WIKILEAKS
Vazamento de segredos no WikiLeaks obriga países a repensar a diplomacia
O soldado americano Bradley Manning, de 22 anos, vive hoje em uma ‘solitária’, à espera do julgamento em corte marcial em 2011. Antes de ser isolado do mundo, porém, o jovem teve acesso, durante 14 horas por dia, sete dias por semana, ao longo de oito meses, a uma rede gigantesca de informações secretas do Departamento de Estado americano a partir de seu posto de trabalho, em Bagdá.
Ao decidir apagar os arquivos MP3 de Lady Gaga e copiar em seu lugar 1,6 gigabytes de dados em um CD regravável, Manning protagonizou o maior vazamento de informações da história.
Nas mãos do australiano Julian Assange e do site WikiLeaks, esses 250 mil relatórios escritos por diplomatas de embaixadas dos Estados Unidos vieram à tona no último domingo e, desde então, já começam a mudar o modo de se fazer diplomacia.
Por ordem de Washington, computadores cedidos pelo Departamento de Estado a diplomatas que redigem relatórios confidenciais não mais contarão com tecnologias banais, como os drives USB para pen drives. A decisão é adotar ‘uma solução temporária para mitigar os riscos futuros de que dados confidenciais sejam movidos por funcionários para sistemas não seguros’, segundo nota distribuída pelo Departamento de Estado americano.
Além disso, o número de computadores que terão acesso aos sistemas que armazenam informações ‘sensíveis’ será brutalmente reduzido no Pentágono, por decisão do secretário de Defesa dos EUA, Robert Gates. As medidas são as primeiras adotadas pelo governo americano e formam parte de uma série de soluções de curto, médio e longo prazos que vêm sendo adotadas ou estudadas em todo o mundo nos últimos meses para aprimorar a segurança de dados sigilosos.
Novas normas. Esses procedimentos já estão em curso na França, por exemplo. De acordo com o porta-voz do governo do presidente Nicolas Sarkozy, François Baroin, desde a revelação dos dados pelo WikiLeaks, o Palácio do Eliseu vem colocando em prática medidas para evitar a perda de informações.
‘O vazamento terá por consequência redefinir as modalidades de transmissão de documentos de natureza diplomática no interior do dispositivo da chancelaria francesa’, revelou.
Entre diplomatas ouvidos pelo Estado, a preocupação com o sigilo é tangível – até mesmo entre brasileiros. Bruno Carrilho, ex-conselheiro Político da Embaixada do Brasil em Paris, citado em um dos telegramas divulgados pelo site WikiLeaks, admitiu na noite de quarta-feira que a fuga de dados pelo Departamento de Estado americano levou todos na profissão a questionarem eventuais procedimentos que possam resultar em novos e constrangedores vazamentos. ‘Neste momento, nós, diplomatas, estamos no olho do furacão. É um momento de reflexão para todos nós’, disse Carrilho.
No meio diplomático europeu, imagina-se que os vazamentos farão crescer a prudência nas relações entre colegas de países diferentes. Uma das preocupações é a de assegurar aos interlocutores a credibilidade dos sistemas de comunicações.
Para François Nicoullaud, ex-embaixador da França em países sensíveis como o Irã, os vazamentos do WikiLeaks põem em perigo um dos princípios mais importantes da diplomacia: o sigilo. ‘Se quisermos ser transparentes e objetivos nos nossos relatos, precisamos ter a garantia do segredo’, argumentou. ‘A liberdade de análise e de discrição do diplomata é muito importante para que os líderes políticos tomem decisões acertadas.’
Já Antoine Blanca, ex-embaixador francês em alguns países da América Latina, vê as relações internacionais expostas neste momento, circunstância que pode ter implicações práticas.
Limites. De acordo com ele, sistemas de informação mais complexos – já existentes – serão adotados para garantir a segurança da comunicação diplomática. Já a linguagem empregada nos relatos, acredita Blanca, não mudará – porque não pode. ‘Há relatos, muitos dos quais sensíveis, que precisam ser feitos entre um embaixador e seus superiores. Não é possível codificar todas as informações.’
PARA LEMBRAR
No dia 22, o WikiLeaks avisou, por meio de sua conta no site de microblogs Twitter, que publicaria na internet ‘uma quantidade de documentos sete vezes maior do que o conteúdo revelado sobre a guerra no Iraque’, quando 400 mil documentos sigilosos foram parar na rede. Quatro dias depois, o dono do WikiLeaks, Julian Assange, enviou uma carta ao Departamento de Estado americano pedindo informações sobre funcionários do governo que pudessem estar em locais nos quais suas vidas fossem colocadas em risco no momento da publicação. No dia 28, alguns jornais europeus e americanos começaram a ter acesso privilegiado ao conteúdo, antes que os mais de 250 mil documentos fossem colocados no site do WikiLeaks.
Denise Chrispim Marin
‘Os segredos genuínos devem ser reservados’
Segredo distribuído para 2,5 milhões pessoas não é segredo. Essa é máxima do jornalista Max Frankel – editor responsável pela publicação dos Papéis do Pentágono no jornal The New York Times em 1971 – ao avaliar o recente vazamento de 250 mil telegramas diplomáticos dos Estados Unidos pelo site WikiLeaks. Aposentado, Frankel vê o atual episódio como resultado de um sistema ‘absurdo’ e ‘distorcido’ de troca de informações secretas entre órgãos do governo americano.
Os 250 mil telegramas vazados eram distribuídos para 2,5 milhões de pessoas, todas com acesso ao sistema SIPRNet. Mas eram qualificados como secretos. A falha foi do governo americano?
O sistema americano está distorcido. Tudo o que é escrito por diplomatas e por militares de alta patente é marcado como secreto. Eles entregam segredos a milhões de pessoas. Nós encontramos nos Papéis do Pentágono menções a artigos do New York Times e de outros jornais que foram marcados como secretos. O sistema é completamente absurdo.
O que deveria realmente ser marcado como segredo?
Os segredos genuínos, que realmente precisam ser ocultados, devem ser poucos e disponíveis apenas a algumas autoridades. No atual caso, muitas das informações divulgadas eram conhecidas e tinham sido registradas pelos jornais. Mas, se o embaixador americano em Riad ouve do rei da Arábia Saudita sua avaliação de que os EUA deveriam atacar as instalações nucleares do Irã, essa mensagem deve chegar ao presidente dos EUA, a assessores próximos e, talvez, ao secretário de Estado. Só isso.
Mas, mesmo que a maioria das informações fosse conhecida, sua exposição causou constrangimento e problemas diplomáticos para os EUA com parceiros como Rússia, Itália e Afeganistão.
Uma vez que um segredo escape, não é mais segredo. Essa é uma nova situação. Se o embaixador americano na Rússia quer dizer algo muito sério sobre o premiê (Vladimir) Putin ou outras autoridades locais, deve fazê-lo reservadamente e a poucas pessoas. Se ele coloca a informação no telegrama, deve esperar que algum constrangimento venha a ocorrer.
Espera mudanças nos procedimentos diplomáticos dos EUA?
Tenho certeza de que vão ocorrer. Mas não vão parar com esse sistema ridículo de colocar a marca ‘secreto’ em cada pedaço de papel que enviarem a Washington.
O vazamento do WikiLeaks é tão importante quanto o dos Papéis do Pentágono?
Essa é uma nova era. Novos problemas foram expostos para o governo. Hoje em dia, é fácil demais copiar e distribuir documentos. O vazamento do WikiLeaks é importante por essa razão, não pelo estrago feito. A divulgação dos Papéis do Pentágono tampouco causou qualquer estrago, apesar de o governo americano daquela época ter ficado tão agitado. Agora, não houve dano diplomático real. Se haverá dano no futuro, é difícil dizer. Mas o vazamento do WikiLeaks demonstra um problema que não havia 40 anos atrás.
O senhor crê que Julian Assange, fundador do WikiLeaks, agiu por interesses pessoais?
Não sei. Mas, se ele publica todo tipo de documento em quantidades volumosas, ele não está particularmente interessado em uma única política pública tratada como segredo. Não está interessado, especialmente, na Guerra do Afeganistão, na Guerra do Iraque ou nas ameaças nucleares. O vazamento dos Papéis do Pentágono foi o trabalho de um homem – Daniel Ellsberg – que procurava um meio de protestar contra uma política específica, a Guerra do Vietnã, e avaliou durante dois anos se deveria e como deveria tornar público os documentos.
O senhor vê problemas morais ou éticos na conduta de Assange?
Talvez. Não sei quais foram suas motivações. Teríamos de perguntar para ele.
O senhor afirmou que os Papéis do Pentágono não causaram estrago. Então, a divulgação desses documentos não alterou o rumo dado pelo governo americano para a Guerra do Vietnã?
Não, não teve efeito. A política americana para o Vietnã não mudou por causa do vazamento. A guerra terminou, quatro anos depois, porque o governo estava exausto, e as pessoas se voltaram contra ele. Mas os Papéis do Pentágono não tiveram efeito, como Ellsberg constatou.
Quando os volumes dos Papéis do Pentágono chegaram ao ‘New York Times’, como os jornalistas lidaram com o material?
Nós não tínhamos propósitos políticos. Simplesmente, consideramos que os documentos eram importantes para mostrar o que as autoridades americanas estavam dizendo entre elas sobre a Guerra do Vietnã, que já se arrastava por 20 anos. Consideramos relevante mostrar a contradição entre o que as autoridades diziam ao público e o que elas realmente pensavam.
Os documentos mostraram que diferentes governos haviam mentido para a opinião pública e para o Congresso.
Sim, tinham mentido ou intencionalmente induzido a opinião pública ao erro. Já havia considerável oposição à guerra naquela época, mas não foi sensibilizada pelas notícias sobre os Papéis do Pentágono.
O episódio foi, então, mais importante do ponto de vista jornalístico do que como fato político?
Foi um importante momento para o jornalismo, pois o governo tentou nos impedir de publicar os documentos. A Suprema Corte decidiu ser ilegal qualquer tentativa do governo de impedir a publicação de informações. O resultado do episódio dos Papéis do Pentágono foi a proibição da censura oficial à imprensa.
No caso do WikiLeaks, o governo deixou clara sua intenção de não ferir a liberdade de imprensa, embora esteja processando Julian Assange.
O governo não pode fazer isso. Quando um segredo escapa, o governo sabe que não há o que fazer.
QUEM É
Nasceu na cidade de Gera, na Alemanha, e começou a trabalhar no jornal americano The New York Times em 1952. Em 1973, ganhou o Pulitzer, a mais alta premiação do jornalismo americano pela reportagem sobre a visita de Richard Nixon à China. Ainda hoje, Frankel é lembrado por ter feito uma pergunta embaraçosa que teria prejudicado a reeleição de Gerald Ford em 1976
Mac Margolis
Leve abalo latino no WikiLeaks
Unasul, Alba, Mercosul, Pacto Andino, Nafta. Oficialmente, a América Latina é uma sopa de letras de solidariedade, servida ao calor fraterno do Caribe à Patagônia. Agora, graças ao WikiLeaks, sabemos que não é bem assim.
Entre as iguarias latinas, descobrimos que a presidente argentina, Cristina Kirchner, é ‘instável’ – nas palavras da ex-presidente chilena Michele Bachelet – e foi ‘submissa’ aos desmandos do marido, o ex-presidente Néstor Kirchner, que morreu em 27 de outubro. Ele, por sua vez, segundo um ex-chefe de gabinete, não passava de um ‘psicopata’ e ‘um monstro’.
O presidente boliviano, Evo Morales, teria um grave tumor no nariz, segundo uma inconfidência do ministro da Defesa brasileiro, Nelson Jobim, à embaixada americana – Jobim e La Paz negam. Já a diplomacia brasileira seria pautada por um ‘ódio’ aos EUA. E na Venezuela ninguém escreve ao coronel Hugo Chávez, segundo uma suposta ex-amante do comandante.
Frente ao abalo mundial provocado pela divulgação de segredos do Departamento de Estado dos EUA – intrigas nucleares de Paquistão, a suposta traição da China à Coreia do Norte e milhões de dólares suspeitos enfiados na mala do vice-presidente afegão – a parcela latino-americana no caso WikiLeaks é um mero tremor. Dos 251 mil arquivos divulgados até agora, menos de 8% se refere às Américas abaixo do Equador. Brasil, vice-potência do hemisfério, mereceu apenas 3 mil arquivos.
A julgar pelo butim digital, não houve até o momento nenhuma bomba. Sim, surpreende ouvir as indiscrições e destemperos normalmente sussurrados entre paredões. E a reação lacônica à devassa – ‘opiniões dos gringos’, segundo o presidente peruano, Alan García – pode mudar com a divulgação dos segredos sobre Colômbia e México, ambos engajados em espinhosas lutas antidrogas com farto apoio americano.
Mas ninguém se espanta ao saber que Caracas e Havana mantêm laços carnais (ou que Chávez confia mais nos arapongas de Fidel Castro do que nos próprios) nem que os avanços do Irã no continente sul-americano seriam mais embuste do que ameaça concreta. Tampouco assusta ouvir que o Itamaraty tem uma queda para a versão antiamericana do mundo.
Boa parte dos segredos revelados soa como obviedades ou fofocas com um quê de ópera bufa. Washington pode ter suas razões para coletar dados ‘biométricos’, com amostras de DNA, dos políticos do Paraguai, mas nenhum espião ianque supera as bravas mães paraguaias que, sem nenhum hacker, forçaram o presidente Fernando Lugo a assumir a paternidade dos filhos concebidos no celibato.
Mesmo assim, o fundador do WikiLeaks sai como o novo herói do continente. Chávez saudou-o pela ‘coragem’ que ‘deixou nu o império’. O chanceler do Equador ofereceu-lhe asilo. (Assange está foragido, acusado não de espionagem, mas de assédio sexual. Intriga dos imperialistas, retrucam seus devotos.) Há quem diga que esse australiano de 39 anos seja a encarnação de Daniel Ellsberg, ex-analista da CIA que vazou arquivos secretos em 1971 e abalou o governo de Richard Nixon. Não é bem assim. Para começar, a arma de Ellsberg foi o bisturi e não o ventilador. Os Papéis do Pentágono – 4 mil páginas – eram documentos esmiuçados por Ellsberg e sua divulgação teve proposta precisa: expor a farsa do governo que, para conduzir a Guerra do Vietnã a contento, mentia ao Congresso e aos americanos. Já Julian Assange é um rebelde sem causa, com vago reflexo anti-establishment, cujo vasto arsenal mal conhece, muito menos domina.
A parte podre do fichário de WikiLeaks acabou servindo serviu para mostrar que os amigos latino-americanos não são tão amigos assim. Mas também consola ao ilustrar que atrás das fofocas há análise nos bastidores da comunidade diplomática do hemisfério. São profissionais que não se iludem com o teatro bolivariano e tampouco com os novos caudilhos, que só têm lastro político com mordaça e força bruta.
Outro dia, Thomas Friedman perguntou na sua coluna no New York Times o que aconteceria se o dono do WikiLeaks fosse chinês. E se ele se chamasse Julio e se dedicasse a pilhar os segredos dos governantes latino-americanos? Seria ainda o herói ou acabaria na cadeia, com seu website embargado a mando da nova cartilha de ‘controle social da mídia’? Ninguém diz, mas bem que o governo do Equador, tão assíduo em enquadrar a imprensa crítica, acabou desmentindo seu chanceler e retirou o convite de asilo a Assange. Bisbilhotar é refresco nos porões dos outros.
É CORRESPONDENTE DA ‘NEWSWEEK’ E COLUNISTA DO ESTADO. EDITA O SITE WWW.BRAZILINFOCUS.COM
ASSINATURA
Projeto de TV paga provoca polêmica
Quem acompanhou, na semana passada, a audiência no Senado sobre o Projeto de Lei Complementar 116, pode ter achado que existe um apoio unânime das empresas às mudanças nas regras de TV por assinatura. Longe disso. Para atores importantes desse mercado, a aprovação do texto como está é inadmissível.
Na visão do jurista Ives Gandra Martins, o projeto cria mecanismos de controle de conteúdo ao dar superpoderes à Agência Nacional de Cinema (Ancine), atentando contra o direito constitucional de liberdade de expressão. Foi a Sky, empresa de TV paga via satélite, que contratou parecer do jurista.
‘De rigor, os dispositivos são cerceadores dos meios de comunicação’, diz Gandra Martins. ‘Há uma violência em diversos dispositivos. O próprio conteúdo da informação passa a ser limitado pelos artigos.’
O projeto prevê que as empresas de programação ou empacotamento de conteúdo precisarão ser credenciadas pela Ancine. O artigo 36 determina que, se essas empresas descumprirem as obrigações definidas pela lei, estão sujeitas a multa, suspensão ou até cancelamento de seu credenciamento.
‘Entraríamos numa espécie de ditadura semelhante à do Mussolini, do Hitler e do Stalin, que existe ainda em Cuba e começa a acontecer na Venezuela’, disse Gandra Martins. ‘O projeto dá à Ancine poder punitivo ao exercício da liberdade de expressão toda vez que essa não se sujeitar às restrições impostas pela agência. Essa excessiva regulamentação objetiva facilitar a vida dos amigos, dificultar a dos inimigos e fazer um controle efetivo sobre a comunicação.’
Segundo o jurista, o PLC 116 tem pontos de contato com os projetos do Conselho Nacional de Jornalismo (CNJ) e da criação da Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual (Ancinav), apresentados no começo do governo Lula e que não prosperaram, identificados como ameaças à liberdade de expressão.
‘Se conseguirem aprovar o projeto e isso não for contestado no Supremo Tribunal Federal, é um caminho aberto para o controle de imprensa’, alertou Gandra Martins. ‘Eles começam numa área de expressão menor, a TV paga. Se conseguirem, por que não avançar e atingir todos os meios de comunicação?’
Oposição. Além da Sky, estão entre os que defendem mudanças no projeto os radiodifusores Bandeirantes e SBT e os canais internacionais de TV paga. Os principais pontos polêmicos são três: a criação de cotas de conteúdo nacional, a proibição aos radiodifusores de controlar empresas de TV paga e o papel proposto para a Ancine no setor.
Na semana passada, representantes das operadoras de telecomunicações, das empresas de TV paga, dos produtores independentes e da Ancine defenderam a aprovação do chamado PLC 116 (que, na Câmara, era conhecido por PL 29) ainda este ano. Para terça-feira está marcada uma nova audiência no Senado para tratar do projeto.
Os canais internacionais, representados pela Associação Brasileira de Programação de Televisão por Assinatura (ABPTA), defendem que o PLC 116 seja discutido no Senado, como foi na Câmara. ‘A implantação de cotas fere o conceito de grade de canal e a própria natureza da TV por assinatura’, disse Carlos Alkimim, diretor executivo da ABPTA. ‘Queremos tempo para discutir todas essas particularidades’.
Além de criar uma proporção de um canal brasileiro em cada três ofertados nos pacotes das empresas (dependendo do tipo de conteúdo), o projeto obriga os canais internacionais a colocarem produções nacionais em sua programação, de no mínimo 3h30 semanais no horário nobre.
Na visão de Alkimim, uma política de fomento seria mais eficiente do que as cotas. ‘Nos últimos quatro ou cinco anos, 85 novas obras foram coproduzidos, com investimento de R$ 150 milhões’, disse o diretor da associação, referindo-se às parcerias entre produtores brasileiros e canais internacionais. Segundo ele, metade dessa produção foi resultado da política de fomento, e a outra metade foi uma resposta ao próprio mercado.
O diretor da ABPTA destacou que a Ancine funciona hoje como uma agência de fomento. ‘Dar a ela um cunho fiscalizador não está de acordo com a natureza com que foi concebida’, disse Alkimim. ‘Já existe a Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações) para exercer esse papel.’ O projeto prevê que a Ancine poderia aplicar multas de R$ 2 mil a R$ 5 milhões.
Capital. A Lei do Cabo, atualmente em vigor, foi promulgada em 1995, e impõe limite de 49% ao capital estrangeiro nas empresas de cabo. O PLC 116 surgiu como uma proposta de se acabar com a restrição, já que as Organizações Globo têm interesse de vender sua participação na Net à Embratel (que pertence ao bilionário mexicano Carlos Slim Helú) e o Grupo Abril tem interesse em vender sua fatia na TVA à espanhola Telefônica.
Durante a tramitação na Câmara, foram criadas as cotas de programação, num texto cada vez mais complexo, que acabou desagradando à maior parte das empresas. As teles e a maioria das companhias de TV paga acabaram concordando com as cotas para que o projeto não demorasse ainda mais no Congresso.
A Bandeirantes e o SBT são contra um dispositivo que impede radiodifusores de controlar empresas de TV paga. O SBT é dono da TV Alphaville, em São Paulo, e a Bandeirantes da TV Cidade, que tem TV a cabo em 16 cidades brasileiras, e enfrentou problemas financeiros sérios.
A Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) anunciou no mês passado novas regras para a TV paga, que, na prática, abririam o mercado às teles, apesar de não acabarem com a restrição legal ao capital estrangeiro. Essa decisão tornou mais urgente a aprovação da lei.
TELEVISÃO
Rainha do Saara
É tradição que conto de Natal tenha como palco paisagens cheias de neve, castelos e casas com lareira acesa. Mas Regina Casé, figura que não é de se apegar aos clichês, foi balançar seus sinos e enrolar seu pisca-pisca no Saara, região de comércio popular no centro do Rio, onde a temperatura e a criatividade são tradicionalmente elevadas. Em Papai Noel Existe, programa especial que a Globo exibe no dia 22, às 22h15, ela interpreta Francis, vendedora tipicamente carioca que está de trelelê com Robson, um camelô – incrível – vivido por Rodrigo Santoro.
O Estado foi encontrar Regina e sua equipe no meio das pequenas lojas do Saara, que abriram no meio da noite especialmente para servir de cenário para a gravação do especial. Ali, impossível não se surpreender diante de um Rodrigo Santoro quase irreconhecível, que esperava tranquilo o momento de gravar, sem que quase ninguém lhe pedisse um autógrafo ou que posasse para uma foto. A muvuca, para usar um termo de que ela gosta, começou quando Regina, verdadeira rainha do Saara, pisou no set. Aqui, trechos da conversa que tivemos no ônibus-camarim, quando o público ainda não sabia que ela estava por perto:
A gente pode classificar esse especial como um ‘conto de Natal’?
Sim, e eu acho bacana que seja assim. Antigamente, até os sambistas – como o Assis Valente com Anoiteceu, aquela do ‘eu pensei que todo mundo fosse filho de Papai Noel…’ – faziam música para o Natal e para o São João. Acho linda essa ideia de comemorar todas as datas, é uma maneira de fazer festa com todo mundo. E eu acho bacana fazer um programa de Natal, que fale de Natal e que as pessoas vejam nessa época. Então, é intencionalmente um conto de Natal.
E como surgiu a ideia de fazer isso justamente aqui, no Saara?
Tem um filme que eu e o Estevão Ciavatta, também diretor desse programa, estamos trabalhando há um tempão, chamado Saara. Há cinco anos a gente vem aqui direto pra isso. Já está tudo certo para começar a rodar no ano que vem. Mas conversando com o Guel (Arraes, diretor de núcleo da Globo) chegamos à conclusão de que o material do Saara é tão rico que dá mais que um filme. A gente ficou pensando em fazer uma série, mas em que ordem? Primeiro o filme? E como a gente vai começar um outro programa em 2 de janeiro, não queríamos esperar fazer o filme para depois fazer o programa de TV. Estávamos transbordando de ideias e não dava para fazer a série agora. Foi aí que nasceu o especial, para pelo menos dar um gostinho e gastar algumas ideias. Porque guardar ideia na gaveta não é bom, mofa.
A Francis, sua personagem, é a mesma do filme? Como ela é?
Sim. Ela é uma vendedora clássica do Saara, que vende bem pra caramba. É um tipo de personagem que existe por aí, como aquela empregada que manda na patroa, sabe? Inventa mil promoções, maneiras de arrumar a loja, é desse tipo. É despachadona, conhece todo mundo. Ela é romântica, mas também é brava, marrenta.
Você já gravou aqui no Saara várias vezes, não?
Milhões de vezes! Venho aqui duas vezes por semana, é um dos lugares do Rio de que eu mais gosto, mais do que praia. Adoro. Primeiro, porque é um lugar onde não entra carro, então você anda em outro ritmo. É um lugar que traz pessoas de todos os lugares do Rio, que ainda tem aquela noção de centro que cada vez mais está se perdendo. É um lugar de comércio popular que muda o ano inteiro conforme a data – se é Natal, São João ou Cosme e Damião… Tem umas lojas que eu acho que sou eu que mantenho (risos). Qualquer aniversário de amigo, venho aqui encomendar uma caneca ou um pratinho com borda dourada. Acho bacana que a maioria das lojas aqui é de artigos para festa, são lojas pra festejar. Então, as pessoas estão sempre animadas. Qualquer coisa que aconteça na política, no dia seguinte já estão vendendo aqui a máscara (da personalidade envolvida)… Na época do Caminho das Índias, o Saara inteiro virou indiano! É um lugar que transborda o novo, a vontade de brilhar.
É como a 25 de Março em São Paulo.
A 25, conheço bem também a Ladeira Porto Geral, é bacana, mas entra carro. Isso muda um pouco. Aqui tem uma coisa mais aconchegante, numa área mais antiga. Parece que você está numa época antiga, apesar de que aqui tem sempre o último grito, o que vem com tudo. É muito engraçado.
A Francis é uma figura que você conheceu aqui em algum momento?
Não… Ela é um Maracanã de garotas e mulheres mais velhas. Ela tem de 15 a 60 anos. Antes do (filme) Eu, Tu, Eles, eu tinha feito 11 anos de Brasil Legal. Quando fui fazer a Darlene, ela era um inventário dessas mulheres do interior do Brasil que eu tinha observado durante anos e não sabia o que fazer com todas aquelas informações. Aqui, com a Francis, uso o que recolhi no Minha Periferia e Central da Periferia. Às vezes troco uma frase pela outra, uso uma gíria, crio a maneira com que ela paquera… Tudo é uma reunião de mulheres bem urbanas, da periferia. É uma sorte quando calha de aparecer um personagem de ficção onde você pode pôr um monte de coisas que vinha trabalhando na área documental. É uma delícia, fico quase infantilmente eufórica. Mexi em quase todas as frases do roteiro. Depois que eles (o roteiro é de Guel Arraes, Estevão Ciavatta, Péricles Barros e Patrícia Andrade) escreveram tudo, falei ‘bom, agora vou botar do jeito que se fala de verdade’ (risos).
Você sempre foi assim, tão observadora?
Quando tinha cinco anos de idade, era igualzinha a essa pessoa aqui. A minha mãe me contou que eu era famosíssima quando tinha cinco anos. Na feira, todo mundo sabia meu nome. Sempre conversei muito com qualquer pessoa na rua. Eu até era mais para o lado documental do que para o de atriz. Esse negócio de comunicar e de contar vem de longe. Mas a sua maior virtude também é seu maior defeito: não posso fazer nada sozinha. Posso fazer a viagem mais maravilhosa, ficar de frente ao Taj Mahal, mas não tem nenhum valor pra mim se eu não tiver alguém do meu lado para poder comentar na hora. É o reverso da moeda.
Você hoje se vê como uma autora das personagens que representa?
Sem dúvida. E eu descobri que vinha fazendo isso há anos, e podia ser um comercial. Eu chegava para gravar e tentava fazer a coisa que estava escrita, mas não dava certo e o diretor acaba dizendo ‘faz alguma coisa mais Regina Casé’, e eu ficava um tempão botava uns cacos. A grande mudança foi por causa do Fernando Meirelles, que me disse ‘Regina, você já escreve e dirige há anos, mas não assina o roteiro nem a direção e fica tentando fazer subversivamente’. Daí, ele me chamou na primeira temporada do Cidade dos Homens (2002) e generosamente dirigiu comigo. A partir daí, eu escrevi e dirigi. Adorei, foi uma das experiências mais felizes que eu já tive. Tenho um orgulho danado. Tem um episódio em especial, da terceira temporada, que chama Pais e Filhos, que eu amo. É como se tivesse feito um longa. Não me importa que tenha passado só um dia na televisão.
Você foi uma das primeiras, que levou a periferia para a televisão de uma maneira diferente, alegre, de celebração. E hoje a periferia está na moda. Se sente responsável por isso?
Acho que muitas mudanças se operaram muito rapidamente e ao mesmo tempo. Tenho muito orgulho e acho que realmente nós – não eu, mas o grupo que trabalho comigo – fomos os primeiros. Mas tem uma coisa que é genuína: quando eu levo um DJ ou um sambista num programa meu e eu digo ‘esse é meu amigo DJ Malboro’ ou ‘esse é meu amigo Zeca Pagodinho’, é porque é meu amigo mesmo – conheço a mãe, o pai, os filhos dele. Às vezes, quando você quer dar audiência na televisão, leva atrações que acredita que sejam populares, como aquela música que acaba de estourar. Mas muitas vezes, você não gosta daquilo de verdade, levam porque acha que os outros gostam. Não é assim?
Sim, dá pra perceber…
Então… O grande diferencial que fez os programas da gente ficarem tão afirmativos é que tanto eu quanto o Hermano (Viana, antropólogo) temos contato com isso faz tempo. Em 1989, ele escreveu uma tese que já era sobre o funk carioca. O primeiro Brasil Legal, em 1991, era todo sobre funk. Então quando eu chamo o DJ Malboro de amigo, é porque convivo com ele há pelo menos 20 anos. O que leva a essa coisa genuína é a gente gostar mesmo. Quer ver uma coisa que eu acho que vai ter de mudar? Conheço muita gente que se diz meio comunista, que fala que tudo é pelo povo, mas tem horror de pagode, de funk, e ‘ah, essas letras horrorosas, esse cabelo que estão usando, que coisa horrível’. Mas aquilo é o melhor que o povo pode fazer com a escola que ele tem, o dinheiro e a tradição que ele tem. Aquilo é a verdade, o real. Acho ótimo que as crianças da favela toquem violino e piano. Mas não acredito em quem diz que gosta do povo e detesta brega, pagode, funk. Como você ama o povo e não gosta de nada do que ele produz?
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