twitter com Dan Sinker, do Knight-Mozilla OpenNews Project; este artigo, de James Surowiecki, na revista The New Yorker; e este outro, de Mike Ananny, no Nieman Lab.

Seja da maneira que essas questões forem respondidas, a crítica constante e o desafio às conclusões que são tiradas da cobertura dos eventos daquela semana são significativos. Em eventos anteriores, os leitores não tiveram condições de questionar concretamente, e em público, as informações que recebiam da mídia. Embora as pessoas erroneamente identificadas possam entrar com processos por difamação para fazer um desmentido público das acusações na imprensa, essa tática tem seus perigos. Os processos, por sua natureza, levam as organizações de mídia a fazer todo o possível para defender suas reportagens, provocando a prorrogação do litígio e o querelante pode acabar abandonando a causa e correndo o risco de parecer reconhecer a veracidade da acusação. As mídias sociais proporcionam outro canal de realimentação, permitindo que o público cheque um jornalismo descuidado e especulações sem fundamento. Como comentou Erik Wemple para o Washington Post, “quando a tragédia se abate sobre o país, o Twitter lembra as más reportagens”.

Conclusão

Na esteira de uma tragédia confusa e sem sentido, há um impulso humano fundamental de tentar exercer controle sobre uma situação muitas vezes impenetrável e caótica. Quando a tragédia é causada por uma ação humana, essa tentativa de exercer controle manifesta-se frequentemente como uma tentativa de identificar os responsáveis. Isto nada tem de novo em relação aos eventos daquela semana; as reportagens e discussões públicas feitas durante a repercussão das bombas da maratona apresentam semelhanças surpreendentes com ataques terroristas do passado, quando o atacante era inicialmente desconhecido.

Porém, apesar das semelhanças, as plataformas das mídias sociais permitem que o público se envolva com a informação fragmentada disponível de uma maneira muito mais profunda, como parte da comunidade. Embora seja questionável se essa forma de atividade comunitária é, como um todo, benéfica ou prejudicial, as mídias sociais também proporcionam fóruns onde esses debates podem ocorrer. Isso pode ajudar a melhorar parte das consequências mais nocivas de eventos anteriores, quando a desinformação foi perpetuada por um extenso período antes que o erro fosse publicamente revelado.

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Jeffrey Hermes é diretor do Digital Media Law Project, do Centro Berkman para Internet e Sociedade, de Harvard