Thursday, 07 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1313

Manual de promiscuidade

Um aspecto notável do escândalo que bagunçou o coreto do império midiático de Rupert Murdoch é a revelação da extrema proximidade – a bem dizer, promiscuidade – existente entre jornalistas de seu grupo e autoridades britânicas. O poder de fogo dos jornais controlados pelo magnata australiano naturalizado americano tem, ou pelo menos teve, o condão de provocar um misto de medo e fascínio em políticos de todos os calibres, inclusive entre integrantes da casa real britânica, esta por muito tempo alvo preferencial da bisbilhotice de seus repórteres.

Poucos ousavam confrontar os todo-poderosos diretores, chefes e chefetes de títulos tão lucrativos quanto pouco afeitos à ética como The Sun e o agora extinto News of the World – publicações que sempre venderam milhões de exemplares, com o grosso de sua circulação entre trabalhadores e setores de baixa renda, públicos de muito interesse para qualquer político que se preze.

Sinais explícitos da relação promíscua vieram à luz na mesma velocidade em que despencava a credibilidade (se assim a podemos chamar) do News of the World e aumentava a desgraça de sua ex-diretora de Redação, Rebekah Brooks. Na sexta-feira (15/7), ela se demitiu das funções de conselheira delegada da News International (o braço britânico da News Corporation) e no domingo foi presa, logo após prestar depoimento sobre o caso das escutas telefônicas ilegais ao tempo em que comandava o jornal. Saiu sob fiança e vai se explicar a uma comissão da Câmara dos Comuns sobre os métodos nada ortodoxos de apuração jornalística praticados sob sua liderança.

No mesmo domingo, sir Paul Stephenson, chefe da Scotland Yard, a polícia metropolitana londrina, pediu demissão depois que foram reveladas suas ligações para lá de amistosas com Neil Wallis, ex-jornalista do News of the World, a quem havia contratado como relações públicas entre outubro de 2009 e setembro de 2010 pela bagatela de 24 mil libras. O mesmo Wallis, também RP de um spa cinco estrelas, providenciou que uma estadia de 20 dias de Stephenson – que então se recuperava de uma fratura – e de sua mulher fosse, por assim dizer, tomada como cortesia da casa: um troquinho de 12 mil libras.

Conflito de interesses

O temor reverencial diante do poderio dos tabloides britânicos de Murdoch era compartilhado até na família real, que não deveria ter razão alguma para paparicar os jornais. Malgrado ter sido uma reclamação do príncipe Williams – que desconfiou estar sendo grampeado, ainda em 2005 – um dos motivadores da investigação sobre as escutas telefônica ilegais patrocinadas pelo News of the World, e que provocou a prisão de dois dos seus jornalistas, o príncipe Charles, primeiro herdeiro do trono, não esqueceu de convidar a ruiva Rebekah Brooks para as festas dos 60 anos dele na mansão real de Highgrove.

O ex-primeiro-ministro Tony Blair também era chegado de Rebekah, a ponto de sua mulher Cherie ter dado a ela, em primeiríssima mão, a notícia da gravidez de seu último filho. Manchete exclusiva e de larga repercussão, do jeito que o News of the World gostava.

Sabe-se ainda que o também ex-primeiro-ministro Gordon Brown e sua mulher Sarah convidavam Rebekah para fins de semana na casa de campo oficial de Chequers; que o atual premiê David Cameron costumava cavalgar com ela em Oxfordshire e que suas famílias passaram juntas uma noite de Natal. Tutti buona gente.

Andy Coulson, diretor de Redação do News of the World de 2003 a 2007, deixou o jornal para assumir os cargos de porta-voz e assessor de comunicação do Partido Conservador, tendo servido nas mesmas funções, até janeiro passado, o primeiro-ministro Cameron.

Tanta proximidade não seria capaz de esconder um grave conflito de interesses. Em boa coisa isso não poderia dar. Como não deu.

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[Luiz Egypto é redator chefe do Observatório da Imprensa]