No longo artigo de 32 páginas para a revista The Atlantic Monthly de maio, no qual faz um balanço de sua gestão de 20 meses à frente do New York Times, Howell Raines conta que defendia mudanças editoriais imediatas para que o jornal recuperasse leitores perdidos e conquistasse novos no país e no estrangeiro [veja, abaixo, link para o resumo comentado da primeira parte do artigo]. Preocupava-o que a circulação do diário tivesse caído de 1,2 milhão de exemplares nos dias de semana e de 1,8 milhão aos domingos, números do início dos anos 1990, para os atuais 1,1 milhão e 1,6 milhão – num país de 290 milhões de habitantes, 40 milhões deles leitores potenciais de jornal. O faturamento com anúncios, que pela primeira vez superou a barreira do 1 bilhão de dólares em 1998, chegou a 1,3 bilhão de dólares em 2000. Hoje o jornal, sozinho, fatura 1,1 bilhão de dólares.
[A título de ilustração, os números de fevereiro da circulação dos jornais brasileiros, segundo o IVC (informados pelo boletim eletrônico Coleguinhas por Mail, do jornalista Ivson Alves): O Globo, 234.675 (dias úteis) e 345.820 (domingos); Jornal do Brasil, 71.655 e 102.437; Folha de S. Paulo, 293.263 e 376.911; O Estado de S.Paulo, 219.452 e 298.268.]
A redação – como qualquer redação mundo afora – culpa o departamento comercial por tais perdas, mas Raines discorda: o departamento comercial, para ele, esgotou as possibilidades de crescimento do jornal que a redação lhe oferece para vender (uma ‘heresia’ que provocava horror na redação). O leitor do Times – e milhões de pessoas educadas que deveriam, mas não lêem o jornal – estava mais informado, mais sofisticado e mais interessado em assuntos que o Times não oferecia. ‘A edição dominical mostra queda na circulação porque nos últimos quatro anos sua primeira página passou do previsível para o tedioso e daí para o tolo’, diz. ‘A imagem do Times como bastião da qualidade se torna mais importante’, acredita Raines, ‘na medida em que os tablóides de TV, o declínio dos valores da imprensa na Grã-Bretanha e a boataria barulhenta dos blogs da internet poluem o ambiente jornalístico dos Estados Unidos’.
‘Para capturar e prender um leitor você tem que pensar no que faz esse leitor comprar um jornal como artigo de necessidade’, defende. Ele pensava também no leitor fora dos Estados Unidos, e ficou feliz quando o Times comprou a parte do Washington Post no International Herald Tribune, o que transformaria o jornal numa organização de mídia global – Raines lamenta no artigo a atual desaceleração do projeto, que pode ter tirado do Times o momento certo para crescer do outro lado do Atlântico.
Eram muitos planos, todos grandiosos. Quando Raines estava prestes a iniciar as mudanças de conteúdo nas editorias que considerava mais fracas, veio o 11 de Setembro. Raines afirma que nunca trabalhou com tanto orgulho nem sentiu tanta ansiedade para chegar à redação todas as manhãs como no período entre o 11/9 e a Guerra no Afeganistão. Ele conta que aproveitou para dar os primeiros passos de uma outra mudança: a da gestão da redação. A idéia era um gerenciamento mais participativo, com um grupo maior de editores, em lugar do esquema vigente, que Raines chamava de ‘silos’, introduzido por seu antecessor Joe Lelyveld – alguns poucos editores de alto escalão, fechados em seus aquários, tomando decisões isoladas, enquanto gente de escalões médios, competente e talentosa, recebia bons salários para nada fazer.
Ataques externos
Pois na edição do caderno ‘A Nation challenged’ [Uma nação desafiada, no qual o Times centralizou a cobertura dos ataques terroristas e a reação dos EUA] até 25 pessoas – ‘não apenas editores de texto, mas designers e ilustradores, editores de fotografia e layout, por longo tempo tratados como cidadãos de segunda categoria’ – ficavam em volta do mesão em que matérias e fotos eram selecionadas.
Foram tempos de exaustão. Raines comenta que enviou memorandos recomendando que a equipe descansasse mais, passasse mais tempo com a família – ‘esta cobertura é uma maratona, não uma corrida de velocidade’. Paradoxalmente, foi logo após a linha de chegada que ele cometeu um de seus maiores erros: em vez de dar espaço para a equipe respirar após aquele tremendo esforço de cobertura, que rendeu ao jornal um número recorde de prêmios Pulitzer em 2002, ele comunicou – no dia em que dava início ao seu segundo ano de comando – que viria pela frente uma fase intensa de mudanças nas editorias mais fracas, a ‘sempre negligenciada parte de trás’ do jornal, inclusive com a troca dos editores de Esportes e Cultura.
A reação foi duríssima. Não importa o quanto a maioria da redação adore trabalhar no Times, diz ele. Sua lealdade profissional não vai para a instituição, menos ainda para os chefes. Como nas guildas medievais, essa lealdade flui em direção a colegas de uma ou outra publicação [impressionante como as redações se parecem!], não importa o quão falsos sejam os princípios da tal publicação, ou quão covarde seu proprietário. Por isso, todo editor-executivo que tenta sacudir a poeira do Times vê-se atacado em outros veículos, com aspas atribuídas a ‘funcionários de alto escalão’ do jornal. ‘É um mistério para mim que essas matérias, geralmente mentirosas, sejam levadas a sério no Times, cuja redação é supostamente a mais sofisticada e exata jornalisticamente do país, e como não se questione a qualidade da fonte (por exemplo, o New York Post [pasquim do frenético Rupert Murdoch]) ou a natureza invejosa de certos críticos de mídia.’
‘Revelação total’
‘Era particularmente irritante ler histórias sobre mim em outros jornais, nas quais editores anônimos do Times se queixavam da ‘gerência imposta de cima para baixo’. Machucava mais a acusação de que eu distribuía tarefas entre meus favoritos – quando estávamos na verdade desmontando uma rede de panelinhas com um século de existência.’
As queixas de Raines contra a, digamos, personalidade da redação são muito amargas. ‘Os redatores mais fracos são líderes de opinião em questões de estilo e redação’, diz. ‘Algumas figuras se orgulham de seu talento para a fofoca, hobby extremamente facilitado pelo e-mail. (Essa avidez não diminui pelo fato de que institucionalmente apenas meia dúzia de pessoas no prédio do Times saiba de fato o que realmente estava acontecendo.) Como grupo, a redação tende a ser liberal [na acepção americana, oposta ao conservadorismo] quanto à política interna do governo; conservadora quanto à localização física de suas mesas; rebelde quanto ao manual de estilo do Times; e anárquica quanto ao gerenciamento do jornal.’
Mas, apesar de tudo, as coisas caminhavam. Não sem percalços, mas caminhavam. Na opinião dele o jornal estava melhor, e os anunciantes percebiam a diferença, mesmo com o orçamento da redação congelado em 180 milhões de dólares, devido à crise de anunciantes desde 2002. Foi quando estourou o caso Jayson Blair – Raines, por sinal, estava em férias. Aprovou de longe as rigorosas medidas tomadas por seu braço direito, Gerald Boyd, e, ao voltar, em 2 de maio de 2003, aprofundou-as e tomou a corajosa decisão de expor longa e visceralmente os erros do Times na supervisão do repórter mentiroso.
Numa reunião, alguém usou a expressão ‘controle de danos’ ao opinar sobre o teor ideal para o mea-culpa do Times. O então editor-executivo pulou nas tamancas: ‘Não haverá ‘controle de danos’, nosso enfoque será de ‘revelação total’!’ Uma das razões: ele já considerara insuficientes as explicações do jornal no caso do cientista de Los Alamos Wen Ho Lee [ver remissão abaixo], uma das maiores lambanças do Times.
‘Control freak’ esquisito
Confiou então a investigação e o texto final a sete repórteres e três editores de gabarito. Um deles, Al Siegal, editor-adjunto de estilo do Times – aquele mesmo do Siegal Committee, que lideraria mais tarde a comissão responsável pelos padrões do NYT pós-Jayson Blair, inclusive a inédita criação de um ombudsman [ver remissão abaixo]. O grupo só deveria consultá-lo, antes da publicação, se algum trecho exigisse ponto de vista exclusivo do editor-executivo.
Resumindo: Raines não leu antes a radiografia da omissão de sua equipe. Muito ético, mas desastroso para seu futuro no cargo. Essa atitude inusitada certamente há de criar um bordão nas redações mundo afora: ‘Vá ter pundonor assim lá no New York Times!‘ Porque foram quatro páginas numa edição dominical (a de 11/5/2003), continuação de amplo espaço na capa, em que as falhas do garoto gritavam, e as de seus superiores, esperneavam. Quem trabalha em jornal no Brasil não concebe tal distanciamento de um editor-executivo – nos dias de hoje, pelo menos, não mesmo. A grandíssima maioria sentaria diante do computador para reescrever tudo. E Raines nem sequer leu!
Uma rara ponta de humor aparece no texto: um dos mais queridos colaboradores de Raines lhe disse que ele era o ‘control freak’ (maníaco por controlar tudo) mais esquisito que conhecia, porque não gostava de detalhes. Verdade. Ele se interessava por tudo, mas delegava decisões. Raines reconhece que viu seu fim no extenso mea-culpa da edição de 11 de maio. Naquela manhã de domingo, ‘um dia nublado’, ele pescava com o jornalista John McPhee, seu amigo da New Yorker, no Rio Delaware. ‘Li a matéria aos pedaços, enquanto o dia clareava, e soube então que minha sobrevivência era improvável’, escreve. ‘O artigo não continha uma linha sequer sobre o único argumento do relatório a meu favor – o que relatava como e por que a informação crítica sobre Jayson nunca chegou a mim’. Essa distância merecia mais reflexão de Raines. O que terá impedido as pessoas de chegarem a sua mesa para informar sobre Blair? A cultura da redação ou seu próprio estilo de comando? Ele confessa pelo menos que não prestou atenção aos padrões de correção que as matérias de Blair motivavam, bem diferentes das correções que mesmo bons jornalistas freqüentemente são obrigados a fazer.
Decisão suicida
As queixas de vários editores sobre Jayson Blair chegavam até Gerald Boyd, nunca a Raines. Numa crítica velada a Boyd, ele afirma que se tivesse sabido dessas queixas o caso Blair estaria encerrado um ano antes. Mas agora era tarde. Um garoto de 26 anos detonara 25 anos de uma carreira brilhante no Times, as teorias de jornalismo e os planos futuros de um veterano. Com uma equipe mantida em transe por mais de 19 meses, as exigências cada vez maiores, não restava ‘reserva de boa vontade para explorar na redação’, entende Raines. Um dos sete repórteres que trabalharam na investigação das falcatruas de Blair – ele ouviu todos, um por um – disse-lhe que ele perdera a redação, e seria muito difícil recuperá-la.
Hoje, Raines diz que não voltaria atrás sobre a publicação mesmo se soubesse que ela custaria seu emprego e o de Gerald Boyd. Mas se arrepende de não ter convidado ‘para escrever’ o texto final, baseado no relatório de investigação, gente séria, aposentada do jornal, como Max Frankel (mais um lendário editor do Times), Bill Kovach (também) e John Lee (outro), que teriam uma visão mais experiente dos problemas de chefia.
No artigo ‘Fim da caixa preta, controle social: avanço republicano’, Alberto Dines elogia a esplêndida – e suicida, viu-se depois – decisão de Raines: ‘O jornalão nova-iorquino derrubou o fetichismo em torno da infalibilidade da imprensa e confirmou o princípio de que todos os poderes devem ser fiscalizados e devassados’. Para boa parte da redação, entretanto, Raines cometera ali outro erro, e bem grave: expusera a redação. Uma das lições que ele diz ter aprendido (‘pelo jeito, mal’) ao fim do primeiro ano de comando é que o editor-executivo do Times precisa ser ácido na crítica interna à produção editorial do jornal, mas para o público externo deve mostrar-se um ‘líder de torcida constante’ da totalidade dos funcionários, ‘muitos dos quais se vêem como minoria oprimida, embora alguns deles estejam entre os jornalistas mais bem pagos do país’. O mea-culpa derrubava essa antiga farsa.
Roteiro hollywoodiano
‘Repetidamente assumi completa responsabilidade pelo fracasso em flagrar Jayson Blair’, diz ele. ‘Eu já estava por 20 meses no cargo, e deveria de alguma forma ter encontrado tempo para apurar se nosso desorganizado departamento de pessoal estava à altura da tarefa.’ Mas o pior estava alguns andares acima. ‘A maior surpresa da tempestade Blair foi Arthur Sulzberger’ – o dono do jornal. ‘Eu não tinha percebido o quão instável ele era, e francamente não acho que me esforcei o suficiente para endurecê-lo para a batalha de sobrevivência que poderíamos ter vencido.’ Sim, Raines pensa até hoje que poderia ter superado a crise e mantido o cargo – se não houvesse o 11/9, se a redação não fosse um panelão, se Jayson Blair não se revelasse um cretino, se seus auxiliares o tivessem procurado a tempo, se seu patrão renegasse a origem. Tantas variáveis… Mas as coisas seguiram seu curso. ‘Arthur’, por exemplo, tendia a gritar ‘Aiuou, Silver!’ nas horas difíceis, galopando para o centro do problema e… formando comissões. Dizem que por pressão dos ‘primos’.
The New York Times tem 60 herdeiros, entre primos, primas, suas mulheres e seus maridos, que dia e noite sonham apenas um sonho: vender o Times ‘enquanto é tempo’, como recomendou anos atrás um pirata da mídia chamado Melvin Karmazin, sabe-se lá por que convidado a um seminário no respeitabilíssimo jornal da Rua 43 Oeste, em Nova York – uma ‘dama grisalha’ cuja história pouco tem tido a ver, em 153 anos, com saques marítimos ou midiáticos.
Sob este background digno de roteiro hollywoodiano, Raines cometeu muitos erros. Sem apoio da redação e do patrão, por exemplo, não cancelou uma grande reunião com todo o corpo de funcionários do Times, no Loew’s Astor Plaza Theater, em Times Square – marcada para 14/5/2003, três dias depois da publicação do mea-culpa. E ainda deu de mentir. Disse ali que licenciou Blair em meio ao escândalo porque o repórter é negro (‘culpa racial’). No texto, revela a verdadeira razão: Blair procurara o Programa de Assistência ao Funcionário do jornal para pedir tratamento contra álcool e drogas – uma circunstância sigilosa. Raines já tinha lidado com dois repórteres brilhantes que ganharam licença para tratar de alcoolismo, e na volta ambos fizeram trabalho de excelência.
O poder e a vítima
A reunião foi ‘um imenso desastre’, cenário perfeito para que a cultura das queixas [ver a Parte 1 deste texto, remissão abaixo] aflorasse em todo o seu esplendor. ‘Arthur’ já se decidira sobre a saída de Raines: sua permanência significaria ‘muito sangue no chão’. ‘Hoje em dia’, resume Raines, ‘penso em Jayson Blair como um acidente, que encerrou minha carreira no jornal da mesma maneira imprevisível que seria um ataque do coração ou um desastre de avião.’ O estrago para o Times pode ter sido mais grave. O relatório do Comitê Siegal, de julho de 2003, ‘mostra uma instituição em negação, é um hino ao velho status quo, escrito exatamente pelas pessoas que mais fortemente resistiram à idéia de se fazer um jornal de um modo mais vigoroso’, afirma.
Raines diz na última página que aos 61 anos sabe o quanto o sucesso em jornal é efêmero. Que teve 25 ótimos anos no NYT, e apenas um mês ruim. Que sempre se interessou por literatura, e poderá finalmente dedicar-se a ela nos próximos anos – graças ao tempo e ao dinheiro extras decorrentes da demissão (ele conseguiu ser um dos raros funcionários demitidos do New York Times!). No fim das contas, parece que todo mundo se deu bem, até Jayson Blair. O jornalão continua firme, com suas 52 mil edições, bilhões de palavras publicadas, 111 prêmios Pulitzer, quatro anos seguidos no topo da lista da Fortune como empresa de mídia mais admirada. Nenhum outro jornal ostenta tal currículo. ‘Arthur’ nem sonha em vendê-lo, para pesadelo dos herdeiros.
E a tal crise não é tão visível. The New York Times Company, informa o site da empresa (www.nytco.com), publica The New York Times, International Herald Tribune, The Boston Globe e 16 outros jornais; é dona de oito estações de TV e duas emissoras de rádio, além de 40 sites, incluindo NYTimes.com e Boston.com. O faturamento do grupo em 2003 chegou a 3,2 bilhões de dólares.
Só o tempo confirmará se o bom jornalismo foi a única vítima da queda de Howell Raines.