Manchetes dos jornais franceses de segunda-feira (30/5):
L’Humanité – ‘55% – Le peuple dit NON à l’Europe libérale’ (55% – o povo diz NÃO à Europa liberal)
Libération – ‘Le jour le plus NON – 54,86% contre la Constitution’ (o dia mais NÃO – 54,86% contra a Constituição)
Le Figaro – ‘La France sonnée par le Non, Chirac à l’heure des consultations’ (a França aturdida pelo Não, Chirac em negociações)
Le Monde – ‘Chirac désavoué, l’Europe déstabilisée’ (Chirac desaprovado, a Europa desestabilizada)
La Tribune – ‘NON! Le séisme’ (NÃO! O cisma)
Le Parisien – ‘55% pour le NON – C’est enorme’ (55% pelo NÃO; é muito)
Le Monde (versão online, 31/5) – ‘EXTRA! EXTRA! C´est Dominique de Villepin le nouveau premier ministre’ (extra! é Dominique de Villepin o novo primeiro-ministro)
O resultado do referendo francês sobre a Constituição Européia marcou o começo do fim da longa era Jacques Chirac. Depois de alimentar por meses o debate em torno do tratado constitucional, a imprensa francesa dedica-se agora a analisar exaustivamente o pós-referendo, o panorama político do país e a nova fase da construção européia.
O ‘não’ francês, uma catástrofe anunciada para o governo Chirac, é visto como uma vitória da esquerda pois foi esse eleitorado que fez pender a balança. O resultado promete ser contagioso e influenciar os eleitores holandeses, que vão às urnas na quarta-feira (1º/6) para decidir que se aceitam ou não a Constituição Européia.
Uma coisa é certa: com a vitória do ‘não’ com 54,87% dos votos do referendo francês, Chirac, que ainda tem dois anos de governo, não pode mais alimentar o sonho de um terceiro mandato de mais cinco anos – o que era, segundo se especula, sua pretensão secreta caso o ‘sim’ fosse majoritário. A Constituição francesa permitiria, mas os eleitores lhe cassaram a ilusão.
‘Novos romanos’
O presidente Jacques Chirac usou a televisão duas vezes para defender o ‘sim’. Num primeiro programa, respondeu às perguntas de jovens de várias profissões e cidades, vindos ao Palácio do Eliseu. Tentou ser didático e enfrentou críticas com o fair-play de um político tarimbado. Mas garantiu ao jornalista Patrick Poivre d’Arvor, que mediava o debate, que em caso de vitória do ‘não’ não deixaria o poder – como fez De Gaulle quando perdeu um referendo, em 1969.
A segunda intervenção do presidente foi um discurso curto e formal, na quinta-feira (26/5) que precedeu o referendo. Nas duas vezes, os jornais no dia seguinte não pouparam críticas a Chirac.
Como o pequeno vilarejo de Astérix, que enfrentou os romanos, a França atual resistiu com um ‘não’. Os nacionalistas de direita liderados por Jean-Marie Le Pen resistiram para proteger a bandeira, o hino e os velhos valores de uma França que não querem cosmopolita. E a França da esquerda e dos altermundialistas, moderna mas defensora de valores sociais, resistiu para preservar o serviço público e as aquisições sociais dos trabalhadores – uma ‘exceção francesa’, contra a ameaça da globalização neoliberal. Essa esquerda disse ‘não’ à invasão dos ‘novos romanos’ representados pelos valores neoliberais embutidos, segundo eles, na Constituição Européia.
Ovelha negra
Num país onde o voto não é obrigatório, mas um direito do cidadão, os debates na televisão, nos jornais e nas rádios fizeram os franceses redescobrirem o gosto pela política. Correndo o risco de levarem a França a ser considerada ‘a ovelha negra’ da Europa, como ameaçou sutilmente Chirac na televisão, os franceses disseram majoritariamente ‘não’ à Constituição e aos que os governam – estes, os mais ardentes defensores do tratado constitucional, visto como ultraliberal.
Para convencer os franceses que defendem os serviços públicos, os direitos trabalhistas e uma Europa ‘social’, Chirac chegou a argumentar que a Constituição Européia não é de direita nem de esquerda. Um governo de esquerda, mesmo sob a égide desse tratado, poderia, segundo ele, impor políticas de esquerda; e um de direita, políticas de direita. Os eleitores não acreditaram.
Tirar lições do ‘não’ dos eleitores franceses vai ser difícil para um presidente que se manteve surdo à derrota devastadora de seu partido – a UMP, Union pour un Mouvement Populaire – nas eleições regionais do ano passado, vencidas pelo Partido Socialista. A popularidade do primeiro-ministro de direita Jean-Pierre Raffarin vem descendo a ladeira vertiginosamente há muitos meses, mas Chirac ignorou as manifestações de várias categorias contra seu governo e manteve Raffarin.
Quando os franceses votam contra o tratado constitucional europeu dizem também ‘não’ a um governo que vem decepcionando no combate ao desemprego, principal preocupação do país. Pesquisadores, profissionais da saúde e estudantes secundários fizeram passeatas barulhentas pedindo reformas ou protestando contra elas – e Raffarin limitou-se a responder que ‘não é a rua que governa’.
O referendo revelou uma realidade política paradoxal e quase surrealista. Havia o ‘não’ de direita e o ‘não’ de esquerda; o ‘sim’ de direita e o ‘sim’ de esquerda – o que tornava bastante confusa a discussão sobre o tratado. Nesse debate, a lógica de direita e esquerda foi completamente subvertida. Por verem nele virtudes e defeitos completamente díspares, tanto a extrema-direita de Le Pen (Front National) quanto a extrema-esquerda da Liga Comunista Revolucionária (LCR) e Luta Operária, além da esquerda tradicional do Partido Comunista (PCF) e parte do Partido Socialista, representado por Laurent Fabius, Henri Emmanuelli e Jean-Luc Mélenchon, fizeram comícios e encontros para defender o ‘não’.
Os eleitores de Le Pen, obviamente, votaram ‘não’ por serem anti-europeus, nacionalistas e xenófobos, enquanto os eleitores da LCR e do PCF, os altermundialistas e os do PS votaram ‘não’ por julgarem o tratado um instrumento neoliberal que ameaça os serviços públicos e a proteção social na Europa.
Quanto ao ‘sim’ de direita, ele correspondia aos eleitores da UMP, partido de Chirac, do UDF e do Partido Verde (de esquerda), além de parte do Partido Socialista. Este, aliás, é um dos grandes perdedores do referendo, pois sai dividido dessa campanha. Enquanto uma parte dos líderes socialistas defendia o ‘não’, François Hollande e o ex-ministro Dominique Strauss-Kahn faziam campanha pelo ‘sim’, reforçado pelo retorno inesperado de Lionel Jospin.
Para defender o ‘sim’ os políticos importaram europeus de diversos países: Chirac convidou Gerard Schröeder, os socialistas trouxeram José Luis Zapatero e os verdes foram buscar o deputado europeu pela Alemanha, Daniel Cohn-Bendit, o enfant terrible de maio de 1968, além do filósofo Toni Negri.
O debate onipresente na mídia
Quem leu jornal, viu televisão ou ouviu rádio na França nos últimos dias antes do domingo não pôde escapar ao amplo debate que se abriu para analisar o tratado constitucional, também chamado de Constituição Européia. A imprensa francesa cumpriu seu papel de informar, e de tal forma analisou o que estava em jogo para o país que verificou-se a maior taxa de participação eleitoral nos últimos anos: 70% dos eleitores foram votar. Mas nenhum jornal fingiu neutralidade. A maioria defendeu o ‘sim’ mesmo tentando dar espaço igual nas reportagens e artigos aos que defendiam o ‘não’.
Poucas pessoas tiveram a paciência de ler o texto do tratado – longo demais e escrito em linguagem especializada. A maioria dos cidadãos preferiu ler as entrevistas de políticos, juristas, cientistas sociais e sindicalistas para formar uma opinião.
A tarefa de explicar o tratado, no entanto, não era fácil. Como a Bíblia, ele deu lugar a todo tipo de interpretação e a seu contrário. Intelectuais e políticos de todo o espectro político escreveram centenas de artigos e deram entrevistas para defender o ‘sim’ ou o ‘não’ baseados em interpretações que podiam, depois, ser totalmente desmentidas – com apoio no mesmo texto – por partidários do outro campo.
A imprensa pendeu para o ‘sim’. Quase todos os grandes jornais declararam abertamente o apoio ao tratado. Mesmo assim, a campanha foi coberta com relativa imparcialidade pelos jornais Le Monde e Libération, ainda que um ligeiro favoritismo para o ‘sim’ pudesse ser visto no noticiário. O fato de darem diariamente espaço a artigos de defensores do ‘sim’ e do ‘não’, em igual proporção, não impediu que tanto um quanto o outro apoiasse abertamente o ‘sim’ em editoriais publicados na véspera do referendo de 29 de maio.
Le Figaro, adquirido no ano passado pelo industrial Serge Dassault, fabricante de armas e grande amigo e financiador de campanhas de Jacques Chirac, era claramente pelo ‘sim’.
Le Nouvel Observateur, a revista semanal mais lida pela esquerda socialista (que os críticos mais à esquerda chamam de ‘esquerda caviar’), não se furtou a apoiar abertamente o ‘sim’ em reportagens e em editoriais. No número que antecedeu o referendo, o Nouvel Obs saiu com uma capa sem imagens, apenas com uma frase do artigo assinado pelo diretor Jean Daniel:
‘Carta a um amigo partidário do não… Se o não ganhar, como a França poderá fazer com que esqueçam que ela terá se mostrado indigna das esperanças despertadas e indiferente a seu papel na História?’
O único jornal a fazer campanha aberta pelo ‘não’ no noticiário e nos artigos assinados foi o comunista L´Humanité, que já foi o ‘órgão oficial do Partido Comunista Francês’. A TV e o rádio, principalmente as estações públicas, depois de serem acusadas de darem mais tempo aos defensores do ‘sim’ retificaram o tiro.
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Jornalista