Howell Raines é seu próprio herói. Pelo menos é esse o tom, involuntário ou não, que passa seu texto autobiográfico de 20 mil palavras preparado para a edição de maio da Atlantic Monthly – de acordo com informações de Jack Shafer [Slate, 24/3/04].
Intitulada ‘My Times’ – um trocadilho que leva o nome do jornal e que pode também significar algo como ‘meus momentos’ –, a história dos 20 meses de sua ascensão e queda como editor-executivo do New York Times é um material importante que veio a se somar à literatura que retrata o assunto.
Ácido, Jack Shafer não lhe poupa adjetivos. ‘Como ocorre com a maioria dos autobiógrafos, Raines exagera em sua importância, pinça fatos seletivamente, pune velhos desafetos e constrói novos, se contradiz, finge re-analisar criticamente as circunstâncias de sua maior derrota à frente do Times e simula autocrítica’.
E como qualquer autobiógrafo, ele conclui seu texto com um ‘adeus a todos’ para demarcar bem o fim da crise e o recomeço dos dias melhores que devem vir. ‘Aos 61, sou jovem o suficiente para inventar um novo capítulo de minha vida em vez de reler perpetuamente os que passaram’, escreveu Raines.
Raines diz que teve ’25 ótimos anos no Times e apenas um mês ruim’, o que abarcou o escândalo Jayson Blair e culminou em seu pedido de demissão. O ex-editor-executivo se descreve como ‘agente de mudanças’ do jornalão, apesar da forte oposição interna que acabou se revelando com o escândalo. Assume, não de forma completamente correta, o crédito por revitalizar o departamento de fotografia. Reclama de repórteres do Times que não querem viajar para fazer matérias, mas nada disse sobre seu grande amigo Rick Bragg, que enviou um estagiário não-remunerado para fazer seu trabalho na Flórida, apesar de o texto ter levado a assinatura de Bragg e ‘Flórida’ como local de reportagem – como se o fato de apenas tocar o solo do estado significasse que tivesse viajado até lá para trabalhar.
Shafer, da Slate, diz que a cegueira contínua de Raines poderia inspirar um personagem desiludido típico de um romance de Saul Bellow ou, pelo menos, de um episódio da série americana CSI: ‘Repartição psiquiátrica’, seria o título. No começo do texto, Raines venera o jornalão, chamando-o de ‘uma ótima máquina da verdade’, uma ‘instituição americana insubstituível’, ‘a peça-chave da ética no jornalismo americano’, que ‘ocupa lugar central em nossa vida cívica nacional’. E Shafer espezinha: ‘O Times é um grande jornal e tal, mas se a Terra o engolisse amanhã, a República sobreviveria’.
‘Há suficiente amor próprio na autobiografia de Raines para lhe garantir espaço da seção ‘auto-erótica’’, diz Shafer. ‘Quando Raines pára de se romantizar no espelho público (…) podemos concluir que Arthur O. Sulzberger Jr. fez aos leitores e aos funcionários do Times um bom serviço se livrando dessa besta metida’.
Outra visão
O colunista Howard Kurtz, do Washington Post [24/3], parece não concordar com a análise feita pelo articulista da Slate. Em momento algum ele comenta que Raines tenha se superestimado e ao jornal. No que diz respeito ao Times, Kurtz chega a afirmar o contrário de Shafer. ‘Raines critica o jornal por sua ‘cultura de reclamações’, ‘atmosfera de prazos apertados’, ‘administração por hipocrisia’, ‘universo editorial laissez-faire’, ‘indiferença à competição’ e ‘trabalho relapso (…) aceito como adequado’’, afirma Kurtz. ‘Se Raines foi um patrão muito exigente, não perdeu seu fervor em criticar o Times. ‘USA Today e The Wall Street Journal são melhores que o Times na edição para público nacional’ com interesses mais amplos’, cita o colunista do Post.
Um repórter do Times entrevistado por Kurtz e que não quis ser identificado disse que muitos funcionários do jornalão viram a matéria de Raines como um exercício de marcar pontos contendo ofensas pessoais injustas. ‘É um bom resumo de como ele construiu seu império aqui’, disse o repórter. ‘Ele confundia liderança com propriedade’.
Após oito meses de silêncio, esta foi a primeira vez que Raines reconheceu sua ‘falta de vigilância’ em relação a Jayson Blair e admitiu que poderia ter descoberto as fabricações bem antes se ‘tivesse lido e reagido às correções publicadas pelo jornal com a agilidade e o cuidado necessários’.
Raines falou ainda do programa de ação afirmativa na redação do jornalão. O tratamento de Blair, que é negro, ‘criou um clima racial como nunca visto antes no Times‘, disse, acrescentando que os funcionários pertencentes a minorias temiam um ‘retrocesso branco’.
Entre as metralhadas de Raines, uma chama atenção: sua crítica às recomendações feitas pela equipe de investigadores montada pelo subeditor-administrativo Alan Siegal, a fim de analisar as fraudes cometidas por Blair e criar soluções que evitassem as chances de tragédia semelhante reincidir. Para o ex-editor-executivo, as recomendações, que incluíram a contratação de um ombudsman, são apenas ‘um hino do velho status quo‘, incapazes de consertar problemas como os sofridos pelo jornal.
Apesar de as visões de Kurtz e Shafer serem bem diferentes, em um texto com 20 mil palavras não é impossível que as idéias centrais não tenham sido as mesmas para todos os leitores. Ainda mais para uma extensa reportagem cheia de contradições e relances histriônicos. Cabe a cada um esperar até maio para ler a matéria de capa da Atlantic Monthly. De qualquer forma, é desnecessário dizer que foi uma ótima tacada da revista no reaquecimento dessa discussão, já inflamada pelo livro de Jayson Blair.