Não é todo dia que se vê, ao vivo e a cores, a inauguração de uma guerra entre dois grandes países que, uma vez desencadeada, gerou muito ódio, mortes estúpidas de ambos os lados, batalhas aéreas e afundamentos de navios nos mares gelados do Atlântico Sul. O começo de tudo isso vimos da janela de nossa casa no dia 21 de abril de 1982, aproximadamente ao meio-dia, em Ponta Grossa, Paraná, onde morávamos.
A frota britânica descia o Atlântico Sul disposta a retomar as ilhas Malvinas-Falkland, em poder dos argentinos. Naquele dia, os ingleses estavam no meio do Oceano Atlântico, na altura do litoral do Paraná, numa posição incômoda porque a partir de então entravam numa zona exposta ao alcance do inimigo. A aviação argentina agora poderia mandar um avião ao encontro da frota e voltar sem reabastecimento. Foi o que aconteceu: um Boeing 707 comercial da Aerolineas Argentinas, adaptado para espionagem com sensores e equipamentos especiais, foi mandado da Argentina em voo baixo – a poucos metros do nível do mar – para evitar os radares ingleses. Chegou aproximadamente a vinte quilômetros do porta-aviões Hermes, que capitaneava a esquadra. Nessa posição, os ingleses detectaram o inimigo. O tenente Simon Hargreaves, que estava de plantão no navio, levantou voo no seu caça Harrier e prontamente iniciou uma perseguição aérea ao avião argentino. ‘Chegamos a quase encostar nossas asas’, comentou mais tarde pela mídia o tenente inglês. E continuou: ‘Poderia abate-lo, mas deixei-o seguir e quando o abandonei rumava para o oeste.’ Ora, se eles estavam à altura do litoral do Paraná, oeste era a direção do continente, indicando claramente que, na afobação, os aviões tinham voado sobre o território brasileiro.
A carta do tenente inglês
Nesse dia, e em torno daquela hora, estávamos almoçando em casa quando meu filho Sérgio – então com 11 anos – gritou lá de fora: ‘Pai, venha ver um risco no céu!’ Fui à janela e lá no firmamento estava uma grande esteira branca que, pelo grau de dissipação, informava que era um avião que se deslocou do leste (litoral) para o oeste (Argentina). Isto me intrigou profundamente porque nossa cidade não fazia parte do itinerário de rotas aéreas. Arrumei rapidamente a máquina fotográfica e comecei a tirar fotos. Já ia voltando para dentro de casa quando surgiu lá no horizonte, a leste e um pouquinho mais ao norte da primeira esteira, outra linha mais fininha em trajetória convergente à primeira. Tratava-se de outro avião voando a uma velocidade incrível. Mais tarde, um colega de trabalho me informou que tinha visto este segundo avião com um binóculo, identificando-o como um caça – e mais, que tinha estranhado ao ver que ele estava armado com dois mísseis. Mas infelizmente, devido à grande altitude da perseguição, não foi possível identificar nas fotos as silhuetas dos aviões.
Com o ‘furo’ fotográfico, viajei para São Paulo e procurei as sedes das revistas Veja e IstoÉ e dos jornais Folha de S.Paulo e Estadão. Todos os editores internacionais não acreditaram na minha história e descartaram a hipótese de invasão do nosso espaço aéreo. Nem quiseram ouvir meus argumentos baseados na análise das esteiras que indicavam seus deslocamentos em trajetórias convergentes, a sequência da passagem (indicando uma perseguição), os tipos de aviões – (um com reator e outro sem), a enorme altitude dos voos (12.000 metros, o limite da atmosfera), a orientação (do litoral para a Argentina), tudo somado ao detalhe do ‘oeste’ da entrevista do tenente inglês, as coincidências de lugar e horário e, por fim, o testemunho de meu colega.
Depois da guerra, escrevi ao tenente inglês Simon Hargreaves, piloto do Harrier, e no dia 27 de setembro de 1982 ele me respondeu. Suas palavras confirmavam o encontro: ‘Como você corretamente disse, interceptei um Boeing 707 argentino ao meio-dia do dia 21 de abril. Fui alertado no deck, mantive contato com o 707 pelo meu radar e imediatamente levantei voo do HMS Hermes. Tive contato visual com a aeronave por volta de 5 milhas, enquanto ela estava a 25.000 pés e subindo. Permaneci ao lado da aeronave e a direcionei para longe da frota, permanecendo com ela até que a mesma ficasse a 70 milhas distante e uma altura de 42.000 pés.’ Ainda como resposta à pergunta óbvia do ponto de encontro, foi evasivo: ‘Não foi possível saber exatamente a posição da interceptação, mas ela se deu aproximadamente a mil milhas ao sul da ilha de Ascensão.’ É justificável que o piloto não pudesse me fornecer a longitude do encontro por se tratar de um segredo de guerra e sua divulgação causaria um impasse diplomático, mas afirmar que ‘não era possível saber’ é um exagero, já que essas informações estavam diante dele, no painel. Mas nem precisou: juntando as palavras retiradas de suas entrevistas na imprensa – ‘Quando o abandonei, rumava na direção oeste’ – com a latitude confessada de mil milhas ao sul de Ascensão (correspondente ao litoral do Paraná), pode-se concluir que, sim, os dois aviões invadiram nosso território e mais, que nossas autoridades nunca souberam disso. Como sei? Simplesmente perguntando ao Cindacta I (na ocasião, só existia o de Brasília). Na resposta, me informaram que desconheciam o fato. Quanto à afirmação minha de que essa ação deu início à guerra das Malvinas-Falkland, o tenente confirma na carta: ‘A partir daí tivemos a certeza de estar participando de uma guerra.’
O ataque ao Hermes
Faltava uma palavra argentina sobre o encontro. Ela veio com uma entrevista que fiz dois anos depois da guerra com o piloto argentino Armando Horácio Fernandes. Ele ainda estava em licença remunerada por ter participado da guerra. Tinha vindo ao Paraná a passeio, mas – coisas do coração – acabou se casando com uma paranaense. Mostrei ao piloto todos os meus documentos e falei-lhe sobre minha tese. Depois de olhar com muita atenção, concluiu:
‘Analisando friamente seus documentos, acho certa sua teoria da invasão do espaço aéreo brasileiro. Senão, como explicar? Pelas fotografias, pode-se ver que um dos aviões é comercial e o outro com reator, caso do Harrier. Na carta do piloto temos um relato superficial por segredo militar, mas a posição de mil milhas ao sul de Ascensão coincide com o litoral de seu estado. A meu ver, a manobra do piloto argentino foi refugiar-se em território brasileiro… Conheci bem aquele Boeing, um dos dois aviões cedidos pelas Aerolineas Argentinas. Este, o espião, tinha prefixo LV-POP e estava equipado com sensores, radares e câmeras de alta precisão. O outro, de prefixo LV-MEX, foi usado para transporte de soldados.’
Para complementar, perguntei-lhe sobre um mistério, já que a imprensa argentina a que tive acesso por conta do episódio tinha divulgado o possível afundamento do Hermes durante a guerra e os ingleses negavam. Ele então me relatou sua participação no episódio: ‘A operação contra o Hermes foi feita com sete aviões: dois Mirage, três 4-B e dois Pucará. Ao final da ação, só dois voltaram: um dos 4-B e o Mirage que eu pilotava. A tática aplicada foi de surpresa. Os dois Mirage fizeram jogo de distração na popa e na proa do Hermes. Os 4-B entraram em fogo cruzado rasante e os Pucará deveriam atingir o Hermes abaixo da linha de flutuação. Um dos Pucará foi logo atingido e nem o vi entrar em combate. Do outro acompanhei a trajetória: chegou a 50 metros do porta-aviões voando a um metro e meio do mar, aí descarregou seus mísseis. Levantou o avião verticalmente a uns 30 metros e numa manobra de girar as pontas das asas recuperou a vertical e em picada jogou-se sobre a pista do Hermes, provocando um buraco de 5 a 6 metros. O porta-aviões inclinou-se 45 graus mas mesmo assim conseguiu virar-se e seguir para a ilha de Granada, onde foi reparado. Mas não participou mais da guerra.’
Mídia esqueceu o primeiro encontro aéreo
O mais incrível é que uma guerra que se desenvolveu no extremo do Atlântico Sul começou e terminou nas costas brasileiras, quase no mesmo local. O último ato da guerra foi quando o petroleiro Hércules –um dos maiores do mundo – foi bombardeado pela aviação argentina quando se dirigia para abastecer os navios ingleses. Foi atingido por bombas de 500 libras e uma delas se alojou no casco sem explodir. Pasmem! O navio-bomba foi rebocado para o ancoradouro da Ilha do Governador, no Rio, um lugar densamente povoado. Depois de alguns dias de impasse, ficou decidido pela seguradora o afundamento do navio. Novamente a ‘bomba’ foi rebocada para leste da Ponta da Taquara, litoral de Santa Catarina e afundado. Isto é, o primeiro e o último ato da guerra deram-se nas imediações de nossa costa. Curiosamente, no início, a uma grande altitude – cerca de 13.860 metros acima do nível do mar – e, no fim, numa grande profundidade – 2.700 metros abaixo do nível do mar.
Estes foram os limites de mais uma insensatez humana!
Este fato demonstra como é difícil para um cidadão comum contar sua história pela mídia, dado o medo da imprensa em divulgar assuntos de incrível observação, mas também de baixa credibilidade (embora vez ou outra apareçam nesta mesma mídia assuntos como o ET de Varginha, discos voadores e os intermináveis chupa-cabras e afins). Quando aconteceu o episódio era uma quarta-feira, feriado nacional. Esperei o Jornal Nacional daquele dia, que só registrou o encontro aéreo como a última notícia. Depois, os jornais repetiram a notícia sem detalhes. Telefonei para o departamento de jornalismo da Globo e o jornalista Renato Machado, que me atendeu, descartou a possibilidade daqueles aviões terem invadido o espaço aéreo brasileiro. Mandei revelar as fotos somente com os negativos, já que naqueles tempos a cópia impressa demorava uma semana. Com esses negativos, no domingo à noite viajei para São Paulo. Como disse no texto, fui aos principais veículos da época. Na revista Veja, mostrei as fotos para o então editor internacional, Ricardo Setti. Ele olhou-as e concluiu que, como as fotos não mostravam a silhueta dos aviões, nada poderia fazer. Fiquei frustrado. Na redação do Estadão, seu Mayrink mandou copiar os negativos em preto e branco e confirmou a inexistência da imagem dos aviões. E assim se repetiu nos outros jornais e revistas que visitei.
Sem o detalhe da invasão de nosso espaço aéreo, naquela semana a revista IstoÉ publicou uma reportagem mais detalhada do encontro. Depois, a imprensa ocupou-se dos novos episódios da guerra e esse primeiro encontro aéreo foi esquecido.
Fato foi registrado
Sobre o assunto, cheguei a escrever um livro, O Voo do Besouro (Por que o nome? Ora, o besouro não está anatomicamente preparado para voar porque carrega aquele corpão e tem duas asas ridiculamente pequenas… Apesar disso, voa), que também não consegui publicar. Anos mais tarde (4/2/2001), concedi uma entrevista para o jornal Diário da Manhã, de Ponta Grossa, Paraná, sobre o assunto.
Finalmente, este fato foi registrado na revista Nossa História – então, da Biblioteca Nacional – como uma nota na seção ‘Almanaque’, pág.88 do número 14, ano 2, de dezembro de 2004. Diz a nota:
‘Testemunha ocular
Aproximadamente ao meio-dia de 21 de abril de 1982, estava almoçando em casa quando meu filho gritou lá de fora: ‘Pai venha ver um risco no céu!’. Saí e lá no firmamento estava marcada uma grande esteira branca de um jato. Já ia voltando para dentro de casa quando surgiu no horizonte uma outra esteira que não faz parte das rotas aéreas.
Depois escrevi ao tenente inglês Simon Hargreaves, piloto do caça Harrier, que confirmou o encontro: ‘Interceptei um Boeing 707 argentino ao meio-dia de 21 de abril. Fui alertado do deck, mantive contato com o 707 pelo meu radar e imediatamente levantei voo do HMS Hermes (porta-aviões britânico). Tive contato visual com a aeronave por volta de 5 milhas enquanto ele estava a 25 mil pés e subindo. Permaneci ao lado da aeronave e a direcionei para longe da frota (que seguia para as ilhas Falkland, território britânico no Atlântico Sul), permanecendo com ela até que a mesma ficasse a setenta milhas distante e a uma altitude de 42 mil pés.’’
Foi o episódio que inaugurou a Guerra das Malvinas.
******
Professor aposentado, Curitiba, PR