As rígidas limitações dos governos de nações-Estados individuais diante de problemas globais têm sido flagrantemente evidentes há muitos anos. Mas talvez nunca tenham sido tanto quanto com a recente publicação dos Panama Papers pelo Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos [International Consortium of Investigative Journalists – ICIJ], do qual sou fundador, assim como pelo jornal alemão Süddeutsche Zeitung, pelo Guardian e mais de outras 100 organizações jornalísticas pelo mundo afora.
Tomando por base uma análise de 11,5 milhões de registros vazados por 370 jornalistas de 76 países ao longo de um ano, revelando que “214.488 entidades com contas bancárias no exterior [offshore entities] eram vinculadas a pessoas em mais de 200 países e territórios”, sabemos agora em complexos detalhes aquilo que, de maneira cínica mas correta, sempre assumimos. Que pelo menos algumas das pessoas mais ricas e mais poderosas do mundo esconderam ilegalmente seu dinheiro em contas no exterior e sonegaram impostos, ou, pior, lavaram dinheiro sujo de todas as maneiras de transações ilícitas, inclusive com fraude bancária, suborno político, tráfico de drogas, terrorismo e crimes empresariais. Dez anos atrás, Raymond Baker, fundador e presidente da Global Financial Integrity [organização de pesquisa e consulta sem fins lucrativos], apropriadamente descreveu o fenômeno do dinheiro sujo em contas do exterior como “o calcanhar de Aquiles do capitalismo”.
É claro que a dimensão de competência jurídica do fluxo de capitais em contas no exterior é só parte da história. A grande ironia dos Panama Papers talvez seja a do maior vazamento na história do jornalismo só ter sido possível devido aos constantes avanços das tecnologias de informação computadorizada – precisamente as mesmas tecnologias que facilita, de maneira permanente, transações financeiras gigantescas no mundo inteiro, independentemente de sua legitimidade ou legalidade. Como destacamos Bill Allison (coautor) e eu em nosso livro The Cheating of America, publicado em 2001 pelo Center for Public Integrity, “a combinação de contas bancárias no exterior e o ciberespaço é a última poção mágica para sonegadores de impostos e outros”.
Porém, apesar da natureza preocupante e em grande parte ilegal daquilo que às vezes transpira tanto no ciberespaço quanto nos inúmeros e menos regulados territórios jurídicos das contas no exterior, nada tem de surpreendente. Isso porque, como certa vez escreveu W.H. Auden [Wystan Hugh Auden, poeta britânico]: “O mal é medíocre e é sempre humano.”
Vídeos, áudio e textos a baixo custo
No entanto, o que é notável e realmente inédito sobre o projeto épico dos Panama Papers é a colaboração investigativa discreta entre 370 jornalistas e suas respectivas organizações jornalísticas no mundo inteiro, ao longo de um ano. Ou, para dizer de uma maneira mais ampla, os quatro documentos – de proporções monumentais – e as investigações que se seguiram, nos últimos anos, liderados por Secrecy for Sale, de Gerald Ryle e Marina Walker Guevara (aproximadamente 100 mil registros vazados); os vazamentos de Luxemburgo (cerca de 28 mil páginas de documentos confidenciais disponíveis para uma equipe de mais de 80 jornalistas de 26 países); os vazamentos suíços (uma equipe de jornalistas de 45 países examinou registros confidenciais do banco HSBC); e o maior esconderijo de todos, os Panama Papers.
O feito tecnológico de tantos jornalistas terem obtido, organizado, disseminado e publicado matérias em todo o planeta é ainda mais impressionante se for levado em conta que, historicamente, os jornalistas não são conhecidos por colaborarem com organizações jornalísticas concorrentes.
É óbvio que este valioso trabalho não era viável nem concebível no século passado, quando as pessoas nem usavam a expressão big data, e muito menos possuíam o conhecimento técnico e a compreensão para criar as plataformas que facilitam este tipo de investigação.
Foram estes tipos de mudanças tecnológicas novas e emocionantes – especialmente, o advento da internet e a web – que me estimularam a fundar o Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos [ICIJ]. O que conquistou minha imaginação foi que, de repente, agora poderia ser possível transmitir vídeos, áudio e textos pelo mundo inteiro rapidamente, facilmente, a baixo custo. As câmeras iam ficando menores, o vídeo e a qualidade do som, mais afinados, mas, de maneira mais ampla, todas as formas de comunicação – de textos impressos a digitais e a informações visuais e de áudio – tinham um acesso abrangente e instantâneo, eletronicamente, atravessando fronteiras e a um custo relativamente muito baixo.
O amanhecer de uma nova era
A manifestação reveladora que me tomou sobre o futuro “possível” de um jornalismo internacional investigativo ocorreu, por incrível que possa parecer, em Moscou, apenas alguns meses após a histórica dissolução da União Soviética. Foi enquanto participava de minha primeira conferência sobre jornalismo investigativo internacional, em setembro de 1992, que tive a ideia de tentar descobrir uma nova maneira para os repórteres investigativos colaborarem além-fronteiras, pelo mundo todo, rastreando os usos e abusos do poder público e privado de uma forma mutuamente construtiva. Foram cinco anos de muitas conversas profundas com alguns dos sábios mais simbólicos do jornalismo, sobre o “possível” e suficiente financiamento para criar o Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos, que nasceu em outubro de 1997, como um projeto do Center for Public Integrity.
E embora as publicações jornalísticas tenham sido tradicionalmente vinculadas (e ainda são, consideravelmente) a posições geográficas e outras considerações locais de cobertura logística, a informação propriamente dita na internet, de repente, não era – e não é. Todos os 26 projetos do Consórcio Internacional publicados desde o ano 2000 envolveram milhares de páginas de registros públicos e privados, muitas vezes discrepantes, examinados coletivamente por jornalistas importantes de vários países. O que distingue o projeto dos Panama Papers é a abrangência inédita, em termos de dados, documentos, número de jornalistas participantes e organizações jornalísticas que o coeditaram – assim como o impacto e as potenciais repercussões no total geral.
Mas desde o primeiro dia, em 1997, sempre houve um único princípio de funcionamento dentro do consórcio: colaboração, colaboração e colaboração! Ainda estamos no amanhecer de uma nova era. E, num mundo de funções políticas anormalmente debilitadas, com as consequências mais terríveis possíveis, o conceito fundamental de responsabilidade pública não pode, e não deve, ficar confinado a fronteiras locais ou nacionais, ou às estruturas rígidas, às ortodoxias, aos conceitos e às inseguranças do jornalismo tradicional.
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Charles Lewis é jornalista, fundador do Center for Public Integrity