Aqui na redação do Libération, temos sangue na entrada do prédio. Uma zona de guerra no meio de Paris, bem ao lado da Praça da República, em 2013. Acontece que um jovem fotógrafo, de 23 anos, estava de pé à porta do nosso jornal, na segunda-feira (18/11) de manhã, quando um homem armado com uma escopeta entrou pela porta giratória, vindo de uma agradável rua do Marais.
No Libération, sempre acreditamos que jornalismo não tem nada a ver com proteção especial, grades e seguranças particulares. Vez por outra, temos que ser cautelosos: não houve nada de engraçado quando publicamos o trabalho do escritor Salman Rushdie, que na época vivia clandestino – condenado à morte por uma fatwa do governo iraniano. Em outras ocasiões, enfrentamos manifestantes furiosos do lado de fora, que jogavam pedras em nossas janelas; já fomos alvo de mensagens de ódio e ameaças de violência. Mas nunca de tentativas de assassinato. Até agora.
Como se fosse um filme de terror, o pistoleiro, que vestia um capuz preto e um colete, dirigiu-se ao jovem fotógrafo e atirou nele pelo menos por duas vezes, praticamente à queima-roupa. Os tiros acertaram no peito e num braço. Nosso colega foi levado às pressas para um hospital de Paris, onde ficou durante horas numa sala de operações. Esperamos, desesperadamente, que se recupere.
“Nossa sociedade está se desintegrando”
O pistoleiro saiu de nosso prédio e tomou o metrô na direção do bairro comercial de La Défense. E, novamente, a vida se tornaria um filme ruim: segundo consta, ele entrou num banco, atirou nas janelas da torre do edifício da Société Générale e em seguida fugiu para o lado de fora, onde sequestrou um carro e obrigou o motorista a levá-lo para a Champs-Elysées. Lembrei-me de uma época em Los Angeles, onde vivi por algum tempo, quando víamos, à noite, helicópteros perseguindo fugitivos no Sunset Boulevard. Agora, os helicópteros sobrevoavam a Champs-Elysées. Enquanto escrevo, a caça ao homem pela polícia continua, mas com muito cuidado. O pistoleiro disse ao motorista do carro sequestrado que carregava uma sacola cheia de granadas.
O presidente François Hollande, em visita oficial a Israel, enviou uma enérgica mensagem sobre o ataque: “É sempre a liberdade de informação que é ameaçada.” Mas por que seria o Libération alvo de tamanha violência? O homem com capuz é suspeito de estar envolvido em incidente semelhante na sexta-feira (15/11), quando um pistoleiro entrou no prédio onde funciona o canal de TV BFM, ameaçou os membros da equipe, mas foi embora sem fazer mal a qualquer deles. Se realmente for o mesmo homem, seria o caso de alguém que tem ressentimento da imprensa?
O Libération é um jornal diário, de esquerda, fundado em 1973 por Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir – comemoramos este ano nosso 40º aniversário. O Libération é um jornal “liberal”, ou “progressista”, como diriam nos Estados Unidos. Do ponto de vista editorial, apoia o casamento homossexual, uma controvérsia recente na França. Tradicionalmente, o Libération também adota posições contra o racismo e a xenofobia. No início deste mês, o jornal publicou uma longa entrevista com Christiane Taubira, a ministra da Justiça negra da França, que estimulou a nova lei do governo permitindo o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Em outubro, um candidato da Frente Nacional comparou Christiane Taubira a um “macaco”. Aproveitando a ideia, manifestantes de direita zombaram dela com uma banana. De início, a ministra manteve um silêncio digno sobre o abuso, mas finalmente declarou ao Libération: “Estes ataques racistas vão contra o coração da nossa democracia.” “Milhões de pessoas preocupam-se quando me chamam de macaco”, prosseguiu. “Nossa sociedade está se desintegrando.”
“É uma ameaça à nossa democracia”
Uma atmosfera estranha e febril tomou realmente a França. Aquilo que era tabu não é mais inadmissível. De repente, parece respeitável defender ou manifestar opiniões racistas ou antissemitas – e mesmo imprimi-las na capa de uma revista, como fez o semanário de extrema-direita Minute.
Teria esse fermento xenofóbico algo a ver com o pistoleiro solitário andando por Paris com uma arma carregada e uma possível sacola de granadas? Ninguém sabe. Até o momento, nada sabemos sobre a identidade do agressor – muito menos, seu motivo.
Nas zonas de guerra em todo o mundo, naturalmente, os jornalistas são atacados ou tomados como reféns. A imprensa francesa ainda não se recuperou do assassinato a sangue frio de dois radialistas no início deste mês, no Mali, onde foram mortos por terroristas tuaregues ligados à al-Qaeda. Mas aqui, em Paris? Na segunda-feira, o Libération ficou fechado, isolado pela polícia, enquanto todos nós tentávamos digerir as palavras de nosso diretor, Nicolas Demorand, que manifestou o horror e a raiva que todos sentíamos. “Atacar jornalistas que fazem seu trabalho, no centro de Paris, é uma ameaça à nossa democracia.”
Uma notícia boa entre as ruins
Por enquanto, continuamos trabalhando e tentando fazê-lo normalmente, quando nada está normal. Um de nós foi comprar sanduíches para todo mundo quando ficou impossível entrarmos e sairmos todos juntos, passando pela revista da polícia.
Um tanto atrasados, políticos e personalidades públicas reuniram-se em protesto contra o abuso de “macaco”. O sangue à entrada do prédio e o jovem fotógrafo assistente em condições críticas chocaram todo mundo, de todas as correntes políticas. Se esta atrocidade conseguir interromper as exaltações na França, talvez essa seja uma boa notícia entre as ruins.
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Atualização do OI: Na quarta-feira (20/11), a polícia deteve um homem suspeito dos ataques. Ele foi identificado como Abdelhakim Dekhar, condenado em 1998 por um assalto e perseguição, ocorridos quatro anos antes, que deixaram três policiais e um taxista mortos. Dekhar cumpriu quatro anos de prisão, mas as autoridades não sabiam de seu paradeiro nos últimos anos. Ele foi encontrado inconsciente – aparentemente por uma overdose – dentro de um carro em um estacionamento subterrâneo em um subúrbio de Paris. Com base em informações do DNA obtido nos locais dos ataques, a polícia acredita que ele seja o único atirador.
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Annette Lévy-Willard é escritora e jornalista