Análise publicada em de 30 de setembro pela Fair – Fairness & Accuracy in Reporting (www.fair.org) – lança uma tese que provavelmente decepcionará os ingênuos que acreditam na miragem da imparcialidade jornalística:
‘Enquanto a apuração dos fatos é uma função essencial da mídia, particularmente em ano de eleição, é um exercício vazio para o jornalista assumir de antemão que ambos os lados precisam ser culpados de falsidade. Nem sempre, na verdade, ambas as campanhas fazem alegações enganosas no mesmo grau; a cobertura que insiste nesta falsa imparcialidade enquanto simula expor a perfídia política na verdade a encobre, neutralizando a crítica a pretexto de que ‘todos’ são pérfidos. Este tipo de cobertura pode proteger as empresas de comunicação das acusações de favorecimento, mas presta um desserviço ao eleitor’.
Fair dá logo um exemplo, e com a agência de notícias americana Associated Press. Em 25/9/04, reportagem que originalmente recebera o título ‘Em novos ataques a Kerry, Bush distorce as palavras do rival’ – o qual refletia com precisão o foco da matéria, diz Fair – foi reenviada pela agência com o título ‘Bush, Kerry distorcem as palavras um do outro’. O único exemplo que a AP citou de uma distorção feita por Kerry era de difícil compreensão: e-mail da campanha democrata aproveitou uma observação de Bush, que disse ter visto ‘uma pesquisa feita no Iraque sobre os rumos do país melhor do que aqui na América’, para afirmar que Bush ‘acha o futuro do Iraque melhor que o da América’.
A agência explicou zelosamente que ‘o presidente não estava comparando o futuro iraquiano ao americano, apenas citava pesquisa recente no Iraque e nos Estados Unidos em que os entrevistados avaliavam ‘os rumos tomados por seus países’. Como ‘os rumos tomados por seus países’ é outro modo de dizer ‘o futuro’, comenta a Fair, a AP parece estar dizendo que falar de uma avaliação pública sobre o futuro de um país não pode ser interpretado de jeito nenhum como opinião sobre o futuro real do país. É uma insignificante diferença, se é que é uma diferença.
‘Pouca evidência’
O segundo exemplo da Fair é do Washington Post, em reportagem prévia (30/9) do primeiro debate entre Kerry e Bush. Os repórteres Glenn Kessler e Ceci Connolly encontraram, relata a Fair, inverdades graves ditas por Bush – a de que Kerry planeja ‘nacionalizar’ o healthcare [o sistema americano de planos de saúde], por exemplo. Ou a afirmação do presidente de que ‘Nós fortalecemos o Medicare [programa de distribuição de remédios a idosos]’, quando relatório dos investidores independentes do Medicare (…) diz que ‘a lei [de Bush] enfraqueceu gravemente a estabilidade fiscal do programa’.
Até aí tudo bem. Os dois repórteres, então, se debruçam sobre as afirmações de Kerry, para descobrir nelas distorções comparáveis às de Bush, ‘com discrepâncias no mínimo triviais’, avalia a Fair.
O Post tomou, por exemplo, a declaração de Kerry ‘O governo enganou a América, as Nações Unidas e o mundo’ dizendo que há ‘pouca evidência de que o governo Bush tentou propositadamente enganar os americanos e líderes mundiais sobre a alegada ameaça das armas [de destruição em massa de Saddam Hussein]’.
O ‘custo’ do carro
Se o governo quis ou não ‘enganar’ é certamente uma questão de opinião, diz a Fair, mas há grandes evidências de que o governo enganou. Para citar apenas um exemplo, continua, o secretário de Estado, Colin Powell, em discurso na ONU em 5/2/2003 citou informações do dissidente iraquiano Hussein Kamal sobre as armas químicas produzidas pelo Iraque – sem mencionar que Kamal contou a autoridades americanas e internacionais [inspetores de armas da ONU e agentes britânicos] que tinham sido todas destruídas (Newsweek, 3/3/03).
Os dois repórteres escrevem também que Kerry disse que o custo da política de Bush no Iraque já chega a US$ 200 bilhões. ‘É um exagero, porque soma o dinheiro já gasto – US$ 120 bilhões – ao montante a ser aplicado no próximo ano ou solicitado pelo governo ao Congresso’.
Ora, diz Fair, o ‘custo’ de alguma coisa é o total de dinheiro que se tem de pagar por ela; ninguém diria que o valor das prestações já pagas de um carro é o ‘custo’ do carro.
Tudo errado
Enigmaticamente, o Post também critica Kerry por ‘enfatizar a perda de 2,9 milhões de empregos na indústria desde a posse de Bush, o que sobrecarrega a taxa total de desemprego’. O Post não está dizendo que a cifra 2,7 milhões é inexata; está dizendo que Kerry não deve usar tal número porque a perda de empregos na indústria é maior do que em outras áreas. Pode-se também argumentar que não se deve falar sobre o quanto faz frio no Alasca, porque lá é mais frio do que em outras partes do país, ironiza a Fair.
O jornal também censura Kerry por creditar a Bush ‘empregos que nos pagam US$ 9 mil a menos do que os empregos que migram para o exterior’. Crítica que o Post considera ‘uma extrapolação extrema dos números contidos num estudo publicado por um grupo progressista financiado por trabalhadores’. Dificilmente seria uma ‘extrapolação extrema’, rebate a Fair; o grupo de especialistas em questão, o Economic Policy Institute [www.epinet.org/], calculou em 21/1/04 que os postos de trabalho nas indústrias americanas nas quais o emprego vinha crescendo pagavam em média US$ 35.410, enquanto os empregos nas indústrias em retirada pagavam US$ 44.570. A diferença é de US$ 9.160. E observar que os dados vêm de ‘um grupo progressista financiado por trabalhadores’ dificilmente constitui uma contradição.
As alegações de Kerry que o Post considera ‘enganosas’ são virtualmente similares a estas – erradas somente se levadas a um nível tão impossível de exame que qualquer frase poderia ser considerada ‘errada’. Na verdade, conclui a Fair, se a crítica de Kerry a Bush fosse tão ilógica quanto a crítica do Post a Kerry o artigo do jornal seria bem mais convincente.