Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

“Fala cum nois”!!!

Texto publicado originalmente no Medium. 

Esta foi a frase repetida várias vezes por um vendedor do CEASA do Rio de Janeiro num vídeo que circulou na internet durante a greve dos caminhoneiros. “Fala cum nois” teve a força de um apelo emocionado contra o fato da imprensa não dialogar com os simpatizantes do movimento que paralisou as estradas de quase todo o país.

A reclamação do seu Gino feita a uma repórter da TV Globo sintetiza a irritação de muitas pessoas com o que poderia ser visto como uma atitude olímpica dos meios jornalísticos em relação aos desejos, necessidades e aspirações de um segmento social que, até o início da era da internet, não tinha como ser ouvido pelos jornalistas.

O comerciante queria que a repórter desse sua opinião sobre o movimento dos caminhoneiros, alegando que por ser brasileira, ela deveria ter sua própria percepção sobre a crise gerada pelo bloqueio das estradas. A repórter se mostra intimidada e tenta ir embora, o que leva seu interlocutor a dizer que os jornalistas precisam conversar com as pessoas comuns. Ver vídeo a seguir:

“Fala cum nois’ é uma frase símbolo da dificuldade da imprensa de dialogar com segmentos sociais, num momento em que os anônimos se tornaram protagonistas da cena política graças às novas tecnologias digitais de comunicação e informação, como as redes sociais e o WhatsApp. Mostrou também como muitos jornalistas precisam se libertar da anacrônica idéia de que o jornalista é um observador não participante dos fatos e eventos que testemunha.

O episódio “Fala cum nóis” não foi o único a mostrar o divórcio entre a imprensa e a base social do país. Um vídeo divulgado pelo site da revista Fórum mostra os caminhoneiros expulsando uma equipe da TV Globo sob a alegação de que ela só dava a versão oficial dos fatos e ignorava os problemas do quotidiano dos caminhoneiros em greve. Segue vídeo:

Os vídeos, junto com várias postagens feitas no Facebook, mostram que até mesmo grupos sociais considerados conservadores passaram a criticar a cobertura da Globo na greve dos caminhoneiros.

Mais que um apelo, um alerta

Crises como a da greve dos caminhoneiros polarizam o ambiente político tornando mais clara a opção da Globo por um noticiário jornalístico mais voltado para os tomadores de decisões do que para a grande massa do público. A maior rede de TV do país adotou em seus telejornais a estratégia de ampliar a cobertura das consequências dos protestos no abastecimento de alimentos, fornecimento de combustíveis, escassez de remédios e insumos para agroindústrias para assustar a população e levá-la a reduzir suas simpatias em relação ao movimento dos caminhoneiros.

Os grevistas perceberam este viés na cobertura jornalística da Globo e rapidamente disseminaram pelo WhatsApp sua irritação, o que gerou um clima propício aos atos de hostilidade em relação a repórteres e cinegrafistas da emissora, muitos dos quais passaram a informar desde helicópteros. A ausência de contato direto com a realidade da greve e com seus protagonistas afeta a qualidade da informação porque gera uma narrativa burocrática e descontextualizada, baseada em boletins, comunicados e entrevistas com porta-vozes.

A cobertura da greve dos caminhoneiros atropelou a imprensa porque a maioria dos veículos ainda não atentou para o fato de que as novas tecnologias de informação e comunicação mudaram muito o caráter e a forma das manifestações de protesto. Jornais, revistas, emissoras de rádio e TV ficaram na dúvida entre priorizar o governo ou os grevistas na cobertura. Aí prevaleceu a opção pelo velho, mas seguro, recurso de focar nas decisões oficiais em vez de correr riscos e lidar com um movimento sem líderes, descentralizado, sem ideologia definida e com reivindicações que variam de grupo para grupo.

No entanto, a definição pelo método já conhecido acabou levando a um distanciamento ainda maior entre as redações e as audiências, que a cada dia valorizam mais sua participação no debate público. Conversar com leitores, ouvintes e telespectadores em pé de igualdade é hoje um comportamento fundamental na atividade jornalística. Na era digital, as pessoas passam a ser fontes essenciais de informação e, sem a confiança delas, os veículos de comunicação acabam perdendo um dos pilares da sua sustentabilidade financeira.

“Fala cum nois” é muito mais do que um apelo. É um alerta para as redações.

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Carlos Castilho é jornalista, pesquisador em pós-doutorado, professor e crítico de mídia.