‘Com o predomínio de agentes de comunicação e relações públicas, alerta-se para a manutenção dos padrões do bom jornalismo
A notícia da abertura do supermercado é justificada por os clientes terem o perfil do leitor do jornal
O PÚBLICO da passada quarta-feira vinha ‘embrulhado’ numa sobrecapa anunciando, nas suas quatro páginas, a inauguração de um supermercado da rede Supercor (El Corte Inglés) no Parque das Nações, em Lisboa. A página da frente tinha a indicação de ‘Publicidade’ – nada a apontar quanto a isso. Mas na secção ‘Local’ da Edição Lisboa desse dia, na pág. 17, uma notícia a três colunas incidia sobre a mesma ocorrência comercial, com o título ‘Supercor do Parque das Nações aposta em produtos biológicos e gourmet’. A notícia baseava-se num press-release da empresa e mantinha o mesmo carácter promocional, mencionando a ‘vasta área de produtos gourmet’, o ‘especial destaque às zonas de peixaria, charcutaria, talho e vegetais’, a ‘criação de 107 postos de trabalho’, o ‘período de formação que teve início há três meses e envolveu uma equipa de 12 formadores e especialistas internos’, os ‘serviços de envio ao domicílio, pedidos por telefone, encomenda de produtos perecíveis, cozedura de mariscos no momento e atendimento personalizado’ e a ‘zona de pratos já confeccionados, confirmando-se assim a lógica actual de aposta em refeições já preparadas para levar’. O texto, apenas temperado pela referência a um estabelecimento idêntico aberto na estação de Santa Apolónia por uma rede concorrente (Pingo Doce), terminava com uma porta-voz do El Corte Inglés declarando, pelas palavras de quem redigiu a notícia, a ‘intenção de continuar a investir no formato de proximidade do Supercor’.
O leitor mais cínico seria até levado a pensar que, com tal notícia, o El Corte Inglés poderia ter poupado o dinheiro da publicidade exterior, mas a verdade é que o provedor não recebeu nenhuma reclamação sobre o assunto. Entendeu porém tomar a iniciativa de esclarecer o que se passou, sobretudo por lhe parecer crucial, num jornal com o estatuto editorial do PÚBLICO, que não subsistam suspeitas de uma ligação – proibida – entre matéria editorial e matéria publicitária.
Solicitou assim uma explicação ao director do PÚBLICO, que respondeu: ‘Não houve qualquer relação causal entre o anúncio (que também saiu noutros jornais) e a notícia. E a razão é simples: só eu e mais duas pessoas da direcção editorial conhecíamos o conteúdo do anúncio, que vem sempre para aprovação e para nos assegurarmos de que a arte final contém a menção ‘publicidade’. Na empresa, o tema só passou pelo director comercial e pelo chefe do departamento de produção, para inserir a menção de publicidade conforme as indicações da direcção editorial. Da mesma forma, ninguém da direcção editorial sabia que aquela notícia ia sair e o editor de fecho, que reviu a página e viu a notícia, não sabia do anúncio. Ou seja, a existência do anúncio não teve qualquer influência na decisão de dar aquela notícia’.
Tranquilizado a este respeito, o provedor ficou porém na dúvida quanto à lógica da notícia. Tanto mais que, segundo o próprio texto, a abertura deste tipo de supermercados pelo grupo em causa não é novidade: trata-se da quarta unidade do género que instala em Portugal (e porventura – mas isso o provedor não confirmou – a primeira a ter honras de tal cobertura jornalística do PÚBLICO).
‘Foi essa decisão correcta?’, questionou o próprio José Manuel Fernandes, para responder: ‘Ela foi tomada pelo editor do ‘Local Lisboa’ após receber um comunicado de imprensa do El Corte Inglés. Pareceu-lhe adequado dar a notícia, já que os supermercados daquele grupo são frequentados por clientes com um perfil social e económico semelhante ao dos leitores-tipo do PÚBLICO, logo era uma notícia que interessava aos nossos leitores. Mais: na mesma peça também se referia a abertura de uma loja do Pingo Doce em Santa Apolónia, pois esta inaugurava um novo conceito da marca. Por outro lado, da mesma forma que o editor não se sentiu condicionado por publicar uma notícia sobre dois supermercados de cadeias concorrentes à que pertence ao accionista do PÚBLICO, se soubesse da existência do anúncio isso devia ser-lhe indiferente no acto de tomar a decisão. Só o valor noticioso do evento (que pode ser discutível, como o de todas as notícias, mas à luz apenas de critérios jornalísticos) devia ter tomado em consideração. Foi isso que aconteceu’.
O provedor não quer (nem deve) interferir na liberdade de escolha dos editores quanto aos objectos de notícia, mas, nesta época em que as agências de comunicação e os departamentos de relações públicas das grandes instituições e sociedades aspiram cada vez mais (e com êxito cada vez maior) a conformar as opções editoriais dos órgãos de informação, não pode deixar de alertar para a necessidade de manter sempre, nas matérias publicadas, a linguagem e o tipo de escrutínio que são apanágio do bom jornalismo.
Luiz Filipe F. R. Thomaz (L.F.T.), director do Instituto de Estudos Orientais (IEO) da Universidade Católica, reclamou ao provedor por no artigo ‘Mais de uma centena de alunos do superior aprendem Chinês’, assinado por Bárbara Wong (B.W.) e publicado na pág. 9 da edição de 20 de Outubro, ‘sobre o ensino do chinês e da civilização chinesa no nosso país’ e onde se nomeiam ‘os estabelecimentos que ministram tais disciplinas’, não haver menção ao seu departamento: ‘Lamentavelmente, da enumeração não consta o nosso Instituto, que, para mais, é, tanto quanto sabemos, o único que ministra esse ensino a nível de mestrado’.
Para o queixoso, a lacuna fará tanto menos sentido quanto a existência do IEO já fora comunicada a B.W.: ‘Em 2006, passara-se exactamente a mesma coisa, tendo a citada jornalista argumentado que a sua omissão de devera a ignorância e prometido que de futuro levaria em linha de conta as informações que então lhe fornecemos’. Com efeito, na correspondência electrónica trocada entre os responsáveis do IEO e B.W. há cerca de dois anos, de que L.F.T. enviou cópia ao provedor, a jornalista escreveu: ‘Peço desculpa pela falha. De facto estive na internet à procura de todos os cursos de chinês e fui descobrindo-os e tentando falar com os responsáveis. Desconhecia as vossas iniciativas’.
Mas o reclamante recusa fazer um processo de intenções: ‘Embora esteja crente de que esta nova omissão de deveu a negligência e não a qualquer intuito discriminatório em relação a este Instituto, há que reconhecer que ela redunda em prejuízo dele, pois vem a equivaler na prática a uma espécie de propaganda negativa que nada fizemos por merecer’.
Solicitada pelo provedor, B.W. justificou: ‘O texto era sobre licenciaturas em Estudos Orientais; para tal recorri às listagens do Concurso Nacional de Acesso (ao ensino superior), feitas pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior. Nessas só aparecem os cursos da Universidade do Minho e do Instituto Politécnico de Leiria (…). Do que me lembrava, da troca de e-mails em 2006 com o responsável do IEO, é que as formações que leccionavam eram cursos livres e pós-graduações. Portanto, a sua oferta não se enquadrava no que procurava, que eram as licenciaturas, e, de facto, só existem estas duas, uma vez que o curso do IEO é um mestrado’.
Formalmente, a jornalista tem razão, embora, com tão escassa formação de chinês em Portugal, não fosse despropositado mencionar o IEO, até para corresponder ao título da notícia, que apenas se refere aos alunos do ensino superior em aprendizagem desta matéria.
Aliás, o texto procurava informar ainda da existência de outro tipo de cursos: ‘Além das licenciaturas, as universidades do Minho, de Lisboa, a Nova de Lisboa, a Técnica de Lisboa, a de Coimbra, a do Porto, e o Instituto de Engenharia de Coimbra oferecem cursos livres’. E pelo menos aqui os cursos livres que também o IEO promove ficaram de fora.
CAIXA:
Atenção às letras
A ortografia ocupa lugar especial nas preocupações dos leitores: ‘Foi com desagrado que constatei erros de ortografia bastante graves no artigo de 8 de Dezembro [Edição Porto] ‘Último Clubbing do ano ao som dos The Faint e dos portuenses Sizo’, escreve a leitora Marta Nunes Leão. ‘Na frase ‘A expontaneidade e entrega em palco também contribuiram para que a inclusão do grupo no programa do Clubbing não destoasse, embora grande parte do entusiasmo se podesse, também, explicar…’, é possível encontrar três erros ortográficos: ‘expontaneidade’ não se escreve com ‘x’ mas com ‘s’; ‘contribuiram’ está sem acento no segundo ‘i’ e ‘pudesse’ não é escrito com ‘o’ mas com ‘u’. Onde está o trabalho de revisão dos artigos deste jornal de referência?!’
José João D. Carvalho foi ainda mais atento: ‘Tem sido rara a ocasião em que leio um artigo do PÚBLICO sem encontrar uma falha ou erro ortográfico (…). Ontem [10 de Dezembro] fiquei envergonhado quando um colega alemão, que está a aprender português, me pediu que lhe clarificasse duas passagens em artigos vossos [no PUBLICO.PT]. Na notícia ‘Nova manifestação de milhares de pessoas em Atenas’, aparece a seguinte frase: ‘As duas grandes centrais sindicais do país, a Confederação General dos Trabalhadores Gregos…’. Não diríamos Confederação Geral de Trabalhadores? (…) Na notícia ‘Grécia: Adolescente foi morto por ricochete de bala disparada pela polícia’, escreve-se: ‘Fazia aparte de um grupo de cerca de 30 pessoas…’. Perguntava-me o meu colega o que queria dizer a expressão, pois não fazia sentido; ao que tive de responder que era um erro de impressão. Hoje deparo outra vez com uma dúvida, pois não sei se se trata de um erro ou se o entrevistado quereria mesmo dizer ‘enfardar’ em vez de ‘enfadar’: ‘Grilo, novamente: É muito mais fácil, daqui por 20 anos, as pessoas enfardarem-se com o Bergman do que com o Oliveira’ [‘Não existem cinco cineastas que sejam assim tão livres’, 11 de Dezembro, pg. 4]’.
O provedor, que se enfarda de Ingmar Bergman sem se enfadar dele, compreende a perplexidade do leitor, o qual lança ainda um alerta muito pertinente: ‘Vejo por vezes também uma tentativa de utilização de palavras menos comuns que em nada, em minha opinião, enriquecem o texto das notícias. (…) Por vezes o keep it simple [manter a simplicidade], com uma boa estrutura de texto e linguagem corrente mas apropriada, resulta numa notícia mais elegante e sóbria’.’