Folha de S. Paulo, 26/2
Bruno Ghetti
França celebra centenário da Éditions Gallimard
Em 1913, de posse de um manuscrito do primeiro volume de ‘Em Busca do Tempo Perdido’, uma editora recém-criada na França teve a chance de ser a primeira a lançar o livro de Marcel Proust. Mas recusou.
Esse mesmo grupo editorial, a Éditions Gallimard, chega agora a seu centenário como o mais prestigiado no mercado literário francês.
Pode soar paradoxal, mas o fato é que a editora parece ter aprendido a lição após o episódio proustiano e, desde então, publicou tantos autores de primeira grandeza que o simples fato de uma obra ser aceita pela Gallimard costuma ser visto entre os franceses como um atestado de qualidade.
A trajetória do grupo é revisitada a partir deste mês com uma programação especial na França. Nesta semana, a editora lança ‘Gallimard, un Éditeur à l’Oeuvre’, de Alban Cerisier, que conta a história da casa.
Livros de correspondências entre editores e escritores, reedições, um documentário e uma grande exposição na Bibliothèque François Mitterrand, em Paris, também estão no programa, que se estende ao longo do ano.
A Gallimard é hoje a terceira maior editora francesa. Seu centenário acontece exatamente naquele que pode ser o ano da solidificação do mercado literário digital, que faz medo a 9 em cada 10 editoras de livros em formato tradicional.
Segundo a Gallimard, entretanto, essa não é uma ameaça. ‘Ao contrário, é uma possibilidade suplementar de editar livros. Já temos um catálogo digital, vamos continuar editando digitalmente. A pirataria é um problema verdadeiro’, diz o editor responsável por obras da América Latina, o venezuelano Gustavo Guerrero.
BRASILEIROS
Porém ainda persiste certo conservadorismo no perfil editorial da Gallimard. Entre os (poucos) brasileiros publicados pela casa, por exemplo, há uma grande predominância de cânones como Graciliano Ramos, Clarice Lispector e Jorge Amado.
O gaúcho Daniel Galera, 31, cuja tradução de ‘Mãos de Cavalo’ foi lançada pela casa no ano passado (com o nome de ‘Paluche’), é exceção.
‘É simples: nós não conseguimos vender livros de autores brasileiros’, diz Guerrero. ‘É bem diferente dos autores latinos de língua espanhola, que são amplamente consumidos. Claro, no passado havia [Jorge] Amado, mas ninguém o substituiu em popularidade. Recentemente, para a nossa sorte, veio o Chico Buarque, que já era conhecido como músico e se mostrou igualmente talentoso como romancista.’
Esse desinteresse estaria ligado a algum clichê sobre nossos autores? ‘Nem isso! A imagem que vem à cabeça dos franceses quando se fala de Brasil é futebol. Sua literatura ainda é uma grande desconhecida dos franceses’, diz o editor.
Mas um dos grandes projetos de longo prazo da Gallimard é, quem diria, ligado à literatura brasileira.
‘Meu grande sonho enquanto editor é publicar uma nova tradução de ‘Grande Sertão: Veredas’, esse livro extraordinário de Guimarães Rosa’, diz Guerrero, mostrando que, mesmo sendo a ‘terra do futebol’, o Brasil tem obras dignas de figurar o panteão da mais tradicional editora francesa.