Ao cair da tarde de 8 de julho de 1976, jornalistas do Excelsior, então um dos jornais de maior prestígio no México e na América Latina, conduzidos por seu chefe, Julio Scherer, desceram aos trancos e barrancos as escadarias do velho edifício-sede em direção à rua, o belo e elegante Paseo de la Reforma, em seus ouvidos ressoando os gritos de ‘¡rateros, rateros!’ (gatunos, gatunos!) proferidos por cooperativistas insuflados por provocadores profissionais, que a mando do então presidente da República, Luís Echeverría, haviam ocupado o jornal de madrugada, com ameaças de pancadaria ou, se necessário, coisa pior – empastelamento e chumbo no lombo. Echeverría, irado, não suportava mais as críticas sérias e corajosas de Scherer e seus repórteres e colunistas a sua gestão presidencial, já nos estertores.
(Essa história, quente e exclusiva, foi transmitida por telex à redação da Veja quando este jornalista era correspondente da revista no México e América Central, um dos poucos convocados por Scherer a presenciar e registrar o ataque ao jornal. O outro estrangeiro era Alan Riding, do New York Times. O texto não foi publicado, informou-se friamente ao correspondente por telefone, ‘porque, desculpe aí, cara, sumiu na balbúrdia da redação’).
Nos 28 anos seguintes, o Excelsior, sempre em picada, desfalcado de suas estrelas (Octavio Paz era uma delas), em meio a crescente corrupção e ineficácia internas, foi perdendo tudo – influência, credibilidade, leitores, anunciantes e amigos de peso nos altos do poder mexicano. Nos últimos sete anos, desesperados, os cooperativistas, que viviam de míseros vales, concordaram em colocar o patrimônio da casa à venda, mas sempre sem sucesso, pois as dívidas da empresa eram enormes.
Desafio maior
Os pretendentes ou se recusavam a assumir esse vermelho assustador ou eram do tipo Nelson Tanure, homens de negócio de reputação aventureira. O jornal, contudo, nunca deixou de sair nesse período, pois os bravos resistentes sabiam que um único dia ausente das bancas seria suficiente para liquidá-lo de vez. Conseguiam tirar 20 mil exemplares diários, pelo menos atendendo aos 15 mil assinantes ainda fiéis.
Semana passada, finalmente, acabou o penoso sofrimento dos jornalistas, gráficos e pessoal de administração, com o surgimento de um poderoso capitalista local, Olegário Vázquez Raña, que com 55 milhões de dólares bancou a compra dos ativos (o edifício e o título) e garante também responder pelo passivo, liquidando as dívidas com o Fisco, o Seguro Social, bancos e fornecedores.
A primeira providencia foi indenizar e aposentar 600 dos 900 cooperativistas, pagando-lhes salários e benefícios atrasados há muito tempo. Os novos donos anunciam ainda a contratação de 300 novos profissionais, que terão como desafio maior levantar o combalido Excelsior, começando por uma reformulação gráfico-visual completa, além da renovação, urgente, da maquinaria em geral, tanto nas oficinas como na redação: a rotativa há muito tempo anda pifando, os computadores estão emperrados por causa de programas velhos e superados.
Nova época
A notícia obviamente causou interesse nos meios jornalísticos mexicanos, que há muito tempo consideravam o Excelsior um caso perdido, tanto pelo volume das dívidas como pela perda de prestígio entre leitores e anunciantes – desgraça que, como registra a história do jornalismo mundial, não tem volta ou recuperação: se um jornal deixa de circular ou entra em crise terminal, caso aqui discutido, já era.
Além do mais, a forte concorrência no ramo nos últimos anos, com o surgimento do comercialmente agressivo Reforma, a ótima reestruturação do centenário El Universal, o fortalecimento do tablóide de esquerda La Jornada, era para desestimular qualquer nova iniciativa na área. Então, qual seria o objetivo do empresário Vázquez Raña ao comprar o Excelsior, assumir todas as suas dívidas e ainda investir muito mais dinheiro na reformulação total do veículo e da própria casa editorial?
Mais ainda: para que comprar problemas futuros com os cooperativistas e familiares que, insatisfeitos com as indenizações, já anunciam processos em cima do novo dono do jornal? E como responder às críticas de que ele se acertou direitinho com as autoridades fazendárias para amenizar o peso das dívidas do jornal com o governo?
As conjecturas são várias e todas têm algum fundamento, considerando que o próprio empresário, pessoalmente arredio e lacônico, preferiu, sob o manto protetor de um de seus negócios, o grupo radiofônico Imagem, sair com um anúncio de página inteira na grande imprensa prometendo devolver ao Excelsior ‘o espaço e a transcendência que merece uma empresa editorial de 88 anos. Trabalharemos para construir uma nova época nesta instituição que seja digna de seu passado’.
Páginas pluralistas
Cacife para tanto Vázquez Raña tem – e muito. Empresário ligado ao poder, sobretudo a grupos próximos à chamada ‘família presidencial’, ele é proprietário de hospitais, hotéis, aeroportos, lojas de móveis, restaurantes, casas de bingo e uma infinidade de outros negócios por todo o país. E assim o Excelsior pode ser, às vésperas de uma nova eleição presidencial (2 de julho), uma jogada muito oportuna para continuar desfrutando dos favores oficiais e ter à disposição um jornal de renome, ainda que bastante machucado. Afinal, apesar de todas as misérias e humilhações que se abateram sobre o Excelsior, o cabezal (o título) ainda provoca admiração e nostalgia pelos velhos tempos.
Com efeito, no seu auge, anos 1970, o Excelsior era considerado um dos 10 grandes jornais do continente. Quando Julio Scherer assumiu a chefia da redação, em 1968, no calor repressivo da ditadura partidária do PRI, os jornais ou eram áulicos, vivendo das benesses oficiais na forma de anúncios e editais de ministérios e secretarias, ou acabavam na mais negra falência, principalmente os mais ousados na crítica.
Scherer, repórter formado no próprio Excelsior, começou a mudar esse panorama, criando uma página editorial forte, pluralista e corajosa, onde algumas das melhores cabeças da cultura e da intelectualidade podiam criticar o governo e seus desmandos. Isso durou oito anos, sendo que nos derradeiros seis foi a vez do presidente Luís Echeverría levar porrada todos os dias, em densos artigos e amplas reportagens investigativas denunciando as mazelas do sistema autoritário.
Projeto ambicioso
A grande ironia do episódio é que Echeverría, acreditando que ao mandar um grupo de bandidos depredar o jornal e expulsar os jornalistas liquidava com qualquer intenção romântica de se fazer jornalismo sério no México, acabou propiciando um enorme beneficio à imprensa e à liberdade de expressão em geral. O que parecia um abuso brutal, lamentável por parte do poder – todos aqueles jornalistas abatidos e desempregados, amontoados na calçada do Paseo de la Reforma, pensando nas incertezas do futuro próximo –, deu origem a um ressurgimento da imprensa mexicana que presidente algum, dali em diante, poderia frear.
O primeiro grande fruto da dissolução do Excelsior foi a combativa revista semanal Proceso, dirigida pelo próprio Scherer, o tablóide UnomásUno, a revista literária Vuelta, de Octavio Paz. Depois viriam as inevitáveis dissidências, com o aparecimento de mais jornais e revistas tocados por jornalistas formados no Excelsior. Todos aproveitando a lenta e gradual abertura do regime político mexicano, processo que culminaria com a eleição de Vicente Fox em 2000, que, bancado por um partido de direita, o PAN, alijou do poder o PRI, depois de 71 anos de autoritarismo e corrupção.
Com todos os erros cometidos por Fox em seus cinco anos de mandato, até mesmo a oposição e seus ferrenhos adversários reconhecem e atribuem ao seu estilo de governar, franco e aberto, uma liberdade de expressão raras vezes ocorrida na história mexicana.
O novo diretor do Excelsior, Daniel Moreno, 18 anos de profissão, prepara agora um ambicioso projeto editorial, cujos modelos, além da inspiração básica – o período de don Julio Scherer –, estariam inspirados em veículos como El País, Le Monde, Clarín e até mesmo The New York Times. Ele não ignora a enorme carga de problemas que tem pela frente, mas se diz pronto, com a equipe de assessores diretos que está montando, para convocar ‘gente jovem, talentosa e brilhante, que contribua com coisas importantes.
Operação política?
Essa recuperação do Excelsior, principalmente no aspecto editorial, ou seja, o reerguimento de um jornal vigoroso, brilhante, respeitado, agora podendo desfrutar na plenitude o clima democrático do país, é o sonho de alguns no meio jornalístico mexicano, embora a própria imprensa tenha se manifestado muito pouco quando do anúncio da compra do jornal pelo empresário Vázquez Raña. Esperava-se, portanto, com alguma curiosidade, a opinião abalizada de um dos mais próximos observadores do caso, o colunista político Miguel Angel Granados Chapas, ex-editorialista do Excelsior de Julio Scherer e hoje no Reforma.
Sob um título nada encorajador – ‘Una vez más muere Excelsior‘, Granados Chapa pondera em seu artigo, publicado no domingo na revista Proceso:
‘Sob o puro ponto de vista da lógica mercantil, fazer um alto investimento num mercado disputado e deprimido (diminui o número de leitores) só tem sentido se o comprador possuir uma chave oculta, que permita a oportuna obtenção de bons resultados.’
Essa chave oculta, diz o colunista, pode ser, tornando viável o negócio como um todo, a compra dos terrenos supervalorizados onde estão as instalações do Excelsior na Cidade do México e ‘cujo valor aumenta pela revitalização da zona imediata, entre a Avenida Reforma e a Avenida Juárez’. Continua Granados Chapa:
‘Ou se o objetivo é realizar uma operação política. Por exemplo, permitir que a primeira-dama, a senhora Marta Sahagún, disponha de um espaço que a proteja depois de 30 de novembro, quando pode ficar politicamente na intempérie.’
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Jornalista e escritor brasileiro radicado na Cidade do México