Na profusão de fatos gerados pelo terremoto político-jurídico-midiático, a partir das primeiras horas da manhã da última sexta-feira (04/03), com a “condução coercitiva” do ex-presidente Lula, em São Paulo, o jornal Valor Econômico “navegou” na crista da onda e brindou o distinto público com uma esdrúxula edição (sábado, domingo e segunda-feira, 5, 6 e 07 de março de 2016).
O Valor não deixou por menos e depôs Dilma Rousseff: “Mercado já opera com mudança de governo” (veja imagem). O texto, assinado pela jornalista Claudia Safatle, diretora adjunta de redação da sucursal de Brasília, é um arrazoado político que busca se sustentar em dados financeiros, gerados pela movimentação esotérica do “deus” mercado.
Safatle escreveu: “O avanço da Operação Lava-Jato abre dois caminhos para a economia brasileira: o de uma paralisia ainda maior do governo Dilma Rousseff ou o da real possibilidade de mudança. Foi com essa visão binária que os mercados reagiram, na sexta-feira, à condução coercitiva do ex-presidente Lula para prestar depoimento na Polícia Federal, em São Paulo”.
O texto contém um erro de informação: o local não foi a Polícia Federal, mas sim o aeroporto de Congonhas, porque o destino de Lula era Curitiba – esse era o desejo do juiz Sérgio Moro. No entanto, a operação foi “abortada” no meio do caminho… Na sede da PF, na capital paranaense, já havia mobilização e a presença do impoluto deputado Jair Bolsonaro, que soltava rojões comemorando a “prisão de Lula”.
Mercado dividido?
O que me causou espanto não foi apenas o texto de capa do Valor, cujo sentido obscuro das forças ocultas, subjacentes ao vernáculo “mercado”, mas especialmente o título da página A5: “Mercado se divide sobre o sentido da Lava-Jato” (confira imagem), igualmente assinado por Safatle. Não há, rigorosamente, nenhuma mísera informação que sustente esse título.
Li e reli a reportagem de capa (página A5) e ali só encontrei o detalhamento dos sinais emitidos pelos “deuses” do mercado financeiro, sob intenso movimento especulativo lastreado pelo terremoto desencadeado pelo juiz Moro: “O comportamento dos mercados na sexta-feira reforçou essa expectativa. A Bolsa de Valores fechou em alta de 4,01%, aos 49.085 pontos. A valorização do real frente ao dólar, que bateu na mínima de R$ 3,65, foi uma primeira demonstração do ganho cambial que haveria com a perspectiva de uma política econômica mais austera conduzida por uma nova administração. A depreciação do câmbio hoje é uma das mais relevantes fontes de inflação. O dólar encerrou o dia cotado a R$ 3,75”.
De todo modo permanece a dúvida: qual a informação é verdadeira? A manchete diz que o “mercado já opera com mudança de governo”, mas o título da matéria (p. A5) ressalva que essa mesma entidade mística “se divide sobre o sentido da Lava-Jato”.
O que fica patente, a meu modesto juízo, é a pressa em faturar politicamente. Para além do protagonismo político-partidário, causa total estranheza que um jornal da qualidade do Valor Econômico se deixe contaminar pela narrativa rastaquera e totalmente enviesada que percorreu os quatros cantos do monopólio de mídia, desde a madrugada de 04 de março.
Uma operação frustrada
O que se pode concluir, à guisa de breve reflexão provisória e no meio da travessia, é que a santa aliança mídia-mercado deu com os burros n’água. Agindo em sintonia com os operadores da Lava-Jato, os principais veículos armaram um espetáculo de repercussão mundial.
Para os portais noticiosos de grandes veículos internacionais (cujas manchetes eu ouvi num rádio de táxi, no trânsito, naquela manhã, em Brasília), a operação “Aletheia” (verdade, em grego), desencadeada por Moro e seus auxiliares, o ex-presidente Lula fora preso, acusado de corrupção no caso Petrobras. Nenhuma palavra publicada retornará à fonte.
No entanto, o que exatamente deu ruim na ideia planejada (e sonhada há dois anos por Moro)? Para a professora e pesquisadora Sylvia Debossan Moretzsohn (UFF), “já pela manhã alguma coisa começou a fugir do script. A notícia de que o ex-presidente estava depondo no posto da Polícia Federal no aeroporto de Congonhas gerou um tumulto que confrontou partidários e opositores do PT. O jogo virou quando, depois de liberado, Lula dirigiu-se à sede de seu partido e abriu o verbo, num discurso de quase meia hora que misturou indignação e ironia e foi transmitido ao vivo pela televisão” (Fonte – objETHOS: http://migre.me/tb3XC).
Surpresa geral, para quem esperava encontrar o ex-presidente Lula alquebrado e de cabeça baixa. Sylvia lembra que a jornalista Natuza Nery, que edita a coluna Painel (Folha de S. Paulo), publicou: “Há meses se dizia: um erro na Lava Jato transformaria Lula em vítima. E há meses petistas diziam que isso fatalmente ocorreria”. Ao que tudo indica, o dia chegou…
O vazamento da informação para os setores da mídia hegemônica que comandam o “espetáculo” também não foi disfarçado, como anotou precisamente a pesquisadora: “Ainda no início da madrugada, o editor-chefe da revista Época, Diego Escosteguy, nem se preocupava em disfarçar a informação privilegiada que recebera: pelo twitter, alimentava as expectativas para o amanhecer que teria “tudo para ser especial, cheio de paz e amor” e tripudiava dos que, encurralados, estariam com seu “destino selado”. Os tweets de Escosteguy tornaram-se públicos, nas redes sociais.
Os porta-vozes do esquema mídia-mercado-moro pareciam perplexos e repetiram, durante toda a extensa cobertura, chavões na vã tentativa de convencer os incautos e midiotas. Na edição do Jornal Nacional (TV Globo) daquela noite, pesou a mão e o desequilíbrio foi total, sem pudor, desnudo: a jornalista Bia Barbosa, do Coletivo Intervozes, checou o tempo: “Sem uma única crítica à operação, Jornal Nacional dedicou 85% do tempo a acusações contra Lula” (Fonte: http://migre.me/tb5wJ).
Bia minutou os blocos mais importantes: a) “Primeiro bloco do JN: 21 minutos de matérias, e nada mais que cinquenta segundos (25 vezes menos) com a posição da defesa; b) Segundo bloco: mais 15 minutos de matérias. Vinte segundos com a posição do ex-presidente e 20 segundos com uma fala de Paulo Okamotto, presidente do Instituto Lula; na matéria sobre o tríplex do Guarujá, sete segundos para citar a nota do Instituto Lula em 2 minutos e cinquenta segundos de reportagem; c) Quase 40 minutos desde o início do JN tinham se passado quando foi ao ar a primeira fala de Lula, na matéria sobre a declaração que ele fez à imprensa e à militância na sede do Diretório Nacional do PT. Lula teve voz por sete minutos e meio. Um minuto e quinze de Dilma criticando a operação vieram na sequência”.
Uma das vozes mais contundentes contra a condução “coercitiva” foi o ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal. Na contramão do linchamento midiático, Mello alertou: “Condução coercitiva? O que é isso? Eu não compreendi. Só se conduz coercitivamente, ou, como se dizia antigamente, debaixo de vara, o cidadão que resiste e não comparece para depor. E o Lula não foi intimado. Se quiserem te ouvir, vão fazer a mesma coisa? Conosco e com qualquer cidadão?”.
E valho-me da palavra lúcida do ministro para concluir: “A pior ditadura é a do Judiciário”. A ver os desdobramentos da Lava-Jato nos próximos dias, horas…
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Samuel Lima é professor da UFSC e pesquisador do Laboratório de Sociologia do Trabalho (LASTRO/UFSC) e do objETHOS .