Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

No fim das contas, a culpa será da chuva

Um dos raros momentos em que a Rede Globo de televisão resolveu tratar do crime ambiental praticado pela empresa Samarco em Mariana/MG foi no programa Bom Dia Brasil desta segunda-feira, 18 de janeiro de 2016. Um crime que já destruiu toda a vila de Bento Rodrigues, todo o complexo hídrico do Rio Doce, levou à morte milhares de espécies animais e vegetais e, na última contagem, 18 seres humanos, destruiu ecossistemas, poluiu toda uma rede de zonas úmidas na foz do Rio Doce, fechou praias no Espírito Santo e na Bahia e, além disso, mais recentemente, passou a ameaçar o paraíso ambiental do Atol das Rocas.

Como se observa, identificamos num breve relato vários crimes, incluindo homicídio culposo (pode-se até alegar dolo eventual), poluição em diversas escalas, destruição de áreas de preservação permanente, morte de espécies animais e vegetais (algumas em processo de extinção), dentre outros e, obviamente, descumprindo a Licença Ambiental.

Sobre a Licença Ambiental, existem elementos documentais que indicam desde a obtenção de vantagens indevidas no processo de licenciamento até a omissão de dados essenciais ao órgão licenciador, o qual, por sinal, deveria estar acompanhando de perto a execução de uma obra dessa dimensão.

De acordo com a própria Globo, o levantamento do Ministério Público mineiro indica que a empresa recebeu a Licença de Instalação, que é o documento responsável pela autorização das obras, sem “projeto executivo”, no ano de 2007. Isso mesmo, o projeto executivo é aquele que é exigido de qualquer pessoa que pretende construir uma casa. Ora, sem “projeto executivo” é impossível a autorização de uma obra, pois o órgão fiscalizador perde totalmente o controle sobre a mesma.

Os problemas de drenagem são graves

Talvez, num processo de expedição de Licença de Instalação, o governo possa estabelecer prazos para a entrega de alguns projetos complementares posteriormente, como o de paisagismo, por exemplo, até porque o licenciamento ambiental é um procedimento administrativo caro. Mas, nunca sem o projeto executivo. Além do mais, a Samarco, uma grande empresa, que tem como principais acionistas as multinacionais BHP Biliton e a Vale do Rio Doce, não possui problemas financeiros para custear o licenciamento. Muito pelo contrário.

Outro fato interessante é que tudo isto aconteceu em Minas durante o governo de Aécio Neves (PSDB/MG), um dos baluartes do moralismo golpista, que até usou a construção das obras da barragem do Fundão como uma das grandes realizações da sua administração. Mas deixemos isso para depois.

Ainda na mesma matéria, a Globo foi mais longe – o que estava ficando cada vez mais surpreendente! O Ministério Público descobriu que em 2013 uma empresa que prestava consultoria à Samarco avisou a contratante que o projeto de drenagem dos canais na base da represa apresentava problemas e ameaçava a estrutura do projeto. Tal informação foi descartada pela empresa, que continuou a obra mesmo assim.

Ora, qualquer pessoa que trabalhe na construção civil, mesmo sem formação acadêmica, sabe que a existência de problemas de drenagem na base de uma obra pode resultar em prejuízos graves. Todavia, quando falamos de uma represa, isto pode determinar a queda das barreiras de contenção do entorno, a destruição das paredes e o vazamento do material represado.

Samarco assumiu total responsabilidade

O que a Globo não disse, e isso é importante, é que tais relatórios sempre são entregues ao órgão licenciador. Mas na época em que o governador Antônio Anastasia (PSDB/MG) apresentava a continuidade da obra da barragem do Fundão como uma das grandes realizações do seu mandato, pois pretendia seguir o caminho do antecessor, Aécio Neves, do mesmo partido, num mandato de senador, isso não foi respeitado. Ou seja, a Globo continuou omitindo que todas as irregularidades das obras da Samarco foram identificadas pelo o Ministério Público durante governos do PSDB. Isso chama-se “apagar da memória”, pois seria impossível que os dois governadores do “choque de gestão tucano” não tivessem conhecimento de um crime ambiental que acontecia debaixo dos seus narizes, em uma obra que foi acompanhada de perto e utilizada por ambos como propaganda de campanha.

Contudo, ainda havia um terceiro ponto que apareceu na matéria e também é parte das investigações. Antes de 32 milhões de metros cúbicos de lama de rejeito e mineração destruírem com o Rio Doce, causando impactos ambientais gravíssimos, que destruíram o rio e ainda ameaçam a biodiversidade do Oceano Atlântico, a Samarco assumiu um passivo ambiental de uma das suas principais acionistas, a Vale do Rio Doce, e passou a administrar uma imensa massa de rejeitos/resíduos da sua antecessora, os quais deveriam ser tratados em conjunto com a barragem do Fundão.

Isso mesmo, o governo do estado licenciou a construção de uma obra para tratar os rejeitos minerários recentes e todo um passivo lançado a céu aberto sem o menor controle.

Rapidamente, a Globo se apressou para apresentar a defesa da Vale, uma das suas grandes patrocinadoras, e privatizada num dos maiores escândalos da história da República, quando teve o seu patrimônio estimado em cerca de mais de RS 100 bilhões, e foi vendida por apenas R$ 3 bilhões. Segundo a Vale, num contrato assinado entre as duas empresas, a Samarco assumiu total responsabilidade pelos passivos ambientais.

Uma estratégia de manipulação

Ocorre que a Globo não foi muito longe neste ponto da matéria e esqueceu de informar alguns elementos fundamentais que devem contar no relatório do Ministério Público mineiro: a) no direito ambiental existe uma coisa chamada “princípio da responsabilidade integral”, previsto no art. 225 da Constituição Federal, e que vincula todos os responsáveis que tenham contribuído para o dano ambiental à totalidade da infração; b) que na legislação brasileira o gerador é sempre responsável pela destinação dos resíduos, seja uma pilha, uma lâmpada, ou milhões de toneladas de rejeitos minerários; e c) talvez o principal, a Vale é uma das donas da Samarco. Logo, é responsável por todas as ações da sua subsidiária (e voltamos, aqui, à responsabilidade integral).

Na prática, a Globo foi divulgando informações que já são de domínio público, com um “jornalismo investigativo de baixa qualidade”, dramático e cheio de falhas em pontos essenciais da matéria, omitindo informações de extrema relevância. Ou temos um amadorismo absurdo, ou uma escandalosa manipulação de informações. Nem preciso dizer que a Globo esqueceu de informar que a barragem do Fundão foi construída a montante do Rio Doce, ou seja, na parte mais alta da bacia hidrográfica, numa ação extremamente perigosa sob o ponto de vista ambiental, aumentando o os riscos de uma tragédia ambiental sem precedentes, os quais deveriam constar no Estudo de Impacto Ambiental – EIA, pois as alternativas locacionais são um imperativo em qualquer termo de referência dos EIAs.

Mas o “selo final da manipulação” foi deixado pela Globo para o final. Num rápido movimento de montagem jornalística, o programa Bom Dia Brasil transferiu a cena da repórter que comandava a matéria e repassou as câmeras para o comentarista Alexandre Garcia. Daí, veio a bomba! Como sempre faz, o gaúcho radicado em Brasília faz um discurso moralista sobre a falta de controle em milhares de barragens semelhantes à do Fundão em todo o Brasil e que é preciso investigar também todas as construções que são feitas todos os dias em encostas de morros, especialmente agora que começou o período das chuvas. Como? É isso mesmo: de uma hora para a outra já não existia mais Samarco, nem Vale, nem tucanato. O problema não era o crime ambiental sem precedentes que destruiu o icônico Rio Doce, mas o “risco do período de chuvas”.

Rapidamente, Garcia manipulou a matéria e misturou no mesmo saco o problema social causado pela especulação imobiliária nas grandes cidades, que leva pessoas a morarem em encostas de morros, as construções de barragens sem identificar o perfil das obras, e o crime ambiental da barragem do Fundão. O grande problema passou a ser o período de chuvas! Em mais uma vergonhosa estratégia de manipulação de informações, a Rede Globo criou um novo responsável por crimes e tragédias ambientais: a chuva!

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Sandro Ari Andrade de Miranda é advogado e mestre em Ciências Sociais