Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O barão das armas e da mídia

O novo barão da imprensa francesa chama-se Serge Dassault, de 79 anos, filho de Marcel Dassault, o criador da indústria de armamentos fabricante do avião de caça Mirage. Dassault é uma das maiores fortunas da França.

No dia 11 de março, enquanto o mundo tentava digerir o choque da notícia do atentado terrorista em Madri, Serge Dassault anunciava em Paris seu feito mais recente: com uma nova transação, passava a deter 80% do grupo de imprensa Socpresse (proprietário de 70 jornais e revistas), fundado por Robert Hersant. Segundo o comunicado do Grupo Dassault, a operação deve ser fechada dentro de dois meses, depois de submetida a diferentes instâncias sociais e autorizada pelas autoridades européias da concorrência.

A compra significa que Dassault passa a ser dono do jornal Le Figaro, o maior diário de direita de circulação nacional (352 mil exemplares), e da revista L’Express (547 mil exemplares semanais). Além disso, o novo proprietário controlará um terço da imprensa diária regional. [Desde os anos 1950 os Dassault mantinham alguma participação minoritária em veículos de mídia, inclusive no Le Figaro.]

Classificada de ‘terremoto’ no panorama da imprensa francesa pelo jornal Le Monde, a transação suscitou reações indignadas dos jornalistas que trabalham os títulos negociados: ‘Depois de ter sido comprado por um colaboracionista, o Progrès vai passar a fazer parte do império de um vendedor de canhões’, regiu um jornalista do diário Progrès, 264 mil exemplares, editado em Lyon e comprado por Hersant, em 1986.

O ‘colaboracionista’ era Robert Hersant, cujo passado de vinculação com os alemães na então França ocupada lhe valeu uma condenação a 10 anos de cadeia por ‘indignidade nacional’, em 1947 – o que não impediu que na década de 1950 ele começasse a construir um império jornalístico, com a compra de um pequeno jornal de esportes. O ‘vendedor de canhões’ é como os jornalistas dos 70 jornais e revistas tratam o novo patrão.

No dia seguinte ao anúncio, a Federação dos Trabalhadores da Indústria do Livro, do Papel e da Comunicação distribuiu um comunicado dizendo que Dassault investe na imprensa para dirigir seu conteúdo – como já fazem outros gigantes da indústria francesa, que se apoderam pouco a pouco da mídia impressa e audiovisual. O comunicado pedia aos jornalistas que continuem a batalha diária pelo pluralismo na imprensa.

Relações com o poder

Grande amigo de Jacques Chirac, Dassault já detinha 30% das ações do grupo Socpresse desde janeiro de 2002. A parte comprada agora, 50% das ações dos herdeiros de Hersant, custou ao fabricante de aviões 500 milhões de euros. A Socpresse teria sido avaliada em 1 bilhão de euros pelo grupo Rothschild et Cie., segundo uma fonte citada pelo jornal Le Monde.

O que interessa ao novo barão da imprensa são justamente Le Figaro e L’Express, embora outros diários da imprensa regional signifiquem um potencial enorme de influência em toda a França. Dassault um dia declarou que seu grupo precisava de um jornal para expressar sua opinião e responder a jornalistas que escrevem coisas ‘desagradáveis’. ‘Estou cansado de ser insultado por incompetentes que não conhecem os verdadeiros problemas. Agora vou poder responder.’

No L’Express, a Sociedade dos Jornalistas adotou imediatamente uma moção lembrando que a independência da revista não deveria sofrer nenhum arranhão. ‘Tememos que o objetivo dessa operação seja não a busca de uma coerência industrial, mas a realização de um desejo muitas vezes expresso de dispor de um grupo de imprensa para afirmar convicções políticas bem marcadas. Esta situação é inédita na imprensa francesa.’

Os jornalistas do Le Figaro, por intermédio da Sociedade de Redatores do jornal, somente divulgaram sua opinião sobre a transação na terça, 23 de março. No texto, os jornalistas dizem que não há jornal que valha a pena sem uma redação que exerce livremente a profissão. Os jornalistas se dizem inquietos quanto às intenções de Serge Dassault, ‘tendo em vista as declarações que ele fez nos últimos dois anos’.

República de bananas?

‘Vivemos numa república de bananas na qual um vendedor de armas, amigo do poder, detém 80% do primeiro grupo de imprensa francês. Como se aceita que empresas como Bouygues e Dassault, que têm encomendas do setor público, sejam majoritárias em grupos de imprensa ? Até mesmo os Estados Unidos têm leis antitruste. Essa cartelização da imprensa é inadmissível para quem defende os valores democráticos’, reagiu o deputado Noel Mamère, candidato do partido Verde nas eleições presidenciais de 2002.

O fabricante de armas amigo do presidente da República é um ‘pensador’ liberal. Para defender suas idéias ela escreveu quatro livros: Pour un libéralisme authentique, La gestion participative, J’ai choisi la vérité e Un projet pour la France. Com a volta da esquerda ao poder em 1997, ele decidiu que era hora de ter também jornais para expor suas idéias.

Por viverem numa ‘república de bananas’ nem tão república de bananas assim, uma vez que os sindicatos detêm uma grande força de influência nas empresas, os jornalistas franceses e seus sindicatos começaram a se movimentar para impedir que seja minada a independência dos veículos em que trabalham. ‘Batalharemos para manter a independência dos nossos jornais e a independência da informação, sobretudo em relação a qualquer ingerência política’, dizia um comunicado dos representantes dos sindicatos CFDT e CGT.

Os mais combativos como a União Sindical dos Jornalistas (CFDT) pretendem questionar instâncias francesas e européias sobre a concentração da mídia nas mãos de grupos industriais e financeiros que ‘podem ser tentados a utilizar a informação a serviço de seus próprios interesses’. Para os jornalistas, são os fundamentos da independência da imprensa e do pluralismo que estão ameaçados quando os grandes grupos industriais dominam a mídia. Quatro gigantes da indústria francesa (Arnaud Lagardère, Bernard Arnault, François Pinault e agora Serge Dassault) dominam grande parte do panorama da mídia, não somente impressa mas audiovisual.

O presidente do grupo Ouest-France, François-Régis Hutin, que faz o jornal do mesmo nome (a maior tiragem entre os diários franceses, 762 mil exemplares, duas vezes a tiragem do Le Monde ou do Le Figaro), escreveu na semana passada um editorial em seu jornal em que vê a transação de Dassault como um reveladora do estado da imprensa francesa.

A venda do grupo Hersant é uma prova, segundo Hutin, de que mesmo os grandes grupos não estão a salvo. Em seu artigo no Ouest-France, ele conclama os jornalistas a refletirem sobre esse fato antes que os raros jornais parisienses ou regionais ainda independentes ‘sejam obrigados a se pôr à venda para pagar suas dívidas’.

Filho da mãe

Serge Dassault, de 79 anos, é filho de Marcel Dassault, o mítico empresário de armas a quem sucedeu há 18 anos na direção do império Dassault. Marcel Dassault – judeu que escapou do campo de concentração de Buchenwald e se chamava Bloch antes de mudar de nome – era amigo do pai de Jacques Chirac. O empresário ajudou o filho do amigo a tornar-se um político influente, através de generosos financiamentos a seu partido, o antigo RPR.

Chirac era primeiro-ministro na presidência de Giscard d’Estaing quando a França costurou uma aproximação com o Iraque de Saddam Hussein, depois da crise do petróleo da década de 1970. Ao visitar a França e ser recebido com todas as honras de chefe de Estado, com direito a um jantar oficial na Galeria dos Espelhos do Palácio de Versailles, Saddam Hussein conheceu Marcel Dassault. A partir de novembro de 1975, oficiais da força aérea do Iraque passaram a visitar as fábricas Dassault para tratarem da compra de caças supersônicos Mirage F-1. Serge justifica: ‘Vendemos aos clientes potenciais. A primeira consideração de um industrial é aumentar seu volume de negócios e desenvolver o emprego’.

Serge Dassault foi conselheiro regional do antigo partido de Chirac da região Ile-de-France e é prefeito de Corbeil-Essones desde 1995. Seu pai, Marcel, foi deputado e chegou a fundar o partido Democracia Cristã Francesa, hoje extinto, para garantir apoio parlamentar a Giscard d’Estaing.

A justiça belga condenou Serge Dassault a dois anos de prisão, com sursis, por uma acusação de pagamento de propina ao Partido Socialista Belga para uma grande venda de armas. Depois de acusar sua mãe de ter tomado a iniciativa sem seu conhecimento – a mãe morrera um pouco antes –, Serge declarou ao juiz: ‘Todo mundo dá comissões’.