Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O desdém da Casa Branca pela imprensa

O jornalista Ken Auletta assina a coluna de mídia ‘Annals of Communication’ na revista The New Yorker desde 1992, mas já escrevia para lá desde 1977. Tem vários prêmios e oito livros publicados. O mais recente é Backstory: Inside the Business of News. Para a New Yorker com data de capa de 19/1, Auletta escreveu reportagem de 12 páginas intitulada ‘Fortaleza Bush – Como a Casa Branca mantém a imprensa sob controle’, na qual descreve as cada vez mais azedas relações entre o atual presidente e os jornalistas que cobrem a sede do governo americano.

O trabalho demandou três meses de entrevistas, pesquisa e redação, e ganhou imensa repercussão nos Estados Unidos. Rendeu a Auletta – que não divulga a idade em parte alguma – convites para uma dezena de entrevistas em programas de rádio e TV, além de uma chuva de comentários em sites e blogs de mídia.

Auletta abre a matéria contando um episódio ocorrido em agosto no Texas, quando Bush ofereceu um churrasco à imprensa em seu rancho de Crawford. o presidente comentou que não vê telejornais nem lê jornais, a não ser uma notícia ou outra sobre esportes. Um repórter perguntou: ‘Como o senhor sabe então o que o público pensa?’ Bush replicou: ‘Você está fazendo uma enorme suposição, a de que vocês representam o pensamento do público’.

O mesmo discurso – uma espécie de declaração oficial sobre a irrelevância da imprensa – o colunista encontrou na Casa Branca, onde ouviu longa lista de altos funcionários.

‘Uma coisa cruel, gratuita’

As relações de Bush com a imprensa são ao mesmo tempo distantes, amistosas e espinhosas, diz o autor. Muitos repórteres gostam de Bush, o presidente deu apelidos a vários deles, e na campanha de 2000 os correspondentes se sentiam à vontade com o presidente brincalhão. Mas Bush considera a imprensa dominada por esquerdistas, e acha que essa postura afeta a cobertura. Ocorre que Bush não fica à vontade sob os holofotes, informa Auletta, especialmente em frente às câmeras de TV, e quando ele fala de improviso esse desconforto causa uma espécie de tensão que nada tem a ver com ideologia ou relações pessoais.

Mark McKinnon, diretor de propaganda das campanhas de Bush à Casa Branca, tem compreensão diferente, nota Auletta. ‘Nunca concordei com essa alegação sobre os desvios [ideológicos] da imprensa. A imprensa é agressiva com todo mundo. A natureza do negócio da notícia é que conflito é notícia’. Karl Rove, o mais íntimo conselheiro político de Bush, diz do presidente: ‘Ele tem grande respeito pela imprensa. Ele entende que o trabalho deles é fazer seu trabalho. Que não é necessariamente transmitir notícias. É conseguir uma manchete ou uma matéria que faça o público prestar atenção em sua revista, em seu jornal ou sua televisão’. E mais: Bush vê a imprensa como ‘elitista’, e acha que a origem social e econômica da maioria dos repórteres nada tem em comum com a da maioria dos americanos.

A visão de Bush sobre a imprensa tem tudo a ver com a de sua família. A mãe, Bárbara, nunca falou em off: temia ser traída pelo repórter. O pai deu uma entrevista exclusiva a Margaret Warner, da Newsweek, em 1987, quando preparava o lançamento de sua candidatura a presidente. Numa frase da matéria ela mencionou ‘uma potencial debilidade’ de Bush pai, uma percepção de que ele não seria forte o bastante para o cargo. Os editores pinçaram esta percepção para a capa, com a manchete: ‘Combatendo o fator fraqueza’. A jornalista, hoje na PBS, ainda se queixa da edição, que foi às bancas no dia do lançamento da candidatura: ‘Foi uma coisa cruel, gratuita’. A família Bush ficou magoada e irada, lembra ela.

De pires na mão

‘Coisas assim (…) nos fazem mais cautelosos’, diz a Auletta o texano Dan Bartlett, 32 anos, diretor de Comunicações da Casa Branca. Ele cuida de cinco áreas – imprensa, imprensa regional, imprensa internacional, redação de discursos e comunicações –, e tem sob seu comando 52 pessoas, 13 a mais do que o setor reunia na época do governo Clinton. Bush lhe disse mais de uma vez, sobre a imprensa: ‘O negócio deles é provocar’.

Bush já deu entrevista exclusiva a Brit Hume, da conservadora Fox News, a Tom Brokaw, da NBC, a Scott Pelley, da CBS, a Diane Sawyer, da ABC, ao Washington Post e ao Wall Street Journal, mas desde que se tornou presidente nunca falou com o New York Times, nem com Peter Jennings, da NBC, ou com Dan Rather, da CBS. ‘Fiz matéria recentemente com um alto funcionário da Casa Branca, e fui avisado: ‘Melhor que fique boa’, contou Jennings a Auletta. ‘Não foi uma ameaça, mas também não soou como piada.’ Jennings entrevistou todos os presidentes americanos desde Richard Nixon.

Todos os presidentes modernos se queixaram da imprensa. Até Kennedy, que gostava de jornalistas e era mestre em manipulá-los, observa Auletta. A diferença agora é a habilidade incomum da Casa Branca para manter a imprensa a distância, enquanto controla a agenda de notícias. E talvez pela primeira vez, arrisca Auletta, a Casa Branca vê os repórteres como ‘pleiteadores especiais’ – pleiteando mais acesso e melhores manchetes –, como se a imprensa fosse mais um simples grupo de interesse. E, sobretudo, um grupo de interesse que não é tão poderoso como antes.

‘Reagan nos mimava’

Auletta ouviu especialistas para entender o que este governo tem de diferente. ‘Tremenda lealdade’, entende Stephen Hess, ex-redator de discursos de Eisenhower, hoje acadêmico. ‘É a Casa Branca mais disciplinada da história’, resume Michael Deaver, subchefe da Casa Civil no governo Reagan. De fato, houve pouca mudança de quadros na equipe de Bush. Se há conflitos na Casa Branca eles ficam escondidos sob uma cultura semifamiliar. Bush insiste em que a Casa Branca fale a uma só voz. A disciplina impera: a Casa Branca é quase como uma corporação privada. ‘A grande maioria das pessoas que trabalham neste prédio não quer falar com a imprensa’, diz Bartlett.

‘Há uma tendência natural entre os porta-vozes políticos de quererem que a imprensa ‘goste’ deles, de que assim a cobertura melhora. Acho que este governo rejeita tal noção’, diz McKinnon, que continua: ‘Os repórteres que cobrem o governo são altamente capacitados, há uma enorme pressão sobre eles para que cultivem fontes. Então, as pessoas envolvidas como eu tendem a imaginar, ‘ah, eles me acham interessante’ – quando tudo o que eles querem é uma fonte. É fácil ser manipulado pela imprensa. Esta Casa Branca fez um bom trabalho ao entender como isso tudo funciona’.

O repórter Dana Milbank, 35 anos, um dos três setoristas do Washinton Post na Casa Branca, esclarece por que a equipe de Bush fala a uma só voz: eles trocam e-mails para combinar o que dizer à imprensa. ‘O que você ouve de Karl Rove é exatamente o mesmo que diz Scott McClellan (secretário de imprensa de Bush)’. Os funcionários não retornam ligações, não respondem às perguntas. ‘Freqüentemente nos tratam com desprezo’, diz Elizabeth Bumiller, do NY Times. ‘Em comparação, o governo Reagan nos mimava. Essa equipe levantou uma parede, nunca fala nada fora do combinado’.

Melhor um secretário-robô

Andrew Card, chefe da Casa Civil, dá sua visão: ‘Espera-se que antes de um fato ir a público pelo menos duas fontes sejam ouvidas. Vejo um monte de coisas divulgadas com, na melhor das hipóteses, uma só fonte. Isso é errado’. Mas como conseguir mais fontes se a Casa Branca não retorna as ligações?, pergunta Auletta. ‘Ser fonte não é nossa função. Os contribuintes não nos pagam para dar informação. Eu acho que a pessoa que é paga pelos impostos deve fazer seu trabalho. Se o trabalho dela é falar com a imprensa ela deve falar com a imprensa. Se é desenvolver políticas, seu trabalho é falar com as pessoas envolvidas nestas políticas, no processo; não são pagas para falar com a imprensa. Nosso trabalho não é fazer o trabalho de vocês mais fácil’.

Auletta descreve na matéria um dia de trabalho de Scott McClellan, o secretário de imprensa que sucedeu o irado Ari Fleischer. McClellan confessa que às vezes se sente como uma piñata [vaso de barro com doces pendurado do teto, que as pessoas, de olhos vendados, tentam quebrar com um pau]. A função vem mudando desde 1929, diz Auletta, quando Herbert Hoover nomeou o primeiro secretário de imprensa da Casa Branca: depende das relações entre o presidente e o assessor, e também da natureza da presidência. Pierre Salinger, secretário de Kennedy, era quase supérfluo: o presidente era seu próprio porta-voz; Jody Powell, de Jimmy Carter, era popular, por sua intimidade com o presidente; Ronald Ziegler, que acompanhou Nixon na fase Watergate, sentia-se normalmente na categoria da piñata, o que raramente aconteceu com Michael McCurry e Joe Lockhart, secretários de Clinton, mesmo nos tempos de Monica Lewinsky.

Marlin Fitzwater, que trabalhou com Reagan e Bush pai, acha que o bom secretário de imprensa é um intermediário entre o presidente e a mídia. Não é este o modelo na Casa Branca atual. ‘O presidente quer um secretário-robô’, diz um seguidor de Bush. McClellan não acha que trabalha para dois senhores. ‘Eu trabalho para o presidente dos EUA, sou um defensor de suas idéias e de sua agenda’. Em vez de dizer que igualmente representa a imprensa, ele afirma: ‘Estou aqui servindo também ao povo americano. Sirvo de advogado para a imprensa internamente quando considero apropriado. Mas, a menos que eles estejam 24 horas por dia com o presidente, eles não estão felizes’.

O rabugento Dana Milbank

No encontro matinal com a imprensa do dia 14 de novembro, os repórteres cismaram com uma declaração de Bush dada ao Financial Times na véspera de sua viagem a Londres, de que os americanos permaneceriam no Iraque até Saddam Hussein ser capturado ou morto. McClellan respondeu: ‘Ele disse que ficaremos lá até completarmos a missão, até chegarmos a um Iraque livre, pacífico e democrático’. Não adiantou. Nos 15 minutos do encontro, houve 19 versões da mesma pergunta. Mais tarde, McClellan disse a Auletta: ‘Eles estavam tentando dizer, ah, o presidente mudou o que tinha dito’. McClellan informou a Bush da possibilidade de ouvir tal pergunta em seu encontro seguinte com a imprensa (o grupo é levado ao Salão Oval algumas vezes por semana, informalmente, para alguns minutos de perguntas ao presidente.).

Mark Halperin, diretor de Política da ABC News, diz que os anos Bush forneceram uma lição: ‘Um presidente cercado por conselheiros que entendem que o público vê a imprensa como representante de um grupo de interesse, e não como guardiã do interesse público, pode nos manipular para sempre e determinar como quiser os prazos, o acesso e a pauta da imprensa’. Dan Bartlett rejeita essa noção. ‘O presidente gosta da imprensa, mantém boas relações com muitos representantes da imprensa’, diz. E esclarece a situação. Na entrevista de setembro à Fox News Bush disse: ‘O melhor meio de obter notícias é de fontes objetivas. E as fontes mais objetivas que tenho são as pessoas da minha equipe, que me dizem o que está acontecendo no mundo’. Segundo Bartlett, Bush conhece gente que forma opinião de muitos modos, não apenas pela imprensa. ‘Ele não acha que a imprensa seja o único canal com o público’.

A cobertura do governo teve várias fases até agora: a lua-de-mel, a posterior ao 11 de Setembro (mais adulatória), a fase iniciada após o outono de 2002, mais agressiva, devido à guerra no Iraque. Nessa fase a Casa Branca chegou a sugerir ao Post que Dana Milbank não era ‘adequado para o cargo’, após a matéria intitulada ‘Para Bush, os fatos são maleáveis’. Milbank não é querido na Casa Branca. Seus colegas o consideram ‘rabugento demais’, mas admiram sua independência; o Post até reconhece que no início as matérias dele continham excesso de atitude, mas sua editora, Maralee Schartz, acha que Milbank evoluiu e ‘desintoxicou’ seu texto. ‘Tenho em alta conta a cobertura de Dana. Ele dá furos; ele explica aos leitores como e por que Bush e a Casa Branca agem do jeito que agem; ele contextualiza politicamente decisões e ações’, elogia o editor-executivo do Post, Leonard Downie.

Só Ford não mentiu

A prematura declaração de vitória e ‘missão cumprida’ de um Bush vestido de piloto a bordo do Abraham Lincoln, em 11 de abril de 2003, serviu para a imprensa contestar a visão heróica que a Casa Branca tem de si mesma e inaugurar uma nova fase da cobertura, mais cética. A maioria dos repórteres da Casa Branca acha que Bush às vezes está isolado não só da imprensa, mas da própria realidade. Exemplo: David Sanger reportou no Times que quando Bush esteve na Ásia, em outubro de 2003, saiu de uma reunião com líderes islâmicos com a seguinte frase: ‘Eles realmente acreditam que nós pensamos que todos os muçulmanos são terroristas?’ Sanger analisou, em artigo posterior: ‘Foi um momento revelador precisamente porque o presidente estava tão surpreso…’

Numa entrevista coletiva concedida em 28 de outubro, a imprensa fez 23 perguntas a Bush, todas sobre questões internacionais – menos duas. Dan Bartlett indaga a Auletta: ‘Qual é a questão número 1 para os americanos? A economia’, ele mesmo responde. ‘Pois não houve uma só pergunta sobre economia. É como eles vêem as coisas. Não é uma cobertura objetiva’. Bartlett vê nisso uma prova da ‘negatividade’ da imprensa. Para Auletta, que assistiu à entrevista, apenas uma pergunta pareceu conter opinionismo.

Um trecho interessante do artigo é quando Auletta, depois de enumerar algumas informações diversionistas dadas pela Casa Branca à imprensa, cita o livro Eyewitness to power, de David Gergen (hoje em Harvard), que trabalhou para três presidentes republicanos e um democrata. Gergen assim resume sua experiência: ‘Nos últimos 30 anos, toda Casa Branca, salvo uma – a de Gerald Ford –, iludiu ou mentiu à imprensa’.

Real-time e tédio

Auletta comenta com acidez o acesso intensivo e inusitado que a estrela do jornalismo americano Bob Woodward teve à Casa Branca para escrever seu livro Bush at war [ver remissão abaixo para resenha de Anthony Lewis]. E dedica longo parágrafo a repórteres que não têm essa sorte, como John King, da CNN – obrigado a correr 15 vezes por dia à área da Casa Branca conhecida como Pebble Beach (praia de pedras), onde estão fincadas uma dúzia ou mais de câmeras de TV, para informes rápidos sobre o que está acontecendo. ‘Sobra pouco tempo para a reportagem’, queixa-se. David Sanger, do Times, também reclama: vendo o entra-e-sai das pessoas, que respondem a poucas perguntas, apurar uma notícia vira quebra-cabeça. ‘É uma apuração de radar, só se consegue o ping‘. Milbank completa o rosário de contrariedades: ‘É mais um trabalho de estenógrafo’. Por isso ele freqüentemente trabalha em seu escritório, vários quarteirões adiante, para buscar a verdade.

No parágrafo final, a conclusão dolorosa de Auletta: o governo Bush parece acreditar que o poder do corpo de repórteres da Casa Branca está aos poucos declinando. Visto de uma perspectiva histórica, a importância desse papel diminuiu, talvez significativamente. Mark McKinnon diz: ‘Drudge (o blog na internet de Matt Drudge) e a TV de notícias 24 horas criaram um virtual ambiente de notícias em real-time… Os briefings da Casa Branca são televisados – e instantaneamente postados na internet’.

McKinnon percebe a partir disso um misto de frustração e aborrecimento entre os repórteres da Casa Branca. ‘Eles todos são o creme da profissão, eles chegaram ao topo. E descobrem, para sua consternação, que não são tão importantes como pensaram que seriam. Ou deveriam ser. E, de fato, muitos estão entediados. A Casa Branca sempre foi o supra-sumo para os melhores repórteres. E agora eles ficam no limbo do tempo real, perdidos na poeira da internet e do cabo.’

Bush e os direitos humanos

A par da perplexidade geral com esse desdém da Casa Branca, em sites e programas sobre mídia, que deixaram seus titulares furiosos, um episódio narrado por Auletta na matéria da New Yorker causou furor também entre ativistas de direitos humanos. No talk-show Now, de Bill Moyers, na PBS (a TV pública americana), Auletta conta como foi.

Bill Moyers: Quando você entrou na Fortaleza Bush você viu o presidente?

Auletta: Vi. Não consegui entrevistá-lo. Passei um dia acompanhando a imprensa, a partir de 7 da manhã. E o presidente tinha uma entrevista com o Sun, o jornal de Rupert Murdoch na Inglaterra. Perguntas leves, devo acrescentar. Eles me deixaram sentar no Salão Oval para acompanhar esta entrevista e tomar notas.

Então, no fim da entrevista ele veio até mim e conversamos um pouco, sobre um conhecido comum, Tom Bernstein, ativista de direitos humanos. Eu disse, ‘o senhor sabe, seu amigo Tommy Bernstein passa sufoco em Nova York, entre seus companheiros democratas, por apoiar o senhor’. E ele disse, ‘Bernie é ótimo’. Ele tem um apelido para todo mundo, daí o Bernie…

E aí o presidente virou-se para mim e disse, ‘Você sabe, nenhum presidente fez mais pelos direitos humanos do que eu’. Eu olhei para ele, espero que meu queixo não tenha caído. Mas pensei em Woodrow Wilson, Jimmy Carter… E reproduzi a frase na matéria.