Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

José Queirós

“O mundo dos serviços secre­tos é por definição opaco e o seu escrutínio pelo jor­nal­ismo propí­cio à manip­u­lação de infor­mações difi­cil­mente ver­i­ficáveis. Quando a activi­dade das ‘sec­re­tas’, ou de alguns dos seus quadros, é colo­cada sob a sus­peita de servir inter­esses políti­cos ou empre­sari­ais par­tic­u­lares, como tem acon­te­cido com algu­mas notí­cias que nas últi­mas sem­anas povoaram a imprensa por­tuguesa, é obri­gação do jor­nal­ismo procu­rar a ver­dade até aos lim­ites do pos­sível, num ter­reno que é por natureza hos­til ao exer­cí­cio do rigor e à transparên­cia de processos.

No caso do ex-dirigente do SIED (Serviço de Infor­mações Estratég­i­cas de Defesa) sus­peito de ter pas­sado infor­mações sig­ilosas ao grupo empre­sar­ial (Ongo­ing) em que actual­mente tra­balha, tudo o que foi escrito desde que o semanário Expresso o rev­elou no mês pas­sado será ainda insu­fi­ciente para uma per­cepção pública clara sobre todos os con­tornos do episó­dio. O inquérito judi­cial e as audições par­la­mentares já anun­ci­adas não dis­pen­sam o tra­balho jor­nalís­tico autónomo com vista a esclare­cer os fac­tos e diminuir as incertezas na sua interpretação.

Vem este intróito a propósito da recla­mação de um leitor sobre a edição do PÚBLICO de 29 de Julho, em que se desta­cava a manchete ‘Espião foi autor­izado por Sócrates a pas­sar infor­mações à Ongo­ing’. A mesma afir­mação, com vari­antes for­mais, sur­gia em título de página inte­rior (‘SIED pas­sou dados à Ongo­ing com autor­iza­ção de Sócrates’) e, na mesma data, na edição on line (‘Direc­tor das ‘sec­re­tas’ pas­sou dados à Ongo­ing com autor­iza­ção de Sócrates’).

Esta afir­mação foi des­men­tida no mesmo dia, tanto pelo actual primeiro-ministro, em nota envi­ada à agên­cia Lusa, como por um porta-voz não iden­ti­fi­cado do ante­rior chefe do Gov­erno, em declar­ações à mesma agên­cia. Na edição seguinte, este jor­nal referiu o primeiro des­men­tido, ignorou o segundo e, numa peça não assi­nada, anun­ciou que ‘o PÚBLICO man­tém que a trans­mis­são dessas infor­mações tinha que pas­sar por uma autor­iza­ção de José Sócrates, como acon­te­ceu neste caso’.

Fazendo fé nos des­men­ti­dos, o leitor referido escreveu: ‘De novo vem o PÚBLICO com uma notí­cia incrim­i­natória de José Sócrates, que foi já des­men­tida. (…) É lamen­tável que este jor­nal tenha para com Sócrates uma ati­tude odiosa, mais uma vez. Lá vem de novo com um caso por provar, de modo exe­crável, que peca por falta de ver­dade, pelos vistos’.

Pas­sando ao lado do processo de intenção, que a notí­cia não autor­iza, não é exacto classificá-la como ‘incrim­i­natória’, como faz notar a sua autora, a jor­nal­ista Maria José Oliveira: ‘O artigo em causa não é uma ‘notí­cia incrim­i­natória’, sim­ples­mente porque não se pode acusar alguém de cumprir as suas funções. Entre as várias com­petên­cias do primeiro-ministro está, como aliás foi referido na notí­cia, a tutela directa dos serviços de infor­mação. Que, por sua vez, dirigem um Pro­grama de Segu­rança Económica que con­siste, em traços gerais, em colab­o­rações com empre­sas con­sid­er­adas estratég­i­cas’. A jor­nal­ista esclarece ainda que ‘a refer­ên­cia a Sócrates surgiu para situar no tempo os fac­tos ocor­ri­dos e não como acusação, uma vez que (…) a autor­iza­ção não traduz um acto ilícito’.

O direc­tor adjunto Miguel Gas­par, que acom­pan­hou a edição da peça, nota por seu lado que esta ‘se ref­ere a um acto admin­is­tra­tivo nor­mal do primeiro-ministro’, e acres­centa que o ex-espião envolvido no caso já afir­mara pub­li­ca­mente que ‘as infor­mações haviam sido trans­mi­ti­das de forma legal e que tinha doc­u­men­tação nesse sen­tido’, pelo que ‘o PÚBLICO deu o passo seguinte e foi procu­rar quem teria dado essa autorização’.

De acordo com estas expli­cações, será legí­timo con­cluir que o que o PÚBLICO disse aos seus leitores, ainda que sem total clareza, foi que as infor­mações ale­gada­mente trans­mi­ti­das a uma empresa pri­vada não rep­re­sen­tariam uma fuga de infor­mação da parte de um quadro das sec­re­tas, mas a prestação de um serviço legal, dev­i­da­mente autor­izado por quem de dire­ito e jus­ti­fi­cado, bem ou mal, por um qual­quer inter­esse estratégico nacional. Ou seja, a ter havido uma fuga de infor­mação, seria a que fez chegar ao Expresso dados con­fi­den­ci­ais rel­a­ti­va­mente ao serviço prestado. Esse novo ele­mento, con­trastante com o que vinha sendo pub­li­cado, jus­ti­fi­caria o destaque dado à notí­cia: inde­pen­den­te­mente do juízo ético sobre o pro­ced­i­mento de um respon­sável das ‘sec­re­tas’ que entre­tanto tran­si­tou para a empresa a que tal serviço teria sido prestado, não se estaria per­ante uma actu­ação ile­gal ou irreg­u­lar. A ser assim, teria feito sen­tido priv­i­le­giar no título essa ideia, e não o invo­cado ‘acto admin­is­tra­tivo nor­mal’ do ex-primeiro-ministro, que teria sido referido ape­nas ‘para situar no tempo os fac­tos ocorridos’.

Sucede que não foi isso que o PÚBLICO fez, ao afir­mar tax­a­ti­va­mente que Sócrates autor­i­zou um espião ‘a pas­sar infor­mações à Ongo­ing’ — o que não podia deixar de ser lido, no con­texto do que estava em causa, como descrevendo um acto especí­fico do antigo primeiro-ministro rel­a­ti­va­mente à trans­mis­são, àquela empresa em con­creto, de deter­mi­na­dos dados (aque­les a que alu­dia a notí­cia ini­cial do Expresso, e cuja natureza foi sendo rev­e­lada, sem des­men­tido con­hecido). Não posso saber se tal acto exis­tiu ou não, mas posso ver­i­ficar, como ver­i­fiquei, que nada, na notí­cia de 29 de Julho, torna pos­sível sabê-lo do modo inequívoco que seria necessário para val­i­dar os títu­los escol­hi­dos. E são os títu­los que aqui estão prin­ci­pal­mente em causa. A própria autora da peça admite que ‘a manchete, assim como o título da notí­cia, poderão não ter sido as mel­hores opções e sus­ci­tado inter­pre­tações erradas por quem não leu a notí­cia com atenção’.

Eu penso que a manchete poderá ter sus­ci­tado maior per­plex­i­dade pre­cisa­mente a quem leu a notí­cia com atenção. Uma inter­pre­tação benévola seria a de que o PÚBLICO estu­dou o quadro legal e deduziu que qual­quer trans­mis­são de dados dos serviços secre­tos a uma empresa pri­vada teria de ter pas­sado por uma autor­iza­ção explícita e conc­reta do primeiro-ministro, devendo ser lidas nesse sen­tido as afir­mações do ex-director do SIED, de que ‘tudo foi feito den­tro da lei, reg­is­tado, doc­u­men­tado, com autor­iza­ção supe­rior’. Uma tal dedução seria sem­pre uma extrap­o­lação dis­cutível das nor­mas da leg­is­lação vigente, que colo­cam os serviços de infor­mações na dependên­cia directa do primeiro-ministro, a quem cabem com­petên­cias genéri­cas de tutela e ori­en­tação, que pode aliás del­e­gar. Miguel Gas­par garante, con­tudo, que ‘a notí­cia não decorre de uma dedução, mas sim de um facto confirmado’.

Os leitores con­tin­uam, no entanto, sem saber de que ‘facto con­fir­mado’ se trata exac­ta­mente. O facto de que o primeiro-ministro tutela as ‘sec­re­tas’, como decorre da lei, sem novi­dade? A existên­cia de um ‘pro­grama de segu­rança económica’ que leva os serviços de infor­mações a colab­o­rar com empre­sas con­sid­er­adas ‘estratég­i­cas’, o que é um dado de con­texto rel­e­vante e bem expli­cado numa notí­cia pos­te­rior (31 de Julho) de Maria José Oliveira, mas que não basta para fun­da­men­tar a manchete da antevéspera? A cober­tura hierárquica da actu­ação do direc­tor do SIED, seja ela qual for? Um despa­cho genérico do primeiro-ministro, que definiria ‘as condições em que os dados recol­hi­dos pelo SIED (…) podem ser forneci­dos’ a ter­ceiros, como se sug­ere na edição de 30 de Julho? Ou uma autor­iza­ção for­mal e especí­fica de Sócrates para ‘pas­sar infor­mações à Ongo­ing’, como se escreveu em título?

Miguel Gas­par argu­menta que ‘a questão de fundo não é quem autor­i­zou, mas se houve ou não autor­iza­ção’. Permito-me dis­cor­dar. Será assim no plano jurídico, não é cer­ta­mente assim no plano jor­nalís­tico. O PÚBLICO anun­ciou em título e chamada de capa que Sócrates autor­i­zou um espião ‘a pas­sar infor­mações à Ongo­ing’. Foi esse facto que orig­i­nou a recla­mação que recebi e inspirou comen­tários críti­cos de out­ros leitores na edição para a Inter­net. Um desses comen­ta­dores con­siderou ‘estranho’ que a peça de 29 de Julho fosse man­tida on line (e lá con­tinua, de facto, sem alter­ações ou acres­cen­tos), ape­sar dos des­men­ti­dos con­heci­dos. Eu par­tilho a estran­heza do leitor, emb­ora con­sidere razoável a expli­cação do direc­tor adjunto quanto ao modo como o jor­nal lidou com as declar­ações atribuí­das a um porta-voz de Sócrates, depois de o próprio se ter recu­sado a prestar qual­quer esclarec­i­mento, tanto antes como depois da pub­li­cação da notí­cia: ‘O con­senso, entre nós, foi o de que não devíamos aceitar como válido um des­men­tido que par­tiu de uma fonte anónima’.

Parece-me claro que a for­mu­lação da manchete de 29 de Julho é crit­icável à luz das boas práti­cas profis­sion­ais. Julgo tam­bém que os leitores não estão em condições de saber, pela leitura do que foi pub­li­cado, se é ou não ver­dadeira. Con­stato que o jor­nal não divul­gou, até hoje, novos ele­men­tos que a fun­da­men­tassem. Se não vier a fazê-lo, resta-lhe a sua própria cred­i­bil­i­dade para defender que o título escol­hido cor­re­sponde a uma infor­mação exacta, e não a uma ‘habil­i­dade’ for­mal cen­surável, que terá acabado por prej­u­dicar o resul­tado de um esforço para esclare­cer mel­hor um caso rel­e­vante da actu­al­i­dade. Con­vém ter pre­sente, no entanto, que a cred­i­bil­i­dade se dá mal, a prazo, com a falta de rigor.”