Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Editor do Posten desabafa: ‘Respeito é diferente de submissão’

A idéia da publicação das charges do profeta Maomé não era provocar gratuitamente a comunidade muçulmana, e certamente o dinamarquês Jyllands-Posten não pretendia incitar a propagação de manifestações violentas no Oriente Médio. As palavras são de Flemming Rose, editor de Cultura do primeiro jornal a publicar os polêmicos desenhos. ‘Nosso objetivo era apenas desafiar limites auto-impostos de expressão que pareciam estar em ascendência’, explica.

Em artigo no Washington Post [19/2/06], Rose conta como surgiu a idéia dos cartuns do profeta – publicados pela primeira vez no fim de setembro de 2005. Uma série de fatores combinados impulsionou o jornal a tomar a arriscada decisão de mexer com um tabu.

Medo de represália

Em setembro, um comediante dinamarquês afirmou, em uma entrevista concedida ao Posten, que não teria problema em urinar na Bíblia diante de uma câmera, mas não ousaria fazer o mesmo com o Corão. No mesmo período, o jornal tomou conhecimento de um escritor dinamarquês de livros infantis que havia tido dificuldade para encontrar um ilustrador para um livro sobre a vida de Maomé. Três profissionais recusaram o trabalho por medo de represálias, e o desenhista que finalmente aceitou fazê-lo pediu para ficar no anonimato. Em outro caso, tradutores europeus de um livro crítico ao Islã também não quiseram que seus nomes aparecessem na capa junto ao nome da autora, uma política de nacionalidade dinamarquesa nascida na Somália.

Em Londres, a prestigiada galeria de arte Tate havia removido uma instalação do artista de vanguarda John Lathan que mostrava o Corão, a Bíblia e o Talmude – livro das doutrinas judaicas – rasgados em pedaços. O museu explicou que queria evitar contestações tão pouco tempo após os atentados a bomba ao sistema de transporte londrino, em julho. Poucos meses antes do incidente na Tate, um museu em Goteborg, na Suécia, havia retirado de exposição uma pintura com motivo sexual e uma citação do Corão, com a justificativa de não querer ofender os muçulmanos.

Finalmente, no fim de setembro, o primeiro-ministro dinamarquês, Anders Fogh Rasmussen, teve um encontro com um grupo de imames, durante o qual um deles pediu ao premiê que incentivasse a imprensa nacional a dar maior cobertura positiva à causa muçulmana.

Mostre, não fale

Todos estes exemplos de auto-censura e medo de confrontar publicamente questões do Islã pesaram para que o Posten decidisse que havia ali uma história legítima a ser coberta. Segundo Rose, o jornal adotou ‘o bem conhecido princípio jornalístico de ‘mostre, não fale’’. ‘Eu escrevi para membros da associação de cartunistas dinamarqueses pedindo que eles desenhassem ‘Maomé como você o vê’. Nós certamente não pedimos que eles gozassem o profeta. Doze dos 25 membros ativos da associação responderam’, conta.

O editor afirma que há a tradição, no Posten, de satirizar personagens da família real e outras figuras públicas, e isso se refletiu nos desenhos. ‘Os cartunistas trataram o Islã do mesmo jeito que tratam o Cristianismo, o Budismo, o Hinduísmo e outras religiões. E tratando os muçulmanos na Dinamarca como iguais eles enfatizaram um ponto: estamos integrando vocês na tradição dinamarquesa de sátira porque vocês são parte da nossa sociedade, e não estranhos a ela.’

‘Eu concordo que a liberdade para se publicar qualquer coisa não significa que se deve publicar tudo’, afirma Rose, observando que o Posten não publicaria imagens pornográficas ou detalhes gráficos de cadáveres. Um dos desenhos mais criticados foi o do profeta com uma bomba em seu turbante. ‘Vozes raivosas alegam que a charge está dizendo que Maomé é um terrorista e que todo muçulmano é um terrorista’, diz o editor. ‘Eu leio de maneira diferente: alguns indivíduos comprometeram a religião do Islã ao cometerem atos terroristas em nome do profeta. São eles que sujam o nome da religião’.

Já aconteceu do Posten se recusar a estampar em suas páginas cartuns satíricos de Jesus, mas Rose defende que o jornal não trabalha com duas medidas diferentes. ‘Aliás, o mesmo cartunista responsável pela imagem de Maomé com uma bomba no turbante já desenhou uma charge com Jesus na cruz com notas de dólares em seus olhos, e outra da estrela de Davi amarrada ao detonador de uma bomba. Não houve, entretanto, ameaças de morte ou embaixadas queimadas quando publicamos estas’, completa.

Respeito e submissão

Rose afirma que o jornal não teve como objetivo, em nenhum momento, desrespeitar ou insultar o Islã. Ele questiona, porém, o significado da palavra respeito, e o difere de submissão. Tirar os sapatos quando se visita uma mesquita ou seguir quaisquer outros comportamentos quando se entra em uma igreja ou sinagoga é ter respeito por um local sagrado. Mas exigir que um descrente siga os tabus de determinada religião no domínio público é pedir pela sua submissão, e não por respeito, defende o editor – lembrando que apenas em uma democracia é possível a coexistência pacífica das mais variadas religiões como parte de uma mesma sociedade. Se, na Arábia Saudita, pode-se ir preso por pendurar uma cruz no pescoço ou levar uma Bíblia na bolsa, muçulmanos na Dinamarca podem ter suas mesquitas, cemitérios, escolas e emissoras de TV e rádio.

‘Eu entendo que algumas pessoas se ofenderam com a publicação dos cartuns, e por isso o Jyllands-Posten se desculpa. Mas nós não nos desculpamos pelo nosso direito de publicar material, não importa o quão ofensivo ele seja. Não se pode editar um jornal se você fica paralisado com preocupações sobre qualquer possível insulto’, declara, ressaltando que se ofende todos os dias com notícias nas páginas dos jornais – como as fotos de Abu Ghraib, as transcrições dos discursos de Osama bin Laden, a insistência de pessoas que defendem que Israel deveria desaparecer e que o Holocausto nunca aconteceu –, mas nem por isso deixa de publicá-las.

Rose compara o rótulo de ‘anti-islâmico’ recebido pelos 12 cartuns do profeta com o totalitarismo da União Soviética, que acusava ativistas dos direitos humanos e escritores como Andrei Sakharov, Vladimir Bukovsky e Boris Pasternak de fazerem propaganda anti-soviética. ‘Este é um truque popular nos movimentos totalitários: rotule qualquer crítica ou tentativa de debate como um insulto e puna os ofensores’.

Debate construtivo

O editor ressalta, entretanto, que, apesar das conseqüências negativas, a atitude do Posten deu início a um construtivo debate na Europa sobre liberdade de expressão, de religião e respeito pelos imigrantes e pela crença das pessoas. Os protestos violentos em diversos países deixaram dezenas de mortos. O Posten recebeu 104 ameaças registradas, os cartunistas envolvidos foram obrigados a se esconder e os escritórios do jornal tiveram que ser evacuados algumas vezes por ameaças de bomba. Ainda assim, ‘nunca antes tantos muçulmanos dinamarqueses participaram de um diálogo público – em reuniões, cartas a editores e debates em programas de rádio e televisão. Nós não tivemos conflitos anti-muçulmanos, não tivemos muçulmanos fugindo do país ou muçulmanos cometendo atos violentos’, afirma Rose. Os imames radicais que informaram erroneamente seus companheiros no Oriente Médio sobre a situação dos muçulmanos na Dinamarca foram marginalizados, e não mais representam a comunidade muçulmana na Dinamarca ‘porque muçulmanos moderados tiveram a coragem de se colocar contra eles’.

‘O perfil dos muçulmanos na Dinamarca mudou, e está ficando claro que este não é um debate entre ‘eles’ e ‘nós’, mas entre aqueles comprometidos com a democracia na Dinamarca e os não-comprometidos’, diz Rose. ‘Este era o tipo de debate que o Posten esperava gerar quando decidiu testar os limites da autocensura chamando cartunistas a desafiarem um tabu muçulmano’.

Para concluir seu artigo, o editor afirma acreditar que os cartuns têm, hoje, duas diferentes narrativas, uma na Europa e outra no Oriente Médio. Citando a política dinamarquesa de origem somali Ayaan Hirsi Ali – aquela do livro mencionado mais em cima –, Rose diz que a integração de muçulmanos nas sociedades européias foi acelerada em uns 300 anos por causa dos polêmicos desenhos. ‘Já a narrativa do Oriente Médio é mais complexa’, resume ele, ‘mas isso tem pouco a ver com os cartuns’.