Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Mudando para continuar a mesma

E se me solicitassem que escrevesse um necrológio não para uma pessoa, mas para um canal de televisão? Por exemplo, um necrológio para a TV Globo? Como começaria? É o exercício mental a que me proponho. E também o que minha memória cidadã deixou em alto relevo ou, simplesmente, deixou de registrar. Constato que, nas últimas décadas, os ouvidos de milhões de brasileiros se acostumaram com o plim-plim da TV Globo a anunciar intervalos comerciais ou publicidade institucional da emissora. E nos acostumamos a ouvir falar de um certo “padrão Globo de qualidade”, decantado em verso e prosa inúmeras vezes e ao longo de muitos anos. Para início de texto, teria que ver o que minha memória afetiva conservou ao longo do tempo. Afinal, são quase 50 anos.

No campo afetivo, me deleito com o talento e genialidade da maior atriz brasileira de todos os tempos, a filha de judeus poloneses Dina Sfat (1938-1989) em momentos marcantes da nossa teledramaturgia: Selva de Pedra(1972),Os Ossos do Barão (1973), Gabriela (1975) e Saramandaia (1976), O Astro (1978), Os Gigantes (1979).

Na memória cidadã, encontro muitas histórias mal contadas… a começar pelo acordo firmado em 1962 entre o grupo Time-Life e as Organizações Globo, que permitiu o aporte de US$ 6 milhões à empresa brasileira, suficiente para arcar com a aquisição de equipamentos e infraestrutura, responsáveis diretos por seu incontestável êxito comercial. A quantia, vista neste 2011, parece “trocado de bolso” em se tratando do próspero mercado televisivo nacional, mas convém contextualizar tal quantia a 1962: naquele início de década, a TV Tupi, a maior TV brasileira de então, fora construída com um capital não superior a US$ 300 mil, ou seja, parcos 5% do que o grupo norte-americano investiu em sua maior promessa de comunicação em terra brasilis. O retorno nada desprezível acordado para a Time-Life era da ordem de 30% de todos os lucros auferidos pelo funcionamento da TV Globo. Mas a pergunta que sempre se recusou silenciar foi esta: o pagamento à Time-Life seria apenas, digamos, de ordem financeira?

Apresentação inesquecível

No campo afetivo, encontro, sem qualquer esforço maior, a série estrelada por Paulo Gracindo em seu inconfundível O Bem-Amado, dando vida ao famoso personagem-prefeito de Dias Gomes. Provavelmente a mais brasileira das séries, foi exibida entre 1980 e 1984. Políticos populistas e caricatos, personagens encontráveis no entorno da grande São Paulo ou nas vizinhanças de Campina Grande (PB), como o matador profissional e meio lerdo Zeca Diabo, o confuso chefe de gabinete do prefeito Odorico Paraguaçu, Dirceu Borboleta, e as cômicas irmãs Cajazeiras.Tudo isso na preciosa cidade cenográfica de Sucupira, no sertão baiano. Sucupira passa a se fixar no imaginário popular como o Brasil dos coronéis, aquele país em que políticos corruptos se utilizam de artimanhas para conseguir tudo o que desejam.

Na memória cidadã, me vêm com estardalhaço as eleições cariocas de 1982. É o caso Proconsult, um sistema informatizado de apuração dos votos associadoa antigos colaboradores do regime militar. A mecânica da fraude era bastante simples: consistia na transferência automática de votos nulos ou em branco para que fossem contabilizados para Moreira Franco, então candidato do PDS (antiga Arena). A fraude foi insistentemente denunciada pelo Jornal do Brasil e praticamente ignorada por seu principal concorrente O Globo e seu braço televisivo, a TV Globo, ambos da família Marinho, no Rio de Janeiro. O protagonismo, ou melhor, seu não-protagonismo na denúncia da exuberante fraude eleitoral foi tema do documentário britânico Beyond Citizen Kane,de 1993. A Globo, por sua vez, defende que nunca havia contratado a Proconsult e que baseava a totalização do votos daquela eleição na totalização própria que o jornal O Globo estava fazendo.

No campo afetivo, um programa dedicado à música popular brasileira sobressai: Chico & Caetano. É encontro de dois ícones da MPB: Chico Buarque de Holanda e Caetano Veloso. Gravado no Teatro Fênix, no Rio de Janeiro, o programa foi produzido no período de abril a dezembro de 1986, chegando a não mais que noveedições e era sempre exibido nas noites de sexta-feira. Estiveram no palco de Chico & Caetano representantes de diversos estilos: Cazuza, Elizeth Cardoso, Elza Soares, Milton Nascimento, Evandro Mesquita, Gilberto Gil, João Bosco, Jorge Benjor, Legião Urbana, Luiz Caldas, Maria Bethânia, Os Paralamas do Sucesso, Paulinho da Viola, Rita Lee e os estrangeiros Mercedes Sosa, Astor Piazzola, Pablo Milanés e Silvio Rodríguez. Inesquecível mesmo foi a apresentação de “Volver a los 17”, reunindo de uma só vez artistas como Mercedes Sosa, Milton Nascimento, Gal Costa, Caetano Veloso e Chico Buarque.

O debate Collor vs. Lula

Na memória cidadã, vejo no retrovisor da história a mesma TV Globo servindo como sustentáculo do regime ditatorial instaurado no Brasil em 1964. Este apoio, tantas vezes contestado por seus donos e por seus principais executivos, somente vinte anos depois, em 7 de outubro de 1984, é que se tornaria escancarado. É que na edição desse dia de O Globo, em artigo assinado pelo próprio Roberto Marinho, os leitores podiam ler afirmações como:

“Participamos da Revolução de 1964, identificados com os anseios nacionais de preservação das instituições democráticas, ameaçadas pela radicalização ideológica, greves, desordem social e corrupção generalizada. Quando a nossa redação foi invadida por tropas anti-revolucionárias, mantivemo-nos firmes em nossa posição. Prosseguimos apoiando o movimento vitorioso desde os primeiros momentos de correção de rumos até o atual processo de abertura, que se deverá consolidar com a posse do novo presidente.”

Como afirmado por Roberto Marinho, esse apoio se iniciou em 1964 e prosseguiu até o processo de abertura política.

No campo afetivo, tenho comigo os finais de semana em que se revezavam programas de calouros genuinamente brasileiros: A Buzina do Chacrinha e a Discoteca do Chacrinha. E aquelas imagens impagáveis de quando existia o quarteto “Os Trapalhões”, com sua trupe original formada por Dedé, Didi, Mussum e Zacarias. Não imagino as novas gerações guardando na memória afetiva coisas como Domingão do Faustão,Zorra Total.

Na memória cidadã, encontro ecos ainda recentes da indignação que tomou conta de parte do país quando a emissora passou a ser acusada de ter ajudado a eleger o candidato Fernando Collor de Mello nas eleições de 1989, através da manipulação de trechos do último debate de Collor contra Lula. Duas reportagens foram feitas sobre o debate do dia 14 de dezembro de 1989. Uma delas foi no Jornal Hoje e outra foi no Jornal Nacional, sendo esta a mais polêmica. A reportagem do JN foi criticada duramente por favorecer – e influir decisivamente – na eleição de Fernando Collor de Mello naquele que foi o primeiro certame eleitoral pós-regime ditatorial iniciado em 1964. O Partido dos Trabalhadores (PT) moveu contra a Globo uma ação no Supremo Tribunal Federal. O PT queria que novos trechos do debate fossem colocadas como direito de resposta, mas o pedido foi negado.

Os “Princípios Editoriais”

No campo afetivo, retenho ainda a imagem de Ayrton Senna apoiado na sua Williams, flagrado pelas TVs, com o olhar distante e perdido, pouco antes do início do GP de San Marino. As imagens levadas pela Globo transformaram cada lar brasileiro em clássica sala de velório. Ainda lembro a frase dita pelo jornalista Roberto Cabrini ao “Plantão da Globo”, boletim de notícias extraordinário da Rede Globo, no dia 1º de maio de 1994. Logo após a confirmação da morte de Ayrton, pelo hospital, Cabrini noticiou dizendo, por telefone: “MorreuAyrton Senna da Silva… Uma notícia que a gente nunca gostaria de dar”.E nos ouvidos ressoam acordes dramáticos, misto de euforia com profunda tristeza daquele que era considerado o “Hino da Vitória” ou “Hino do Senna”.

A Rede Globo, cada vez mais onipresente no palco das grandes decisões nacionais, volta a ser novamente acusada de interferir nas eleições presidenciais. Desta vez, nas últimas eleições presidenciais, em 2010. É que no dia 18 de abril de 2010, a emissora carioca lançou com estardalhaço no seu principal programa dominical – Fantástico – uma campanha para celebrar seus 45 anos de existência como rede de televisão, que aconteceria em 26 de abril daquele ano. O logotipo da emissora aparece ao lado do número 45, incluindo frases dos principais atores da emissora, declamando jinglescomo “todos queremos mais”. Em determinado trecho da peça, os atores falam: “Todos queremos mais. Educação, saúde e, claro, amor e paz. Brasil? Muito mais”. Não tardou para que parte considerável da população entendesse o jingle como propaganda, embora disfarçada, francamente favorável à candidatura de José Serra a presidente do Brasil pelo PSDB. Eu disse disfarçada? Basta recordar que naquele pleito o slogan político vociferado por Serra, desde o momento em que assumira sua pré-candidatura, era exatamente… “OBrasil pode mais”.

Irônico observar a distância que separa, como se fosse uma sólida muralha chinesa, intenção e gesto. No caso, a distância entre uma e outra situação protagonizada pelas Organizações Globo – e aqui se inclui sob um mesmo guarda-chuva a TV Globo, o jornal O Globo, a rádio CBN e dezenas de outras empresas que exploram o nicho da informação. Irônico porque menos de 90 dias decorreram desde que, em 6 de agosto de 2011, documento assinado pelos irmãos Roberto Irineu Marinho, João Roberto Marinho e José Roberto Marinho – herdeiros e principais executivos das Organizações Globo – tratava de difundir as ideias do principal grupo de comunicação nacional enfeixadas sob o pomposo título “Princípios Editoriais das Organizações Globo”.

O Pan-Americano de Guadalajara

Não precisamos avançar muito na leitura, mesmo que vertical, do calhamaço. Geralmente sabemos de antemão o que algo assim intitulado traz em seu bojo. É porque está logo ali, no preâmbulo, no primeiríssimo parágrafo, e a título de apresentar sua definição de jornalismo está escrito:

“De todas as definições possíveis de jornalismo, a que as Organizações Globo adotam é esta: jornalismo é o conjunto de atividades que, seguindo certas regras e princípios, produz um primeiro conhecimento sobre fatos e pessoas. Qualquer fato e qualquer pessoa: uma crise política grave, decisões governamentais com grande impacto na sociedade, uma guerra, uma descoberta científica, um desastre ambiental, mas também a narrativa de um atropelamento numa esquina movimentada, o surgimento de um buraco na rua, a descrição de um assalto à loja da esquina, um casamento real na Europa, as novas regras para a declaração do Imposto de Renda ou mesmo a biografia das celebridades instantâneas. O jornalismo é aquela atividade que permite um primeiro conhecimento de todos esses fenômenos, os complexos e os simples, com um grau aceitável de fidedignidade e correção, levando-se em conta o momento e as circunstâncias em que ocorrem. É, portanto, uma forma de apreensão da realidade.”

Observe agora que, há bem poucos dias, no período de 16 a 30 de outubro de 2011, se realizaram na cidade mexicana de Guadalajara os Jogos Pan-Americanos. O evento internacional foi realmente de grande porte: reuniu 6.004 atletas, 700 mil torcedores e cerimônias para entrega de 1.177 medalhas de ouro, prata e bronze. Esta edição registrou a melhor atuação do Brasil na história dos Pan-Americanos. E teve a proeza de trazer para o espaço que vai do Oiapoque ao Chuí nada menos que 141 medalhas – 48 de ouro, 35 de prata e 58 de bronze… Pois bem, o que aconteceu em Guadalajara estava bem distante de um buraco de rua, de um assalto à loja da esquina, de um atropelamento em rua movimentada. Também não tinha o valor-notícia de novas regras para declarar o Imposto de Renda e menos ainda o glamour de um casamento, seja na Europa, na Ásia ou na África.

Por que, então, passou batido na escalada de notícias difundidas ao longo de duas semanas pelo Jornal Nacional, Bom Dia Brasil, Jornal Hoje, Fantástico? Por que seus milhões de telespectadores, aqueles que lhe dão audiência e lucros financeiros diários, segundo a segundo, ficaram privados desse orgulho de ser brasileiro, de subir ao principal pódio – o ouro – nada menos que 48 vezes, quase quatro vezes a cada dia e ao som do Hino Nacional brasileiro?

A Globo não é mais a mesma

A resposta pode ser qualquer uma dessas a seguir mencionadas. Ou todas elas, a um só tempo. Uma notícia só tem interesse público no campo do jornalismo se estiver amparada em polpudo contrato comercial. Importa mais as cotas de inserções publicitárias na TV Globo que… as medalhas conquistadas pelo Brasil, a vitoriosa e extensa delegação brasileira, o grandioso espetáculo esportivo para um país que foi escolhido para sediar megaeventos, como a Copa do Mundo de futebol de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016. Nesse caso, os direitos de exclusividade ficaram com a Rede Record de Televisão e com isso qualquer interesse jornalístico pelo evento deixou de existir.

Mas, para a população, interessaria saber se as imagens eram trazidas ao Brasil pela Globo, Record, Band ou SBT? É como se submeter à visão míope, tacanha e canhestra de que, na hipótese de nossos próximos pleitos presidenciais estiverem atrelados a contratos comerciais com exclusividade para a emissora de TV A ou B, as demais simplesmente deixariam de informar à população brasileira os lances da campanha, as pesquisas de opinião, os debates entre os principais candidatos, as notícias no dia das eleições e também o nome do vitorioso.

A Globo não é mais a mesma. E não é apenas porque decidiu cancelar um show inédito de Roberto Carlos na semana do Natal, optando pela reprise do show do cantor em Jerusalém. Não é mais a mesma porque se distanciou muito do que prega em seus manuais e pelo que realiza no campo do jornalismo. Depois de todo este palavreado chego a conclusão de que a Globo continua mudando para continuar sendo… exatamente a mesma.

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[Washington Araújo é mestre em Comunicação pela UnB e escritor; criou o blog Cidadão do Mundo; seu twitter]