Como pode existir algo ou alguém que saia pelo mundo e se diferencie dos demais tendo em vista a sua posição de classe, sua pele, sua linguagem, seu sexo, idade, nacionalidade, filiação, saber, poder, marca de carro, saldo da conta bancária?
Como é possível o homem dominar outro homem, subjugá-lo, matá-lo? Não é inacreditável que uma pessoa se submeta a outra e que não apenas consinta ser submetida como considera que sua submissão é aceitável em função de uma louca hierarquia sem sentido, baseada no poder econômico, na força das armas, ou numa infinidade de critérios hierárquicos absolutamente sem fundamento algum?
Como pode existir o pobre, o oprimido ou, por outro lado, o rico e o opressor?
Dialogando, a propósito, com Jacques Lacan, transformo em pergunta uma afirmação sua, retirada de seus Escritos (1998): “Se um homem que se acredita rei é louco, não menos o é um rei que se acredita rei?”
Para que serve o sistema midiático?
Então não somos todos loucos por acreditar ser quem somos? Somos loucos de sermos a saúde de nós mesmos? Ser verdadeiramente saudável não será loucamente a infinita possibilidade de ser fora da loucura hipócrita, realista e genocida que temos sido, ao habitarmos normalmente este mundo e ao darmos sentido a ele como normais partes da trama que não ama senão a si mesma?
Em “Especulação em torno da palavra homem”, de Carlos Drummond de Andrade, o poeta mineiro (ou o seu eu-lírico) termina esse seu belíssimo poema com as seguintes perguntas ao mesmo tempo poéticas e ontológicas: “Para que serve o homem?/ Para estrumar flores,/Para tecer contos?/ Para servir o homem?/Para criar Deus?/ Sabe Deus do homem?/ E sabe o demônio?/Como quer o homem/ Ser destino, fonte?/Que milagre é o homem?/Que sonho, que sombra?/Mas existe o homem?”
Parafraseando Drummond, pergunto: para que serve a mídia? Assim como as perguntas/respostas de Drummond, poderia apresentar uma infinidade de respostas possíveis para tal pergunta: serve para ser o estrume de flores de outros mundos possíveis? Serve para semear solidariedade, paz, justiças, criatividades, amor ao estranho, ao exilado, ao estrangeiro, ao diferente?
Serve para ser suporte tecnológico planetário de expressivas liberdades criativas, críticas, filosóficas, imaginativas? Serve para noticiar os verdadeiros acontecimentos do mundo, como todos aqueles que não estejam mediados nem pelo dinheiro e nem por sua encarnação reificada: a mercadoria?
Serve, pois, para noticiar alguém que, podendo viver normalmente no meio das injustiças gerais do mundo não menos normalmente louco em que habitamos, decide viver na floresta amazônica, sem bem material algum, sem dinheiro, em nome de uma Colômbia justa, como os anônimos combatentes das Farc, as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia? Ou, por outro lado, serve para criminalizá-los, acusá-los de narcotraficantes, pela singela razão de que não estão, como os loucos normais, à caça cotidiana e sem sentido coletivo de dinheiro e mais dinheiro, além da propriedade privada X ou Y?
Para que, insisto, serve o sistema midiático, marca registrada de nossa atual civilização?
O maniqueísmo entre opressor e oprimido
Sob a sua forma corporativa, de monopólios e oligopólios, serve simplesmente para manter o sistema de hierarquias que tem sido a trágica marca da presença humana na Terra. Serve, pois, para ratificar o lugar do oprimido e do opressor, de quem manda e de quem é mandado, quem pode e quem não pode, quem existe e quem não existe.
Assim, se Drummond termina seu poema perguntando se existe o homem – alimentando a hipótese de que não tem fim o que podemos nos fazer ser, na relação com os demais –, para o sistema midiático, por sua vez, o homem sempre existiu e se divide em duas espécies: o superior e o inferior; o inteligente e o burro; o produtivo e o improdutivo; o civilizado e o bárbaro; o rico e o pobre; o democrata e o déspota; o dominador e o dominado, o vencedor e o fracassado.
Tal como se organiza, sob a forma de monopólios e oligopólios, a mídia corporativa existe para sedimentar e retroalimentar todos os maniqueísmos que nossa lamentável humanidade despótica tem produzido no decorrer das grandes civilizações hierárquicas do passado e do presente, razão pela qual ela é o lugar por excelência do fascismo, pois este, para defini-lo, nada mais é do que a junção do pré-moderno com o moderno; do arcaico com as últimas tecnologias, da barbárie com o que acreditamos ser a civilização; do, enfim, casamento romântico e religioso do último paradigma técnico e científico com a herança histórica do que temos de mais atrasado e ignominioso, a saber: as mais diversas formas de guerra que produzimos, na Terra, em função do maniqueísmo entre opressor e oprimido, sob, obviamente, o ponto de vista do primeiro, o opressor.
O opressor é o redentor
Não é circunstancial, por isso mesmo, que a extrema direita seja o rosto onipresente nos meios de comunicação de massa, ora sob a forma de pastores a expulsar demônios de pobres coitados; ora sob a forma de comentaristas esportivos, políticos, econômicos, culturais; de animadores de auditório e tantas outras, pois o sistema midiático corporativo nada mais é que o epicentro do fascismo atual, no qual e através do qual o pior da gente mesmo, como milenares habitantes deste planeta, não apenas é naturalizado pelos novos suportes tecnológicos midiáticos, como é, antes de tudo, apresentado como o civilizado em oposição ao bárbaro, o democrata em oposição ao déspota, o honesto em oposição ao corrupto, o produtivo em oposição ao improdutivo, o sábio em oposição ao ignorante, o famoso em oposição ao anônimo e um sem fim de outras formas de ratificar e validar as mais diversas possibilidades de oposições maniqueistas.
É por isso que é necessário, a propósito, ler de modo mais consequente o argumento de McLuhan de que o meio é a mensagem, pois bem mais do que a constatação de que a mensagem seja o próprio suporte que lhe da vida o meio de fato é a mensagem porque o suporte que está em jogo não é simplesmente o dos meios de comunicação, mas o dos maniqueísmos e das hierarquias que fazem deste planeta o inferno que tem sido para 99% da humanidade e para 100 por cento dos outros seres, não humanos.
No campo das mídias corporativas, a única mediação efetivamente existente no sistema midiático é entre os suportes tecnológicos atuais e os maniqueísmos e hierarquias do genocida passado humano, tecido e entretecido por guerras sem fim de povos contra povos em benefício de uma elite que os sanguessuga.
Objetivamente falando, a mediação no sistema midiático é, portanto, mediação entre o óbvio e o ululante, isto é, entre o meio e sua despótica, arcaica e demagógica mensagem: o opressor é o redentor, razão pela qual a mediação, bem entendida, é entre opressores “solidários”, sob a forma tecnologicamente encarnada de oligopólios dos mais diferentes países e regiões do planeta, produzindo assim um verdadeiro sistema fascista: o das mediações opressoras das e entre as oligarquias do atual presente histórico.
O delírio de um rei que se crê um humilde plebeu
Tudo o mais é falsificação e mistificação.
Como parte mediadora de e entre opressores, para ficar num exemplo mais evidente, sempre que de uma forma ou de outra o interesse do epicentro dos opressores estiver correndo algum risco, não é preciso esperar outra estratégia da TV Globo senão esta: ou ela não realizará mediação alguma, pois simplesmente não noticiará; ou noticiará a fim de garantir a mediação de opressor para opressor, filtrando os acontecimentos e colocando efetivamente as coisas em seus devidos eternos lugares: o opressor é a verdade e a vida.
Exemplo mais atual é o do acidente ambiental causado pela petroleira americana Chevron, no litoral carioca. Num primeiro momento, a TV Globo simplesmente ignorou o acidente e mesmo pretendia não noticiá-lo.Como o assunto alcançou uma dimensão maior, ela finalmente resolveu noticiar, mas com o propósito muito claro: mediar para garantir os interesses da Chevron, inclusive culpando o próprio governo brasileiro.
Como regra geral, a lógica subjacente é esta: ignore as situações adversar para o poder dominante no mundo ou, se não for possível, transforme-as em situações favoráveis, culpando ou as vítimas ou lado mais vulnerável do maniqueísmo. Com isso, estrategicamente, através de uma inversão de ótica, o que era desfavorável se torna favorável, transferindo a culpa para o oponente ou para o oprimido.
O mesmo argumento pode ser dito não apenas no que se refere à postura da TV Globo, mas a todas as mídias corporativas, em relação às revoltas populares que estão ocorrendo no grande Oriente Médio, pois a mediação realizada pelo sistema midiático dominante existe para querer nos fazer crer – e antes de tudo aos povos da Primavera Árabe – que a democracia que devem buscar, caso insistam na rebelião, é a dos opressores ocidentais, pois qualquer hipótese outra soará e será noticiada tão absurda e inverossímil – se for noticiada – quanto o delírio de um rei que se crê um humilde plebeu e cuja dignidade advenha da louca felicidade de colaborar com a floração de outro mundo, sem opressores e oprimidos, desejando, delirando e efetivamente estrumando infinitas primaveras, porque sem tronos.
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[Luís Eustáquio Soares é poeta, escritor, ensaísta e professor da Universidade Federal do Espírito Santo]