No último dia 29 de agosto, a revista Veja publicou um texto intitulado “É realmente interessante para as mulheres ganhar o mesmo que os homens?” Devo admitir que não consigo ler a revista Veja de forma sistemática e com credibilidade desde antes da existência de sua edição digital. De lá para cá, devo colocar que a tal revista vem, aos poucos, construindo sua audiência através de um muro de preconceitos e chauvinismo.
Como professor universitário, nas áreas de linguística e comunicação, e ex-profissional de mídia, observo ser impossível levar a sério os argumentos colocados em tal artigo, um claro exemplo do que chamo de mau jornalismo. Existe ali a construção de um mundo ficcional cujo objetivo é instaurar uma ancoragem pseudocientífica ao machismo representado em uma de suas faces mais entristecedoras: o desmerecimento do valor do trabalho da mulher. Gostaria de me ater ao que o autor do texto identifica como sendo ações necessárias para a equiparação salarial entre os gêneros.
- Impedir que tantas mulheres trabalhem com educação, recursos humanos ou pediatria. Segundo o autor, existe um excesso de profissionais nas referidas áreas, o que levaria a uma eminente queda no valor dos rendimentos. Naturalmente, algumas coisas parecem não ser levadas em conta, em especial no que tange a área de educação. Centrarei meus argumentos nela pois, entre as citadas, é dela que possuo mais proximidade. A questão da queda dos salários dos professores nas últimas décadas, em especial dos anos 60 para cá, não está ligada simplesmente a uma grande oferta de profissionais na área.
O problema está em uma desvalorização sistemática que o Estado tem dado a tal profissional e, consequentemente, à educação pública e de qualidade. Não falo apenas da queda de investimentos em infraestrutura, mas também da carga horária excessiva que os professores são expostos, dado o baixo ganho. Isso gera problemas no que tange à formação, uma vez que, esse mesmo professor, ao ter de trabalhar três períodos por dia, não tem tempo hábil para participar de programas de atualização. É importante também lembrar à revista que, no Brasil, a área de educação sempre, mesmo antes do crescimento em expressão dos movimentos feministas, teve um número superior de mulheres.
O que, naturalmente, também é resultado de uma cultura machista, que identifica a área como mais simples e mais fácil. Isso a identificaria diretamente com o feminino. Deixa-se, logicamente, as mais complexas (como engenharia) para o homem. No que tange aos salários, não podemos esquecer que a educação é uma das poucas áreas em que um professor e uma professora são contratos pelo mesmo valor mensal. A desvalorização da educação não tem gênero, mas tem um objetivo bem claro: elitizar o conhecimento.
- Convencer ou obrigar as mulheres a optarem por trabalhos desagradáveis. Essa questão me tocou bastante. Imaginar que no Brasil, esse tipo de trabalho talvez seja mais bem pago que o de jornalista, por exemplo. O Brasil é um país notório por ainda trazer traços de servidão. Um lixeiro, em São Paulo, tem um salário entre R$ 800,00 e R$ 1.200,00, dependendo do turno, cidade e companhia em que trabalha. Talvez em outras culturas, nas quais o maior número de oportunidades em nível superior exista, o argumento seja válido. Mas infelizmente, não chegamos nem perto disso.
- Convencer ou obrigar as mulheres a permanecer na carreira até a aposentadoria. Talvez esse seja o mais ultrajante dos argumentos. Não apenas pelo machismo que reflete, como também pela perspectiva em que se coloca. Pressupõe-se que parte significativa das famílias brasileiras, em especial as de classes menos favorecidas, possuem patrimônio e poupança capazes de “dispensar” a mulher de seu trabalho. Isso daria, logicamente, ao homem, o papel de provedor da família. Eu percebo em nossa sociedade um movimento totalmente oposto.
Cada vez mais a mulher se torna chefe de família no Brasil. Nos bairros mais pobres, é comum ver senhoras trabalhando até idade bem avançada para sustentar filhos e netos. Essas mesmas mulheres têm jornada dupla: trabalham durante o dia, cuidam da casa à noite. Ver a mulher exclusivamente como dona de casa e babá de filhos e netos é reduzir o potencial produtivo e intelectual feminino, humilhando-as. Se isso já não bastasse, não é cabível imaginar que alguém deva ganhar menos só porque eventualmente decida encerrar sua carreira mais cedo. Afinal, o serviço prestado no momento da contratação é o mesmo.
Por último, mas não menos importante, o valor do trabalho de alguém é algo que deve ser observado a partir das métricas comuns do mercado (como experiência profissional, formação, atualização etc.), e não a partir do gênero.
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Rodrigo Esteves de Lima-Lopes é professor de Linguística e Comunicação