A recomendação, a primeira vista desastrada, partiu de um obscuro secretário de Segurança Pública do estado de Tamaulipas, no nordeste mexicano: se os jornalistas se sentem cada vez mais ameaçados, então que consigam na delegacia mais próxima um porte de armas e assim poderão defender melhor sua integridade física.
Isso não é coisa que diga uma autoridade pública, sobretudo da área de segurança, mas é importante conhecer o contexto dessa manifestação estapafúrdia: em seis anos foram assassinados no México 25 jornalistas, cinco dos quais nos últimos seis meses. Todos fuzilados de forma implacável, à luz do dia, em ruas apinhadas de gente, e nada aconteceu aos pistoleros e seus mandantes. Sindicatos da categoria e os grupos de direitos humanos, indignados, agora protestam com maior vigor e pedem providências imediatas e efetivas as autoridades federais. O México estava em segundo lugar na América Latina em matéria de violência contra jornalistas (o primeiro era da Colômbia) e agora é o líder do ranking macabro.
A vítima mais recente, Guadalupe García Escamilla, repórter e locutora de rádio de Nuevo Laredo, no estado de Tamaulipas, fronteira com o Arizona, morreu sábado (16/4), devido a uma insuficiência hepática, depois de agonizar cinco dias num hospital. Recebeu nove balas à queima-roupa, no estacionamento da emissora, uma das quais destroçou-lhe o fígado.
Enquanto o presidente Vicente Fox, constrangido, promete mandar investigar esses crimes ‘com toda a força do Estado e o rigor da lei’, os jornalistas mais informados insistem com a Procuradoria da República para que siga a pista de sempre, de todos bem conhecida: esses crimes se relacionam com o problema maior do México, o tráfico de drogas (cocaína, maconha e heroína), localmente conhecido como el narcotráfico, com fortíssimo, perturbador poder econômico e muito bem armado – braços paramilitares incluídos.
Funcionam no México, de norte a sul, oito cartéis da droga – os três principais são dos irmãos Carrillo, de Arellano Félix e do El Chapo Guzmán. Os jornalistas que se atrevem a rastrear os movimentos desses cartéis, e depois denunciá-los em suas matérias, são perseguidos, torturados, mutilados e quase sempre assassinados.
Morte na fronteira
O agravamento dessa situação muito se deve também ao agitado clima político do país, em que os três principais partidos políticos – PRI, PRD e PAN – já partem para o tapa e os empurrões no Congresso para ver quem ganha e leva as eleições presidenciais de 2006.
O foco principal dessa briga de poder é neutralizar, de todas as formas, a ascensão da esquerda, agora representada pelo governador da Cidade do México, Andrés Manuel López Obrador, (do PRD, Partido de Revolución Democratica), que há pouco dias perdeu sua imunidade por causa de um processo judicial e assim não terá, pelo menos por agora, condições de candidatar-se e chegar à presidência da República – façanha nada remota, segundo analistas da imprensa mexicana. Porém, sua persistência megalomaníaca em ficar no palco, por meio de recursos populistas, com discursos enrolados e monótonos, torna ainda mais aceso o ambiente político na capital e, por tabela, no país.
Nos estados mexicanos onde a violência é mais comum, como os do norte do país, os jornalistas são vítimas dos conflitos locais, muitas vezes atiçados pelos narcotraficantes financiadores de políticos mafiosos que, por sua vez, na base da corrupção e violência, tentam controlar a imprensa – hoje mais corajosa e honesta neste país. Sempre aparece algum jovem audacioso, idealista, ou um veterano quixotesco em busca de uma aposentadoria heróica, para romper o precário equilíbrio desse controle. E não dá outra: levam chumbo, de preferência pelas costas.
A fronteira com os Estados Unidos, área de conflito crescente entre os dois países, é outro fator que só piora a situação: os capi da droga operam dos dois lados, muitas vezes com a conivência dos gringos, envolvendo-se no rendoso negócio de passar trabalhadores mexicanos para el otro lado, vítimas inocentes da chamada busca do sonho americano.
Tão complexa e sinistra é a situação na fronteira que, há poucas semanas, um grupo de cidadãos americanos armados do Arizona – os minutemen, dedicados a caçar imigrantes ilegais – foram ameaçados pelos homens das drogas: quem matar mexicanos, morre. Os minutemen não recuaram totalmente, mas conhecendo o poder de fogo da droga deram uma maneirada em suas investidas covardes, atrás de gente desarmada, faminta, sedenta, perdida e abandonada nos desertos e rios da área fronteiriça.
Os coitados dos imigrantes ilegais só querem trabalhar e morar um tempo nos Estados Unidos, juntar muitas verdinhas, voltar para casa e montar um changarro (negócio próprio) – a independência econômica, enfim, que não conseguem em seu próprio país.
Todos os anos pelo menos 1 milhão de mexicanos tenta essa travessia perigosa, não poucas vezes mortal, mas só 400 mil entram nos Estados Unidos e se convertem em escravos de empresários negreiros, carentes de mão-de-obra fácil entre sua própria gente – negros e brancos que recusam os serviços sujos.
Os mexicanos, sem volta atrás, pegam qualquer coisa por salários de fome, moram como bichos em esconderijos, vivem insones e apavorados com a sirena de la migra (a temível patrulha de imigração).
Os jornalistas, entusiasmados com um campo tão fértil para investigar e escrever matérias de denúncias, acabam entrando também na mira de grupos que controlam a fronteira dos dois lados. Um pouco como aquele filme Traffic, com Michael Douglas e Benicio del Toro.
Chá de cadeira
Atacado duramente pela oposição, desprestigiado em nível popular por conta de promessas eleitorais não cumpridas, torpedeado por um Congresso que barra todas suas iniciativas importantes, o presidente Fox se defende estoicamente apresentando, como uma das conquistas maiores do seu governo, a total liberdade de expressão no país, sobretudo na imprensa.
Nem mesmo seus adversários mais ferrenhos poderiam negar esse mérito a Fox, que, já mostrando sinais de cansaço, não esconde seu sonho maior: a aposentadoria de fazendeiro rico, em meio a cavalos e bois de raça. Jornais, rádios, televisões e sítios de internet dizem o que bem entendem dele e de sua mulher, Marta Sahagún, não poucas vezes em matérias ofensivas, e ninguém – ao contrário do que acontecia no passado, quando o regime não perdoava – sofre ameaças, perde emprego ou é rebaixado na redação.
De modo geral tem sido assim, é verdade, mas, na atual situação, Fox e sua equipe de novo não cumprem o que afirmam. Queixa-se, por exemplo, a Associação Mexicana de Editores de Jornais, que congrega 125 diários do país, ‘da falta de tato e ofício político do presidente’, pois nem ele nem seu ministro do Interior (Gobernación), Santiago Creel, aceitam receber os jornalistas numa audiência para pelo menos ouvi-los.
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Jornalista, escritor e tradutor brasileiro radicado na Cidade do México