Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Mau humor no domingão de Manhattan

A New York Times Magazine de domingo (20/11) publicou entrevista do filósofo francês Jean Baudrillard à repórter Deborah Solomon, da área de cultura, intitulada ‘Continental drift’. Na geofísica, a tradução técnica seria ‘deriva dos continentes’ – o deslocamento das placas tectônicas que flutuam sobre o magma, afastando-se e chocando-se no processo de formação dos continentes. Na linguagem metafórica, pode-se traduzir por um duelo entre duas culturas, representadas por uma repórter confiante, cheia de si e da cultura poderosa que representa, e um filósofo francês para muitos decadente, detrator do american way of life, de seu poder midiático e dos ‘valores’ que George W. Bush esgrima para estender ao resto do mundo.


Na prática, foi uma entrevistinha para animar o domingão chique de Manhattan. Afinal, quantos americanos lêem Baudrillard? E quantos dão a shit à banlieue francesa? Pois o pretexto da conversa era ‘la crise des banlieues’, ou crise dos subúrbios, como trata Le Monde a revolta da periferia excluída. Reduzida, nas palavras polidas da repórter, à ‘insatisfação civil’ dos jovens contra o restante da França.


– Vai ficar pior e pior e pior –, respondeu Baudrillard. – Por muito tempo foi uma coexistência ou coabitação relativamente amigável, mas os franceses pouco fizeram para integrar os muçulmanos, e agora há uma divisão. Nosso sentimento orgânico de identidade, como país, se dividiu.


Cândida e debochada


‘Talvez tenha sido inevitável’, observou a repórter na primeira farpa: ‘Muitos aqui ficamos surpresos no ano passado quando o governo proibiu os lenços de cabeça e outros símbolos religiosos nas escolas públicas’.


– É, a América tem uma história maior de imigração. A América é constituída de comunidades étnicas, e embora elas possam competir entre si, a América é a América. Mesmo que não houvesse americanos vivendo nos Estados Unidos, ainda seria a América. A França é apenas um país, a América é um conceito –, provocou o filósofo.


A repórter se fez de boba ou mostrou disposição para o perigo. ‘O senhor está dizendo que a América representa o ideal de democracia?’


– Não, a simulação do poder.


‘Aos 76 anos, o senhor ainda aplica sua famosa teoria sobre ‘simulação’ e ‘simulacro’, segundo a qual a imagem é mais convincente e real do que a realidade?’, devolveu ela.


– Todos os nossos valores são simulados. O que é liberdade? Ter liberdade de escolher entre comprar este carro ou comprar aquele carro? Isso é simulação de liberdade.


‘Então o senhor não acredita em que os EUA invadiram o Iraque para disseminar a liberdade?’, perguntou a cândida e debochada Deborah.


Raciocínio simplista


– O que queremos é pôr o resto do mundo no mesmo nível de fantasia e paródia em que estamos, pôr o resto mundo na simulação, assim o mundo todo se torna uma burla e então todos somos todo-poderosos. É um jogo.


Deborah foi se arriscando: ‘Quando o senhor diz nós, de quem o senhor está falando? Em seu novo livro, A conspiração da arte, o senhor é extremamente duro com este país’.


– A França é um subproduto da cultura americana. Estamos todos nisso, somos globalizados. Quando Jacques Chirac diz ‘Não!’ a Bush, sobre a guerra no Iraque, é uma ilusão. É para insistir em que os franceses são uma exceção, mas não existe exceção francesa.


‘Dificilmente’, engatou a repórter, entregue ao jogo de morder e soprar. ‘A França escolheu não enviar soldados ao Iraque, o que tem significado real para incontáveis soldados, para suas famílias e para o Estado’.


– Ah, sim. Somos ‘contra’ a guerra porque não é nossa guerra. Mas na Argélia foi a mesma coisa. A América não mandou soldados quando fizemos a Guerra da Argélia. França e América estão do mesmo lado. Só há um lado.


‘Não foi este tipo de raciocínio simplista que deixou as pessoas cansadas dos intelectuais franceses?’, arriscou, levando o ‘adversário’ a desviar a argumentação.


Ficção melhor


– Não há mais intelectuais franceses. O que você chama de intelectuais franceses foi destruído pela mídia. Eles falam na TV, falam à imprensa e não falam mais entre si.


‘O senhor acha que há intelectuais na América?’


– Para nós, havia Susan Sontag [1933-2004] e Noam Chomsky. Mas isso é o chauvinismo francês. Nós só consideramos a nós mesmos. Não prestamos atenção no quem vem de fora. Aceitamos apenas o que inventamos.


– O senhor era amigo de Susan Sontag?


– Nos víamos de tempos em tempos, mas da última vez foi terrível. Ela chegou a Toronto para uma conferência e me xingou por ter negado que a realidade existe.


– O senhor lê escritores americanos?


– Muitos, muito romancistas americanos. Updike, Philip Roth, Truman Capote. Prefiro a ficção americana à francesa.


Acidez estimulante


‘A literatura francesa foi vítima da teoria francesa, talvez?’


– Infelizmente, a literatura francesa matou a si mesma de fome, não precisou da ajuda da teoria francesa.


– Alguns acham que o estudo das ciências humanas em nossas universidades foi prejudicado pela desconstrução e outras teorias francesas.


– Foi o presente dos franceses. Deram aos americanos uma linguagem de que não necessitavam. Como a Estátua da Liberdade. Ninguém precisa da teoria francesa.


Que o ‘clima’ de enfrentamento não iluda o leitor. Os americanos letrados consideram estimulante o ácido humor francês. Não é casual que o malcriado pensador das mídias esteja sempre nas páginas da New York Times Magazine ou do jornalão que a abriga.