O arrastão de Portugal caiu na rede. Está na internet um vídeo que, em 20 minutos, desmonta, com a montagem de trechos de telejornais, entrevistas e recortes de jornais, uma história que repercute ainda hoje por lá: o tumulto na Praia de Carcavelos, em Cascais, na tarde de 10 de junho – por acaso, Dia de Portugal.
Realizado pela jornalista Diana Andringa, Era uma vez um arrastão evoca no título as fantasiosas histórias da carochinha, que entretanto se revelam profundamente cruéis em seus desdobramentos reais. É o que demonstra o roteiro, ao passar em revista ‘um crime que nunca existiu, a atitude dos media perante uma história explosiva e as conseqüências políticas e sociais de uma notícia falsa’.
À exceção das reações xenófobas, incabíveis num país que não se defronta com a questão dos imigrantes ilegais e mantém seu horizonte de rejeição social nos limites de um racismo raramente explícito, o vídeo poderia perfeitamente estar falando do Brasil. Por isso é especialmente relevante como exemplo: pelo empenho militante de quem percebe a urgência de apontar e contrariar a manipulação da informação que alimenta campanhas de exclusão social e pela demonstração de que a falta de recursos não impede a realização de um trabalho de alta competência. Realizado em oito dias, no rescaldo dos acontecimentos, o vídeo envolveu 12 pessoas e foi feito com gravações de telejornais em VHS, uma câmera amadora, mini-DV, som e tripé alugados por três dias e montagem em computador. Só a pós-produção do áudio foi profissional. Disponível na rede, é um documento muito esclarecedor para o público em geral, embora seja de especial relevância para a formação dos estudantes de Jornalismo e para debates acadêmicos na área da comunicação social.
Exclusão social
O filme começa com a imagem suave de uma praia tranqüila, pontuada pelo fundo musical de um batuque africano. De repente, o impacto dos telejornais em seqüência: RTP, SIC, TVI, os três canais abertos de Portugal a noticiar o arrastão promovido por ‘cerca de 500’ jovens negros e a transmitir cenas de correria e pânico na praia. No dia seguinte, os jornais impressos corroboram a versão, políticos e articulistas apelam por mais segurança, alertam para o ‘perigo’ dos imigrantes, fazem alarde em torno dos ‘bairros problemáticos’. Ao fim de uma semana, o desfecho apoteótico: a grande manifestação em Lisboa, de cunho indisfarçavelmente racista, com faixas associando os imigrantes à criminalidade e saudações nazistas acompanhando os gritos em defesa da pátria.
Em paralelo, o recuo dos jornais: recortes mostram informações de que os ‘incidentes em Carcavelos só deram origem a uma queixa’, a manchete anunciando ‘a verdadeira história de um arrastão que nunca existiu’, um artigo sobre as ‘notícias que são pura ficção’; a seguir, trecho de documento da polícia afirmando que ‘só 30 ou 40 praticaram ilícitos’ e que ‘muitos jovens que apareceram em imagens televisivas e fotográficas não eram assaltantes’, ‘fugiam com seus próprios haveres’.
E a declaração do alto comissário para a Imigração e Minorias Étnicas a um jornal: ‘Segundo as últimas informações, não houve qualquer arrastão. O dia coincidiu com o final das aulas e verificou-se um aumento anormal do número de jovens de raça negra no areal. Gerou-se o pânico e a confusão. Um grupo de jovens brancos também provocou desacatos no Porto. O problema não é a cor da pele, mas de exclusão social’.
Apetite social
Um deputado municipal negro do PSD faz discurso de protesto na Câmara de Lisboa, particularmente indignado com ‘a falta de sensibilidade social e a facilidade com que até políticos com responsabilidades podem cair na demagogia e no aproveitamento político da instrumentalização mediática das questões de segurança e violência urbana decorrentes da maior exclusão social’. Entrevistado, o deputado conclui: ‘Esse caso do chamado arrastão que nunca existiu era um pretexto para se realizar a manifestação da extrema-direita’.
Depois de ironizar a extraordinária dimensão do número de supostos delinqüentes – pois nem o Brasil seria capaz de tal façanha –, a presidente da Casa do Brasil, Heliana Bibas, recorda as estranhas coincidências que marcaram o primeiro grande arrastão no Rio de Janeiro, em 1992, filmado pela TV Globo, na reta final da campanha em que a ‘negra, mulher e favelada’ candidata do PT, Benedita da Silva, disputava o governo do estado.
Ao analisar o caso, o antropólogo Miguel Vale de Almeida argumenta: ‘A coisa mais chocante foi a falta de confiança que um leitor ou espectador pode depositar no jornalismo que é feito, ainda antes de qualquer manipulação da informação ou da demonstração de qualquer preconceito. Nunca soubemos ao certo quantas pessoas estiveram envolvidas, não sabemos se estiveram envolvidas ou se foi outro tipo de fenômeno. [É preciso] reconhecer que existem com certeza problemas de criminalidade no país, como em qualquer sociedade, mas ao mesmo tempo existem problemas sociais de representações do medo baseadas em idéias de exclusão e numa hierarquia social. Os dois problemas existem ao mesmo tempo, os dois precisam ser combatidos de igual forma. Isso demonstra-se na seqüência dos eventos. Assim que se começou a falar do arrastão, sem nunca se saber se foi arrastão, se teve 50 pessoas, se teve 500 ou se teve zero, a partir desse momento o caso já existia, porque existe o apetite social para que ele exista’.
Sem fronteiras
E conclui com um comentário sobre ‘um fenômeno curioso’: ‘Sempre que aparece alguém a tentar demonstrar que determinados tipos de criminalidade até diminuíram em vez de terem aumentado, a sua mensagem simplesmente não é ouvida, quer dizer, não havendo vontade de recepção, a mensagem não chega sequer a acontecer’.
Sobre imagens estáticas dos telejornais exibidas na abertura, o vídeo termina ao som de um rap: ‘Como sempre africanos viraram manchete / notícia / Sempre o mesmo suspeito / o mesmo bode expiatório / Racismo que estava escondido tornou-se notório / Mas quantos na escola / na seleção / serviço militar obrigatório / somos usados descartados como meros acessórios…’
O vídeo se apresenta como um esforço para inscrever ‘esta nova crise de pânico’ na ‘história de manipulação de massas em Portugal’. A dimensão global desse tipo de ‘crise’ e a semelhança no tratamento midiático de questões explosivas, por sua vez, conferem a este documentário uma importância que não conhece fronteiras.
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Jornalista, doutoranda e professora da Universidade Federal Fluminense