Além da histeria em torno da H1N1, com a classe média altíssima acorrendo em massas aflitas aos postos de vacinação VIP, uma nova epidemia varre a cidade: a Síndrome Antimanipulatória Aguda (S.A.A.). Os sintomas são conhecidos. Os que contraem essa infecção do espírito desenvolvem uma ira súbita contra tudo o que afirmam ser um truque de “manipulação”. O contágio se dá pelo discurso enunciado alguns decibéis acima. Em ambientes de muita falação inflamada contra os “manipuladores” e suas ardilosas armações para tapear o povaréu crédulo e desprotegido, o mal se espalha com mais facilidade. Também pode ser transmitido pelas redes sociais.
A Síndrome Antimanipulatória Aguda é uma tragédia para a saúde da esfera pública, atacando na raiz os vasos comunicantes pelos quais deveria fluir a razão. Quando a S.A.A. se alastra, o argumento racional silencia. Nos surtos epidêmicos mais graves – ainda não é o caso do Brasil – a esfera pública entra em fase agônica.
Há pacientes de tipos diversos. Os que se declaram “de esquerda” creem que toda denúncia de corrupção envolvendo gente do Partido dos Trabalhadores (PT) é obra da “manipulação da direita”. Os pacientes que se declaram “antipetistas” asseveram que os compositores Chico Buarque e Caetano Veloso, quando repetem o bordão “não vai ter golpe”, estão a serviço da máquina de manipulação da esquerda maligna.
Embora a doença se manifeste tanto em populações “à esquerda” quanto em populações “à direita”, existem diferenças entre um campo e outro, o que não surpreende os cientistas, já que a enfermidade está associada ao córtex ideológico.
Comecemos pelos pacientes “de esquerda”, que também gostam de se classificar como “progressistas”. Um sintoma que os distingue são as menções nervosas ao legado teórico da Escola de Frankfurt. O modelo mental que mobilizam, no entanto, não é frankfurtiano – é superficial, anacrônico, melodramático e não tem nada de dialético. Quando acontece de se explicarem (o que é raro), esses pacientes alegam que a “manipulação” é “de direita” e se reduz a um expediente mal-intencionado por meio do qual os proprietários dos meios de comunicação travestem suas mentiras com a aparência de verdade para tapear o público. Outro traço recorrente na fala sintomática é a convicção inabalável de que os tais proprietários dos meios de comunicação agem de modo “orquestrado”, numa sincronia perfeita em que até mesmo os silêncios do âncora no telejornal cumprem um roteiro preestabelecido para melhor iludir as audiências.
Para os pacientes de S.A.A. que se declaram “de esquerda”, os principais canais de TV, bem como as revistas e os jornais brasileiros, articulam-se num complô com o propósito de golpear de morte a democracia (cuja instituição maior é o mandato de Dilma Rousseff) e aí acabar com o Bolsa Família (farol do socialismo em construção). São contraditórios e incoerentes, mas não se dão conta disso.
Até ontem repetiam que a imprensa não tem mais poder algum e que os “formadores de opinião empregados na grande mídia” já não formam a opinião de mais ninguém. Agora bradam que a imprensa é a grande culpada pela aprovação da admissibilidade do processo de impeachment na Câmara dos Deputados.
Acreditam que a burguesia tenha colocado um supermanipulador onisciente para editar cada legenda de jornal e teleguiar os movimentos das sobrancelhas de William Bonner. Esperto como a peste, esse supermanipulador controla corações e mentes da massa (e também os votos dos deputados federais). A massa, principalmente ela, cai em todos os contos do vigário que vê na TV. Seguidores de Pelé, que na década de 1970 fez a sua declaração mais notável – “o povo não está preparado para votar” –, os pacientes “de esquerda” da Síndrome Antimanipulatória Aguda não têm a menor dúvida: o povo brasileiro não está preparado para ver televisão.
As coisas já seriam bem complicadas se a epidemia tivesse feito estragos apenas “à esquerda”. Nosso problema é que no outro lado do chamado “espectro ideológico” a devastação não é menor. Aí, os infectados apresentam sintomas análogos, mas distintos. Acham que os apresentadores de televisão que exultam quase saltitantes diante de gráficos que mostrariam que o avanço do impeachment faz a Bolsa subir e o dólar cair estão sendo apenas objetivos, apartidários, imparciais e fiéis aos fatos.
Os pacientes de S.A.A. no campo dos autodeclarados “antipetistas” não veem desequilíbrio nenhum na desproporção entre artigos de opinião que defendem o impeachment e os que rejeitam o impeachment. Acreditam que toda defesa do mandato de Dilma Rousseff é uma defesa velada – e “manipulatória” – do “maior escândalo de corrupção da história da humanidade”. Logo, só haveria sensatez na defesa do impeachment já. Acreditam que não há nada de esquisito nas romarias de engravatados em carros pretos acima do limite de velocidade na direção do Palácio do Jaburu, onde o vice-presidente, ainda vice, já nomeia e desnomeia seus ministros (vice-ministros) pelas páginas dos jornais, num sinistro shaddow cabinet com as pernas de fora, um shaddow cabinet que só não é “reality show” porque parou no tempo do teatro cancã.
Diante de qualquer crítica que questione a postura dos que já estão formando o governo paralelo, saem aos gritos contra a “manipulação de esquerda”. Imagine! Onde é que já se viu? A ferveção política no Jaburu está absolutamente adequada à normalidade institucional e ao Estado de Direito. O vice está apenas cumprindo o seu dever constitucional de montar o vice-governo.
Se alguém pergunta por que é que a Operação Lava Jato já não tem tanto destaque como antes, o paciente “antipetista” de S.A.A. logo aponta a “manipulação de esquerda”. Para ele, distorção só existe na TV Brasil. O quê? Você não viu a TV Brasil ontem à noite?
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Eugênio Bucci é jornalista e professor da ECA-USP