Os argumentos usados pelos sete ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) que se manifestaram pela constitucionalidade do Decreto 5.820/06, que estabelece as normas para a implementação da TV digital no Brasil, mostraram que alguns deles partiram de informações equivocadas para definirem seus votos. Em julgamento realizado em 5 de agosto, apenas o ministro Marco Aurélio Mello entendeu ser procedente a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3944 ajuizada em 2007 pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL).
A Ação do PSOL pedia que fossem derrubados quatro artigos (7º, 8º, 9º e 10º) do Decreto 5.820/06. Basicamente, eles entregam a cada um dos atuais concessionários de TV mais um canal, a fim de permitir a transição para a tecnologia digital sem interrupção da transmissão de sinais analógicos. Para o partido, essa regra fere a Constituição, que, em seus artigos 220 e 223, é clara ao dizer que novas concessões e renovações precisam ser autorizados pelo Congresso Nacional. Além disso, o texto constitucional também diz que ‘os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio’.
Um dos pontos centrais da questão para o PSOL e para os apoiadores da ADI 3944 (amicus curiae) é que a digitalização do sinal das emissoras não só atualiza a TV analógica, mas inclui uma série de novas funcionalidades, em especial a multiprogramação e a interatividade, que a configuram como um novo serviço. Sendo assim, a concessão de um novo canal aos concessionários exigiriam processos de outorga, o que inclui a tramitação nos órgãos competentes do Executivo e a aprovação do Congresso Nacional. O Decreto 5.820 cria, no lugar da concessão, a figura da consignação de canais. O mesmo argumento foi corroborado por parecer da Procuradoria-Geral da República (PGR).
Para os sete ministros que votaram pela improcedência da ação, a TV digital é apenas uma atualização do sistema analógico. Os ministros chegaram a afirmar por diversas vezes que a digitalização não muda a essência da radiodifusão – transmitir sons e imagens. Com isso, entendem os ministros que o Executivo pode tomar as decisões cabíveis ao processo de transição de um sistema para o outro, inclusive dando novo canal aos atuais concessionários sem autorização do Congresso.
Concentração de propriedade
Além disso, de acordo com os defensores da tese da inconstitucionalidade do decreto, a implantação da TV digital no Brasil desconsidera o fato de o Estado brasileiro ser obrigado pela Constituição a zelar para que o setor das comunicações não esteja submetido a cenários de monopólio ou oligopólio. Tanto a escolha do padrão tecnológico usado no Sistema Brasileiro de TV Digital, como o formato escolhido para a transição não possibilitariam, segundo a ADI, a entrada de novos concessionários na TV aberta.
O sinal digital permite a compressão do sinal, ou seja, que a mesma programação transmitida hoje no sinal analógico ‘caiba’ num espaço menor do espectro, inclusive com qualidade de som e imagem maior. Em outras palavras, a nova faixa de frequência consignada aos concessionários para transmitir o sinal digital poderia ser menor que os 6Mhz atuais – que é o tamanho da faixa ocupada por apenas uma programação no sistema analógico. Sobrariam, assim, novos canais para a entrada de novas emissoras de TV.
O ministro Carlos Ayres Britto, relator da ADI, disse que o padrão escolhido no Brasil (ISDB-T) não permite que seja feita essa divisão do canal, a não ser no formato Standard Definition (SD), um tipo de resolução de 720×480 pixels semelhante a de um aparelho de DVD. No entanto, sua informação não procede. A compressão do sinal adotada no país (MPEG-4) possibilita que um mesmo canal seja utilizado por até duas programações em High Definition (HD) – que possui resolução de 1280×720 pixels – ou uma em HD e outras em SD. Com isso, seria possível dobrar o número de programações (os populares canais) para a população brasileira.
Era fundamental para os requerentes da ADI que houvesse o entendimento por parte do STF de que a multiplicação das programações pode sim ser adotada com o atual padrão ‘nipo-brasileiro’. Se, ao mesmo tempo, os ministros concordassem com a argumentação da Ação que afirmava ser a TV digital um novo serviço de comunicação – e, portanto, passível de abertura de novas licitações – estava montado um cenário mais positivo para a compreensão de que o Decreto 5.820/06 contribui de fato para a concentração de propriedade da mídia.
‘O ministro isolou os artigos’
Alguns ministros também fizeram coro com a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert) ao dizerem que ainda existe espaço no espectro radioelétrico brasileiro para novas emissoras. É uma informação que, em parte, também não se sustenta. Em grande centros urbanos, onde se concentram as cabeças das grandes redes de TV, existe um verdadeiro congestionamento nas frequências.
Mantido o modelo atual da digitalização, não há espaço para a abertura de novos canais. São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre e Baixada Santista são alguns exemplos mais contundentes dessa saturação. Em São Paulo, há dificuldades até para acomodar os canais criados pelo próprio Decreto 5.820 para exploração da União (da Cultura, da Cidadania, da Educação e um para o Executivo).
Para além dessas imprecisões, a avaliação do advogado do PSOL André Maimoni é de que o voto dos ministros reduziram o conteúdo da ADI, descontextualizando o Decreto 5.820/06 da realidade brasileira. Para Maimoni, o relator Ayres Britto retirou da discussão o questionamento ao respeito a acordos internacionais e a necessidade de pluralidade na mídia, por exemplo.
Outro ponto importante que não passou pelo debate no plenário foi sobre os motivos que levaram o governo brasileiro a optar pelo padrão japonês de TV digital. ‘O Ayres Britto isolou os artigos’, avalia o advogado do PSOL.
Fato consumado
O advogado também criticou a interpretação dos ministros do STF em relação à concentração da propriedade de emissoras. O argumento de quase todos eles é que o oligopólio ou monopólio não foram criados a partir do Decreto 5.820. No entanto, não foi avaliada a potencialidade clara que ele traz de aumentar a concentração midiática. ‘A legislação não pode encorajar que medidas legislativas permitam o oligopólio ou monopólio’, disse Maimoni em sua sustentação oral no plenário do Supremo.
A visão dos ministros sobre a concentração da mídia também foi criticada por João Brant, integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social. ‘Desconsideraram o potencial de desconcentração e se satisfizeram com o fato de que ele [o decreto] não piora o atual quadro’, avalia. O coletivo foi um dos amicus curiae da ADI 3944 junto com o Instituto Pro Bono e Conectas Direitos Humanos.
A ação do PSOL foi ajuizada ainda em 2007. Desse ano até 2010, várias ações foram tomadas tanto pelo governo quanto pela indústria para implantar a TV digital no país. A avaliação do advogado do partido é que tudo isso criou um sentimento de ‘fato consumado’ que pesou na decisão dos ministros. A argumentação dos radiodifusores, por exemplo, apelou para o fato de as emissoras já terem feito grandes gastos com a mudança de tecnologia. Eles não explicitaram, porém, o que as emissoras comerciais perderiam se os artigos do decreto questionados pela ADI fossem derrubados.
O único ministro que concordou com os argumentos da ADI foi Marco Aurélio Mello. Ele questionou, por exemplo, o fato de as consignações dos canais terem sido feitas sem passar pela avaliação do Congresso. ‘Toda concentração é perniciosa, daí a Carta da República prever trato de matéria mediante atos sequenciais com a participação de instituições diversas’, frisou.