Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

José Queirós

‘Em plena crise da eurolândia, o presidente da Comissão Europeia, Durão Barroso, deu ao jornal alemão ‘Frankfurter Allgemeine Zeitung’ (FAZ) uma entrevista em que comentou, num tom que surpreendeu muitos analistas, algumas posições recentemente assumidas pelo Governo de Berlim. Foi uma ‘intervenção inusitada, sem papas na língua’, para citar o New York Times. Entre as primeiras reacções dos media europeus à entrevista, publicada na passada terça-feira, lia-se por exemplo que ‘Barroso, que tem sido acusado de não ser suficientemente directo quando se trata dos maiores Estados-membros, foi invulgarmente franco na avaliação global que fez do modo como a Alemanha lidou com a crise grega’.

A entrevista teve larga repercussão internacional. Em Portugal, o PÚBLICO dedicou uma página da edição da passada quinta-feira às declarações do presidente da Comissão, às reacções que suscitaram e ao contexto em que surgiram. ‘Relações entre Bruxelas e Berlim continuam a deteriorar-se’, lia-se no antetítulo de uma peça assinada por Isabel Arriaga e Cunha, correspondente em Bruxelas, a anteceder um título um tanto bombástico: ‘Merkel, ‘ingénua’ e ‘autista’, ouviu de Barroso aquilo que muitos só ousam pensar’.

O leitor José Manuel de Melo Beirão, de Oeiras, leu a entrevista ao FAZ e manifestou-se ‘indignado’ com o artigo do PÚBLICO, que classificou de ‘mentira indecente’. Afirmou que ‘nada do que ali está escrito vem na entrevista do jornal alemão’, em que diz não ter encontrado nenhuma alusão a Angela Merkel como ‘ingénua’ ou ‘autista’, nem a ideia, exposta em subtítulo e atribuída a Barroso, de que a Alemanha teria revelado ‘uma total falta de liderança face ao ataque à moeda única’. Contestou ainda que da entrevista se possa extrair a acusação, que a peça do PÚBLICO diz ter sido ‘implicitamente’ feita pelo presidente da Comissão à governante alemã, de ‘ter agravado a crise do euro por causa das suas hesitações sobre o apoio da eurolândia à Grécia’. O leitor concluía dizendo que se tratava de ‘um texto deturpado e tendencioso’ e pedindo-me que lesse a entrevista ao FAZ para o ‘confirmar’.

Assim fiz, e direi o que pude concluir. Mas parece-me útil que os leitores conheçam também as explicações da autora do texto. Isabel Arriaga e Cunha considera que o leitor de Oeiras ‘só tem razão na crítica que faz ao título’, que poderá ‘gerar algum mal-entendido’ e não é da sua autoria, embora assuma ‘a responsabilidade’ por ele.

‘Em parte alguma do texto afirmei que Durão Barroso acusou Angela Merkel de ‘autista’ e ‘ingénua’. Durão Barroso disse, e foi o que eu escrevi, que é ‘uma ingenuidade’ a Alemanha pensar que conseguirá convencer os parceiros a reabrir o tratado da UE para consagrar as suas pretensões de reforço da disciplina orçamental e das sanções aos países incumpridores, sem que outros governos tentem introduzir alterações’. Não se tratava aqui de uma citação ipsis verbis da entrevista, mas de sublinhar uma das principais ideias nela expressas – o que a jornalista fez a partir dos despachos de agências noticiosas em francês e inglês. ‘Se a tradução dos propósitos de Barroso está errada’, diz, ‘então admito que errei, mas como eu dezenas de outros jornalistas’. Não errou. Li as declarações originais ao FAZ, e não há qualquer problema de tradução ou de interpretação. Como aliás seria de esperar, já que o termo escolhido pelo líder da Comissão para qualificar as pressões alemãs para alterar o Tratado de Lisboa foi realçado e usado em título na generalidade dos media internacionais, a começar pelo próprio diário alemão, num texto prévio de anúncio à entrevista (‘Os desejos alemães são ingénuos’, FAZ, 24/5).

Por outro lado, ‘a frase sobre o comportamento ‘autista’ ou a referência à falta de liderança [da Alemanha] não são de modo algum atribuídas a Durão Barroso, mas resultam da análise que é feita (…) por ‘muitos responsáveis e economistas europeus’’, sublinha a jornalista. É, de facto, o que se lê na peça que assinou.

Temos assim um título manifestamente infeliz, que sugere facilmente, a quem não leia o texto com atenção, que ‘ingénua’ e ‘autista’ teriam sido termos usados por Barroso para qualificar a chanceler alemã. O subtítulo não é melhor: ‘A Alemanha não explicou à sua opinião pública a importância do euro e revelou uma total falta de liderança face ao ataque à moeda única, disse o presidente da Comissão Europeia’. A primeira parte desta frase é aceitável: Barroso disse que ‘é um facto que, nos últimos anos, não houve na política alemã vozes suficientemente vigorosas, em nenhum dos principais partidos, que tivessem explicado ao público como é importante para a Alemanha ter o euro’. Mas a segunda é abusiva, quer face ao conteúdo da entrevista, quer face ao texto que encabeça: pense-o ou não, Barroso não disse o que se escreveu que ‘disse’. Estes erros, como já se compreendeu, não são da responsabilidade da jornalista, ainda que a queira generosamente assumir.

Mas o leitor José Beirão visou o artigo do PÚBLICO no seu conjunto, considerando-o ‘malévolo’ e ‘tendencioso’, argumentando que ‘deturpa’ a entrevista, ao sugerir que Barroso teria responsabilizado ‘implicitamente’ as hesitações germânicas pelo agravamento da crise do euro.

Aqui haverá, pelo menos, um mal-entendido. As declarações do presidente da Comissão ao FAZ são o ponto de partida do texto de Isabel Arriaga e Cunha, que depois se ocupa das reacções que suscitaram e do contexto em que se inserem. O resumo das declarações ocupa apenas três de treze parágrafos, contendo os aspectos politicamente mais relevantes da entrevista. E não deturpa o sentido das declarações de Barroso, interpretadas em toda a Europa como críticas do arrastamento da crise devido à hesitação estratégica de Berlim. Cito, traduzindo-as do texto alemão, algumas das frases significativas do líder da Comissão: ‘Uma solução mais rápida [para a ajuda à Grécia] não foi possível. Mas, em retrospectiva, devemos agora dizer que teria sido melhor que tivéssemos podido chegar mais cedo a uma decisão’; ‘Foi problemático terem surgido nos mercados dúvidas sobre se a Grécia iria ser apoiada. Talvez se pudesse ter dito mais claramente, desde o princípio, que a Alemanha tem um interesse forte em manter o euro estável, e isto não apenas por solidariedade europeia, mas por interesse próprio.’ E ainda: ‘Espero que a liderança alemã, tanto a do governo como a da oposição, tanto a federal como a dos estados, intervenha a favor da Europa. Senão temos um problema’.

Não vejo, no texto do PÚBLICO, qualquer infidelidade às declarações do antigo primeiro-ministro português. O resto da peça assinada por Isabel Arriaga e Cunha é uma interpretação legítima e uma contextualização informada das tensões entre Bruxelas e Berlim, que coincide, no essencial, com o que se pôde ler em outros jornais de referência de países da União.

É verdade que algumas opiniões de ‘responsáveis europeus’ que a jornalista cita em abono do que escreve não são identificadas, o que diminui inevitavelmente a sua credibilidade. Fica aqui a sua explicação (que o leitor interessado encontrará mais desenvolvida em http://blogs.publico.pt/provedor): ‘Sobretudo no actual contexto em que qualquer comentário pode provocar uma montanha russa nos mercados financeiros, ninguém, mas ninguém mesmo, aceita comentar o que quer que seja se for identificado. A opção sempre difícil do jornalista é limitar-se à versão oficial (…) ou dar voz a opiniões e análises de fontes que considera pertinentes e válidas’, para ‘decifrar e explicar os sinais visíveis’.

Em conclusão:

– A entrevista do presidente da Comissão Europeia ao FAZ é muito relevante e deveria ter merecido maior atenção. Creio que teria sido um bom serviço aos leitores traduzi-la e colocá-la on line.

– O trabalho de Isabel Arriaga e Cunha não é só uma súmula da entrevista, mas um relato, a meu ver competente, das tensões entre Bruxelas e Berlim. Em qualquer caso, no que se refere às declarações de Barroso, em nada é infiel ao seu teor.

– O título e subtítulo contêm erros de facto e são (na questão dos adjectivos) infiéis ao texto. De correcto, a meu ver, só têm a intenção de salientar a franqueza pouco vulgar destas declarações de Barroso. É exigível mais cuidado neste domínio.

– Ainda que compreendendo os motivos invocados pela autora do texto, nunca é de mais insistir na identificação das fontes. Ou, no mínimo, em caracterizá-las tanto quanto possível. E o anonimato deve ser excluído em matéria de pura opinião.

– A primazia que julgo ser reconhecida ao PÚBLICO no tratamento dos temas europeus deve ser diariamente justificada. As declarações de Barroso foram anunciadas com algum detalhe na segunda-feira e conhecidas na íntegra na manhã de terça. Abordam outros temas importantes. Pela sua relevância e pelas reacções que suscitou, a notícia não deveria ter esperado pela edição de quinta-feira.

Vem a propósito saudar a crónica do eurodeputado e colunista do PÚBLICO Rui Tavares, que na véspera criticava a pouca atenção dada pelos media nacionais ao acompanhamento das instituições europeias.

NOTA – Sob o título ‘Limpando a gaveta’, tenho vindo a colocar no meu blogue algumas reclamações recebidas dos leitores, que foram objecto de comentários ou explicações da redacção do jornal, mas que não encontraram lugar nesta página. Procurarei fazê-lo periodicamente.

Explicação da jornalista

(…) [O leitor], do meu ponto de vista, só tem razão na crítica que faz ao título.

Admito que o título possa gerar algum mal-entendido. Não fui eu que o escrevi e só tive conhecimento dele quando li o jornal (…), mas como a minha proposta era particularmente pouco inspirada, percebo que o editor de serviço o tivesse tentado tornar um pouco mais apelativo. Por essa razão, assumo totalmente a responsabilidade pelo mesmo.

Sobre as restantes críticas, penso que o leitor não tem razão. Sublinho que não li a entrevista no original, porque não leio alemão, mas li atentamente os telex das agências noticiosas em francês e em inglês que deram conta da entrevista e que referem repetidamente as frases que citei, e que foram, aliás, retomadas em inúmeros jornais europeus. Se a tradução dos propósitos de Durão Barroso está errada, então sim, admito que errei, mas como eu dezenas de outros jornalistas erraram.

Em parte alguma do texto afirmei que Durão Barroso acusou Angela Merkel de ‘autista’ ou ‘ingénua’. Durão Barroso disse, e foi o que eu escrevi, que é ‘uma ‘ingenuidade’ a Alemanha pensar …. ‘. A frase sobre o comportamento ‘autista’ ou a referência à falta de liderança não são de modo algum atribuídas a Durão Barroso, mas resultam da análise que é feita por muita gente muito bem colocada – ‘muitos responsáveis e economistas europeus’ – que só aceita falar se não for de todo identificada. (…) Sublinho que quando uso o termo ‘responsáveis’ nos meus artigos, não estou a relatar opiniões expressas em conversas de café, mas a traduzir a opinião de gente que conta no debate europeu. Estou consciente de que esta forma anónima de contar a Europa pode suscitar questões. Só que, sobretudo no actual contexto em que qualquer comentário pode provocar uma montanha russa nos mercados financeiros, ninguém, mas ninguém mesmo, aceita comentar o que quer que seja se for identificado. A opção sempre difícil do jornalista é limitar-se à versão oficial, logo perfeitamente identificada, ou procurar dar voz a opiniões e análises de fontes que considera pertinentes e válidas, mesmo que de forma anónima. Garanto-lhe que, no caso da União Europeia, seriam duas histórias completamente diferentes, e não tenho a certeza que os leitores ficassem melhor servidos com a versão oficial.

Peço desculpa ao leitor, mas penso que o essencial das suas críticas resulta de um mal entendido. De facto, Durão Barroso não disse preto no branco que a Alemanha provocou a crise do euro, mas é o que está implícito na frase em que afirma que ‘O nosso processo de decisão durou tempo demais, e os mercados viram demasiados sinais contraditórios’.

A questão é que penso que já ninguém tem dúvidas de que se a zona euro tivesse, como Durão Barroso queria, tomado uma decisão logo em Fevereiro sobre uma ajuda à Grécia e um fundo de estabilização do euro, a nova crise financeira poderia ter sido travada. Também ninguém contesta que as hesitações e a imagem de desorientação dada pelos responsáveis europeus alimentaram o nervosismo dos mercados financeiros sobre os riscos de desagregação do euro levando-os a atacar os países mais vulneráveis – Grécia, Portugal, Espanha – e mesmo o próprio euro. Ora, foi a Alemanha, e só a Alemanha, que impediu que uma decisão fosse tomada mais cedo que o dia 7 de Maio e mesmo assim só mesmo depois dos apelos de Barack Obama.

Para mim, o mal-entendido está aqui: na minha opinião, o papel do jornalista não é fazer uma espécie de ‘acta’ dos acontecimentos limitando-se a um relato a frio do tipo ‘ele disse, ela disse…’, mas sim procurar decifrar e explicar os sinais visíveis – as aparências, se quisermos –, através de um trabalho de interpretação e contextualização. Foi rigorosamente o que eu fiz (…).

Isabel Arriaga e Cunha’

Bruxelas