Os funcionários da TV Cultura estão preocupados. Não é para menos. Há anos não recebem um reajuste real no salário, nem hora extra. As denúncias de assédio moral são recorrentes e cada vez mais a carteira assinada é substituída pelo famoso PJ (quando o funcionário é obrigado a se tornar uma ‘pessoa jurídica’ para que num contrato entre ‘empresas’, o patrão não precise arcar com os direitos trabalhistas). Para piorar, no começo do mês, o colunista do R7 Daniel Castro afirmou que a direção da emissora prepara uma reestruturação que deve gerar mais de mil demissões.
Os rumores consternaram e não é para menos. Embora não haja confirmação dos cortes, o economista João Sayad – à frente da presidência da Fundação Padre Anchieta – também não afirma que os empregos serão mantidos. A precarização das condições trabalhistas é crescente e, pior, é apenas um dos braços do desmonte e desvio da emissora, que deveria ser um bem público paulista.
Sayad fala somente em uma ‘reestruturação de conteúdo’ e em enxugar o orçamento. Em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo no dia 9 de agosto, disse que a grade da televisão está sendo estudada e haverá repercussões. Em reunião com o Conselho da emissora, falou em abrir o espaço para ‘produções independentes’.
Situação instável
Está armado o golpe. Com o PSDB há 20 anos à frente do governo estadual em São Paulo, acontece na cultura o que já aconteceu em várias outras áreas: a administração promove o desmonte de um bem público e depois o acusa de ineficiência para privatizar.
O discurso é frágil e baseado em premissas generalistas. Por exemplo, a emissora pode não custar tão caro quanto ele diz. Um dos funcionários fez uma conta simples e apresentou na última assembleia: a partir de um DVD institucional comemorativo calculou que, nos 41 anos de vida da emissora, ela recebeu, em média, R$ 87 milhões (valores atualizados) por ano. O montante, dividido pelos cerca de 40 milhões de habitantes do estado, resulta na pouco substanciosa cifra de R$ 2,18. Ou seja, a emissora custa ao contribuinte menos de três reais por ano.
A TV Cultura já não produz nenhum programa infantil, área bem reconhecida por grande parte do público. A programação para jovens e adolescentes também está sendo atacada. Já acabaram com as gravações do Teatro Rá Tim Bum, Cocoricó, Pé na Rua e Cambalhota. O próximo alvo deve ser o Login, que, segundo os rumores internos, deve parar de ser gravado em algumas semanas.
O Manos e Minas, um dos poucos programas na televisão brasileira que retratava o universo do jovem da periferia, já parou de ser gravado. No dia 5, uma movimentação no twitter com a tag #salveomanoseminas ficou no trending topics Brasil, ou seja, foi uma das mais citadas na rede social do país. Diante dos protestos, estão sendo colhidas assinaturas para um abaixo assinado contra o fim do programa. A equipe continua indo na emissora, pois o contrato ainda não acabou, mas não sabe o que fazer. Para piorar, dos 18 funcionários, 17 são contratados pela fraude dos PJs e estão em situação super instável.
Emissora pertence à sociedade
Sayad pegou os trabalhadores que de fato constroem a grade da emissora em dois pontos sensíveis: a autoestima e o emprego. Em assembleia em frente à emissora no dia 9 de agosto, muitos deles defendiam a qualidade da programação e aquilo que deveria ser a essência de uma TV pública. O deputado federal Ivan Valente (PSOL) esteve lá conversando com os funcionários e disse que ‘onde há fumaça, há fogo’, classificando a reestruturação como um ataque a lógica do que deve ser uma emissora pública e uma ameaça ao emprego e dignidade dos trabalhadores.
Outra assembleia aconteceu no dia 12 de agosto, na praça em frente às instalações da Cultura, em São Paulo. O Sindicato dos Radialistas de São Paulo e o dos Jornalistas devem realizar assembleias todas as quintas-feiras para tentar frear as demissões. A ideia é conseguir uma liminar na justiça que impeça qualquer corte enquanto a situação está em debate.
Segundo a direção informou às lideranças sindicais, há hoje na Cultura 2.150 funcionários, sendo 880 contratados pelo esquema de PJs. Alguns funcionários relataram, ainda na assembleia, que trabalham como cooperados. Desse total, cerca de 450 funcionários da Cultura estão atuando na TV Justiça e TV Assembleia e estão com os contratos para vencer – correndo sério risco de perder seus empregos. Os números não são exatos, nem oficiais e há muito pouca transparência nesse sentido.
A TV Cultura não pertence ao governo, mas sim, ao público de São Paulo, ou seja, à sociedade civil. Ela deveria ser supervisionada pelo Conselho Curador, que infelizmente atua mais ratificando os desmandos tucanos do que supervisionando de fato se a concessão está servindo ao interesse público.
Controle social
A grosso modo, o patrimonialismo é a característica de um Estado que não possui distinções entre os limites do público e do privado. O termo foi muito usado para qualificar as monarquias do absolutismo. Pois em São Paulo, alguns monarcas tucanos parecem possuir tal qualidade. Quando não privatizam diretamente, se apropriam do público para atender aos interesses privados dos grupos próximos da sigla. Isto acontece na educação, na saúde, nos transportes e até na coleta de lixo. E acontece também na comunicação.
A TV Cultura é uma rede pública e não estatal. Mas, não atua como tal. Não deveria servir ao governo do Estado, muito menos a mandatos específicos, mas na prática a coisa se complica. Ser pública significa que a vontade da sociedade civil deveria ser consultada antes de qualquer mudança estrutural. Funciona ali a mesma lógica que torna o Brasil um campo de batalha pela democratização das comunicações, onde a mídia é um dos mais fortes aparelhos privados de hegemonia ideológica.
O sistema de comunicações brasileiro é uma ‘herança maldita’ da ditadura militar, que funciona via incentivo estatal ao desenvolvimento do capital privado. Em 1998, Fernando Henrique Cardoso, do mesmo PSDB, promoveu a maior privatização na área e rifou o Sistema Telebrás.
E o governo Lula não mudou este modelo. Os meios de comunicação seguem centrados nas mãos de poucos grupos e as concessões públicas de televisão vencidas foram renovadas automaticamente, sem nenhum debate com a população. A nomeação de Hélio Costa (PMDB), conhecido no movimento pela democratização como ‘o ministro da Globo’, é emblemática.
Desenvolver uma verdadeira TV pública no Brasil implicaria numa concepção realmente pública de radiodifusão, subordinada então ao controle público (não só estatal, mas também da população) e não à lógica comercial. Deveria conter uma programação interessante e de qualidade que representasse a diversidade cultural e regional do país.
Para isto, seria necessário termos o controle social da mídia, que poderia funcionar, por exemplo, por meio de conselhos onde a população e o os trabalhadores de uma emissora pudessem estar devidamente representados. Mas a pequena parcela que senta em cima da comunicação brasileira atualmente não abre espaço para este debate. Quando se fala em democratização pelo controle social logo gritam – censura! E fim de papo.
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Jornalista