No dia 28/12, quando as vítimas do maremoto que atingiu países do Oceano Índico ainda eram estimadas em ‘apenas’ 25 mil, o jornal italiano la Repubblica publicou dois artigos. O primeiro, assinado por Francesca Cafierri, tinha o seguinte título: ‘Podiam ser salvas muitas vidas’. Logo no início se lia: ‘O terremoto que deu origem à tsunami e devastou a Ásia não podia ser previsto, nem de forma alguma era possível pará-lo. Mas logo depois do abalo se podiam prevenir as áreas de perigo e lançar uma ordem para sua desocupação. Ninguém o fez, por quê?’.
Na seqüência da matéria, além da pergunta não-respondida, dois técnicos mostravam que nada poderia ter sido feito, mesmo com a tal advertência.
Na mesma página, Lucio Culis, sob título ‘EUA e Japão sabiam, seria suficiente um aviso via rádio’, entrevistava o escritor francês Dominique Lapierre, autor de um best-seller sobre a catástrofe industrial de Bopal, na Índia, onde o vazamento de gás tóxico de uma multinacional de fertilizantes [Union Carbide, hoje Dow Chemical] matou milhares de pessoas. O entrevistado, sem meias palavras, declarou:
‘Os EUA e o Japão deviam dividir seus conhecimentos sobre tsunamis com os países envolvidos por esse muro de água. Muita pobre gente poderia ter-se salvado… Lá, nas costas atingidas, tem gente acostumada a enfrentar ciclones. Pescadores habituados a ouvir e a depender do rádio. Sim, as suas vidas, com muita freqüência, dependem de simples, banais radinhos e transmissores, que descrevem o movimento e as mudanças das trajetórias dos ciclones. (…) Não quero acusar ninguém. Contudo, por aquilo que entendi, existem problemas burocráticos que se arrastam por muito tempo. Existem graves lacunas no sistema de transmissão desses conhecimentos que podiam ser comunicados em tempo útil. Horas preciosas se passam entre o abalo sísmico e a chegada da onda’.
Sempre tive la Repubblica como um jornal sério, tanto que faço dele minha leitura diária (leio outros jornais em dias específicos), mas tenho notado que ultimamente o lide não coincide com o conteúdo da matéria, como no caso do primeiro artigo, que leva o leitor a acreditar que, por negligência, muitas vidas não foram salvas, fato ainda reforçado pelo primeiro parágrafo.
Errou mais o editor
No segundo artigo, a coisa piora: o entrevistado era completamente leigo no assunto, e o demonstra quando põe no mesmo pacote ciclones e maremotos. No Oceano Índico, os primeiros são comuns, enquanto as ondas anômalas são quase desconhecidas. O fato de ter escrito um livro sobre um acidente industrial não o credencia a opinar e lançar verdades absolutas sobre abalos sísmicos. Ele ainda tenta dar uma de bom moço dizendo que não quer acusar ninguém, mas de fato acusa dois países que desenvolveram técnicas de detecção de ondas anômalas.
Quem entende realmente do assunto refuta a opinião de Dominique Lapierre. Os países atingidos pela catástrofe, mesmo avisados muitas horas antes de que haveria um maremoto, não tinham a mínima condição de desocupar as cidades. Para isso são necessários anos de preparação e treinamento. O mínimo que poderia acontecer era causar uma onda de pânico. No máximo, poderiam ser salvos alguns turistas.
No primeiro artigo, errou a jornalista em manter um lide enganoso; no segundo, Dominique Lapierre disse o que pensava – errou o entrevistador em não se aprofundar no assunto. E errou mais do que todo mundo o editor, que permitiu a publicação de matérias de tão baixa qualidade jornalística.
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Jornalista