Thursday, 07 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1313

José Queiroz

“1. Na passada terça-feira, 12 de Julho, foi colocada no Público Online uma notícia da agência Lusa, na qual, sob o título ‘HUC pedem ajuda a Espanha nos transplantes hepáticos pediátricos’, se lê que os Hospitais Universitários de Coimbra (a única instituição nacional onde se fazia esse tipo de intervenção) vão firmar um acordo de colaboração com um hospital madrileno para poderem garantir a continuidade das operações de transplante, interrompidas — segundo se refere na entrada da peça — ‘devido ao abandono do cirurgião responsável’.

Diz-se na notícia que esta situação, que estará naturalmente a afligir os pais de crianças que necessitem de um transplante do fígado, resulta do facto de nenhum membro da equipa coordenada por esse cirurgião ser capaz de assegurar a continuidade das intervenções, porque — nas palavras da única fonte citada, o presidente da administração dos HUC, Fernando Regateiro — ‘não houve formação, não houve preparação de alternativas’. E acrescenta-se que o médico em causa, Emanuel Furtado, que parece ser o único cirurgião especializado e experiente nesta área, ‘se comprometera a assegurar os transplantes hepáticos até (…) Setembro’, mas ‘na última semana declinou uma cirurgia por partir de férias para o estrangeiro’.

Numa extensa carta que me enviou, Emanuel Furtado afirma que a notícia contém várias ‘afirmações que são falsas’. Rejeita a ideia de ‘abandono’ dos HUC ou dos transplantes pediátricos (‘ fui contratado, após concurso público, por outra instituição pública’), diz ser falso ter assumido qualquer compromisso até Setembro (‘tinha avisado […] que iria sair em Julho’), alega nunca ter dirigido a equipa de transplantes hepáticos e garante que a falta de ‘formação’ e ‘preparação de alternativas’ — que reconhece e para a qual diz ter alertado há muito —, ‘é da responsabilidade do Conselho de Administração presidido por Fernando Regateiro e do director que esse conselho nomeou, há anos, para dirigir a actividade de transplantação hepática’. Conclui que o artigo é ‘enganador’ e serve ‘o objectivo de Fernando Regateiro, (…) de alijar responsabilidades’ neste domínio, transferindo para si o ónus da lamentável situação criada.

Não é preciso conhecer toda a história deste caso para se perceber que à notícia em causa faltou o elemento essencial do contraditório. Nestas condições, não é possível ao leitor que foi ‘informado’ de uma só versão, (que lhe é apresentada como uma descrição objectiva dos factos), e que agora toma conhecimento da existência de uma versão contrária (que o jornal ignorou), sentir-se esclarecido sobre um tema de inegável interesse público. Chama-se a isto mau jornalismo. O facto de a notícia ter origem na Lusa não é relevante: uma vez divulgada numa edição do PÚBLICO, é uma notícia da responsabilidade editorial do PÚBLICO. A não ser eficazmente corrigido, o mau hábito de colocar apressadamente em linha notícias elaboradas fora da redacção, sem que os responsáveis por alimentar a edição on line assegurem o cumprimento de regras básicas de validação e respeito pelo contraditório, afectará crescentemente a credibilidade do jornal.

Mais uma vez, também, de nada terá servido a possibilidade oferecida aos leitores de alertarem para eventuais erros de informação nas caixas de comentários às notícias. Neste caso, o próprio Emanuel Furtado enviou uma mensagem a desmentir o conteúdo da peça. E outros leitores apontaram faltas de rigor e isenção, e chamaram a atenção para o facto de a saída do cirurgião dever ser enquadrada no contexto de problemas internos nos HUC que justificariam uma averiguação jornalística. No entanto, a notícia permanece inalterada no Público Online e o jornal não desenvolveu o tema na edição impressa. Fica a sensação, como já referi na minha crónica do passado dia 3, de que ‘ninguém ouve o que dizem os leitores’.

Tendo publicado a notícia como a publicou, o jornal tem agora o dever, na minha opinião, de procurar a verdade entre versões contraditórias e esclarecer os seus leitores sobre os motivos do desaparecimento (espera-se que provisório) de uma valência única e pioneira no sistema hospitalar português, e acerca do que pensam as autoridades da saúde fazer para o remediar. É para informar de forma completa e rigorosa, e não para transmitir mensagens parciais entre partes desavindas, que deve servir o bom jornalismo.

2. Na véspera, outro caso de saída de médicos de um hospital dera origem a uma peça publicada na secção ‘Portugal’ da edição impressa. Num texto intitulado ‘Médicos intensivistas abandonam Hospital de Leiria’, a jornalista Margarida Gomes relatava que a equipa médica que fora formada para ali instalar um serviço de medicina intensiva abandonara aquele hospital por alegada falta de condições para o desenvolvimento do projecto. A notícia não cita fontes, mas é referido, a fechar, que os responsáveis pelo estabelecimento de saúde foram contactados e afirmaram serem ‘falsas ou falaciosas’ as informações que lhe deram origem.

Neste caso existiu a preocupação formal de procurar o contraditório, mas sem benefício assinalável para o esclarecimento dos leitores, que são colocados perante duas versões contrárias e só podem concluir que a autora da notícia terá tido motivos para privilegiar uma delas. A confiança de quem lê depende nestas situações da credibilidade que atribui ao jornal, mas convém ter presente que essa credibilidade estará ameaçada se se banalizar o mau hábito de noticiar temas que são objecto de controvérsia entre partes com informações obtidas sob anonimato, fazendo-as depois acompanhar do que, para todos os efeitos, é um desmentido (e esse não anónimo) do que se afirma em título. Não se percebe por que motivo o caso justifica a ocultação das fontes, nem a pressa em publicar o que poderia ser mais bem investigado e fundamentado.

Lê-se nessa notícia, por outro lado, que, ‘apesar de o Serviço de Medicina Intensiva ter sido inaugurado em Maio de 2010, a unidade de doentes neurocríticos ainda não está a funcionar’, acrescentando-se que ‘esta unidade foi pensada como um pólo de atracção para potenciais dadores de órgãos’. A esta última frase reagiu o leitor Pedro Amorim: ‘Escrever que ‘a Unidade de Neurocríticos’ foi pensada como ‘pólo de atracção para potenciais dadores de órgãos’ é grave. É que dadores de órgãos são doentes que evoluem para o estado de morte cerebral. São doentes que morrem. Mortos. Afirmar que uma unidade hospitalar foi pensada para atrair mortos é um enorme disparate. Não acredito que a jornalista tenha ouvido essas palavras da boca dos responsáveis do Hospital de Leiria e muito menos dos responsáveis pela dita unidade’.

A jornalista assegura que a frase em questão corresponde ao que lhe foi dito por uma fonte médica. Não tendo citado essa fonte na notícia, tem de lhe ser atribuída a autoria de uma definição que é no mínimo infeliz e susceptível de causar a maior estranheza, como sucedeu com o leitor referido. Creio, no entanto, que a leitura da peça mostra que se tratou sobretudo de uma má escolha de palavras, que deveria ter sido detectada antes da publicação. Comprova-o o período seguinte do texto, em que se explica com clareza: ‘A sala de neurocríticos destina-se a tratar doentes com patologias neurológicas, em risco de vida ou com sequelas graves’.

Terrorismo no teatro?

O leitor Betâmio de Almeida considerou inapropriado o título ‘O terrorista Zizek quer que façamos algo’, que na última quarta-feira, 13.07, encabeçava, nas páginas do caderno P2, uma peça em que Tiago Bartolomeu Costa, enviado do PÚBLICO ao festival de teatro de Avignon, relatava uma conferência ali proferida pelo filósofo esloveno. Compreende-se a reacção do leitor: pelas suas conotações, um tal qualificativo, quando usado fora de um contexto que o autorize no seu significado literal, pode ser considerado ofensivo e a sua utilização será sempre discutível.

Creio, no entanto, que não se justifica a ‘indignação’ que o leitor diz ter sentido. O uso do termo ‘terrorista’ em sentido figurado seria certamente condenável numa notícia de actualidade como as que preenchem o caderno principal do PÚBLICO. Mas penso que os leitores habituais estarão cientes de que os artigos publicados no P2 se caracterizam por uma maior liberdade estilística e algum espaço para um olhar mais subjectivo, não tendo que se cingir rigorosamente a todas as convenções que balizam a escrita informativa. Sem por isso deixarem, naturalmente, de respeitar as regras profissionais e éticas do jornal.

O artigo sobre a conferência de Slavoj Zizek integra um género jornalístico próprio, um misto de reportagem e análise crítica, como o que se espera de um enviado a um festival. A sua leitura torna clara a natureza metafórica da expressão ‘terrorista’, como metafóricas foram as ‘bombas’ ideológicas que, logo na entrada do texto, se diz que o filósofo lançou em Avignon. Aliás, o próprio pensador esloveno é citado a explicar qual a cadeia de lojas que escolheria para colocar uma bomba ‘se fosse terrorista’, e já não em sentido figurado…

A colocação de aspas no termo que desagradou ao leitor teria talvez evitado equívocos, mas parece claro que a sua escolha teve por objectivo enfatizar a natureza provocadora do discurso de Zizek, que é descrita com eficácia num texto bem conseguido.”