Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Na Rússia, a morte como censura

Durante as décadas em que existiu a União Soviética, os que criticavam o regime, chamados de dissidentes, sofriam confinamento em campos de trabalho corretivos, que ficaram conhecidos como Gulags, ou eram internados em hospícios ou detidos em suas casas sem permissão para sair.

A União Soviética acabou, foi substituída pela Federação Russa, onde existe nominalmente um regime democrático. Acabaram os Gulags, os hospícios e as prisões domiciliares arbitrárias e teoricamente todos têm o direito de pensar e exprimir livremente o pensamento, mas na prática a coisa não está funcionando assim. A classe profissional que mais critica e denuncia irregularidades do regime é a dos jornalistas. A imprensa não sofre censura, mas os jornalistas que desagradam ao governo são simplesmente assassinados: Nina Yefimova, assassinada em maio de 1996, trabalhava na Chechênia denunciando o crime organizado. Yuri Shchekochikhin, envenenado em julho de 2003, era autor de campanhas contra a influência do crime organizado na política russa. Paul Klebnikov, assassinado em julho de 2004, autor de numerosas investigações sobre a corrupção na Rússia. [O perigo de informar a verdadeOI, 27/7/04]. Anna Politkovskaja, autora de investigações sobre a política do Kremlin na Chechênia, foi assassinada em outubro de 2006. [O assassinato de uma heroínaOI, 10/10/06].

Os ‘segredos’ da internet

Acima foram citados somente os mais notáveis jornalistas russos entre os 14 assassinados desde o ano de 2000. No dia 2 de março passado, mais um mistério: o atlético repórter Ivan Safronov, do jornal Kommersant, especializado em assuntos militares por ser coronel reformado e ter exercido o cargo de porta-voz no quartel-general das tropas especiais, caiu do quinto andar de um prédio no centro de Moscou. Imediatamente, a polícia classificou a morte como suicídio e fim de conversa. Mas Ivan ganhara fama de jornalista intransigente e independente. Na Rússia isso significa ‘incômodo’. Os paladinos das liberdades e dos direitos com freqüência morrem sem que a justiça seja feita.

Muitas vezes ele fora obrigado a apresentar-se à FSB (a Polícia Federal da Federação Russa) para prestar declarações. Em algumas dessas ocasiões, ridicularizou os agentes da inteligência, mostrando que encontrara o material de suas investigações na internet: era só clicar no ponto certo.

Em busca da verdade

A hipótese de suicido não se sustenta: ele adorava a mulher e os filhos, não ganhava muito, mas o suficiente para levar uma vida digna. Na tarde em que morreu tinha comprado um cesto de laranjas e tangerinas para os filhos. Se tivesse a intenção de matar-se não teria passado na frutaria.

Seu objetivo profissional era dar um fim aos desonestos, aos lobistas e aos incompetentes que, segundo ele, tinham tomado conta do aparato militar.

Vladislav Borodulin, diretor do Kommersant, diz que Ivan tinha deixado o exército pois entendera o quanto era importante defender seu uniforme e sua corporação, mas a verdade deveria ser divulgada por mais desagradável que fosse. E termina: ‘Por todo o tempo que conheci Ivan, ele fez somente isso: procurava a verdade e a encontrava.’

‘Eu sei como falar com eles’

Poucos dias antes de sua morte, dissera a um colega que estava empenhado em uma séria investigação. Qual verdade, qual informação que não deveria saber ‘suicidou’ Safronov? Para juntar ainda mais dúvidas, um colega seu de redação, Andrej Kolessnikov, conta algo interessante: ‘Há alguns dias, pedi um conselho a Ivan porque tinha sido convocado pela FSB. Não sabia qual era o assunto do interrogatório e pensei que fosse por qualquer segredo de Estado que pudesse ter revelado. Mas Ivan tranqüilizou-me: ‘Vai lá e descarrega toda a responsabilidade em cima de mim. Eu sei como falar com eles’.’

Ivan Safronov não pode falar, pois certamente esse fato decretou sua sentença de ‘suicídio’. Foi calado para sempre.

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Jornalista