Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O jornal à procura de novos rumos

O diretor de redação Le Monde, Edwy Plenel, anunciou na manhã de segunda-feira (29/11) que se demitia das suas funções. Essa notícia assinala o fim de um período de grande tensão entre Plenel e o presidente do conselho de administração do Grupo Le Monde, Jean-Marie Colombani, e pode ser o prelúdio do renascimento do jornal, que passa por uma fase de grandes dificuldades.

Le Monde vem perdendo leitores (menos 10% desde o início de 2004, a circulação caiu um pouco abaixo dos 400 mil exemplares) e dinheiro: a dívida do jornal atinge os 130 milhões de euros, e o déficit das contas deste ano deve superar os 20 milhões de euros.

É verdade que nem tudo vai mal: o site do jornal é o maior site de notícias em francês, e o Le Monde está hoje à frente de um grupo de imprensa importante, abrangendo jornais regionais e revistas de grande circulação, como Telerama. Mas o grupo precisa a curto prazo de 50 milhões de euros, e está negociando com a Hachette, e outros possíveis investidores como o Grupo Prisa, o editor de El País. Internamente se impôs um regime de grande austeridade: 100 dos 700 funcionários do jornal serão dispensados.

Durante dez anos, Plenel, de 52 anos, dirigiu com mão de ferro a redação do Le Monde. Criado por iniciativa do general Charles de Gaulle, em 1944, que necessitava de um jornal não partidário, de um instrumento da reconstrução econômica e moral da França, o jornal se afastou do seu criador para se transformar em seu crítico impiedoso entre 1962 e 1969.

Conhecido por seu caráter sisudo (até há poucos anos não publicava uma única fotografia), o Le Monde se transformou em uma instituição na França: é o jornal das elites e do establishment, faz parte do intocável patrimônio nacional francês, como o formato da baguette ou o desfile do 14 de Julho, a que em 2005 assistirá – honraria excepcional – o presidente Lula.

Efeito desastroso

Durante os primeiros anos em que foi dirigido por Plenel o jornal recuperou o lustre que havia em parte perdido nos anos 1980. Junto com Colombani, o seu predecessor na direção do jornal, Plenel introduziu nas páginas do Monde o jornalismo de investigação e de denúncia. Esteve na origem de grandes furos jornalísticos, como o caso do Rainbow Warrior, o barco do movimento Greenpeace que o governo francês mandou afundar nas águas da Nova Zelândia, ou o caso das escutas clandestinas dos telefones de muitas personalidades parisienses, organizadas ilegalmente pela célula de segurança da Presidência da República durante o segundo mandato de François Mitterrand, entre outras histórias que abalaram as instituições francesas.

Esse frenesi investigativo foi positivo para o jornal, que ganhou novos leitores e redobrou de influência. Mas nos últimos tempos a redação acabou escorregando em algumas denúncias que se revelaram infundadas, como o recente caso que supostamente envolvia várias figuras públicas com uma rede de prostituição e pedofilia em Toulouse.

Le Monde começou então a ser acusado de contribuir para o descrédito da classe política, e de favorecer indiretamente com essa atitude as idéias do Front National, o partido de extrema direita de Jean Marie Le Pen, cuja carreira prosperou até levá-lo ao segundo turno da última eleição presidencial de 2002.

Nos últimos dois anos, o tom do jornal estava irreconhecível, com suas manchetes diárias apelativas, de 4 ou 5 colunas, sublinhando acontecimentos que muitas vezes não mereciam esse destaque. Era o estilo Plenel em toda a sua plenitude, que alguns apelidavam de ‘trotskismo cultural’, em referência à militância trotskista de Plenel na juventude.

Em fevereiro de 2003 essas críticas difusas se aglutinaram num panfleto contra a direção do Le MondeLa face cachée du Monde redigido por dois jornalistas, Pierre Péan e Philippe Cohen [veja remissões abaixo]. O livro é uma amálgama de acusações justas, de insinuações infames, e de ataques pessoais injustificados. A dupla que dirigia o jornal, Colombani e Plenel, defendeu-se com soberba, mas muitas perguntas ficaram no ar. O efeito na opinião pública foi desastroso, e os mesmos leitores que antes se deliciavam com as denúncias do jornal, acabaram por se distanciar do Le Monde, acusado de arrogância.

Numa reunião com a redação na sexta-feira (3/12), Colombani citou os resultados de uma recente pesquisa: em 2000, a linha editorial do jornal tinha o apoio de 70% dos seus leitores, enquanto em 2004 esse número teria baixado para menos de 50%.

Crise de identidade

Também é verdade que, afastadas as ameaças da Guerra Fria, o interesse dos franceses pela política vem caindo substancialmente, como vem caindo a qualidade do debate político, e dos próprios políticos… Muitas das questões que mais interessam os franceses são hoje resolvidas em Bruxelas, no âmbito da União Européia, e nenhum jornal descobriu ainda como tornar interessantes para o grande público os debates europeus.

Tudo isso afasta os leitores da imprensa, e essa tendência ao esvaziamento da política nacional pegou os jornais na contramão. Desde o caso Watergate, o jornalismo se erigiu em quarto poder, finalmente num momento em que todos os poderes estão fragilizados.

O caráter imprecatório da imprensa pode contribuir para a transparência das instituições, mas é também uma arma perigosa: a imprensa corre o risco de ser manipulada por terceiros, interessados no enfraquecimento dessas mesmas instituições. As coisas são um pouco mais complexas do que se ensina nas escolas de jornalismo.

A recente queda nas vendas do Le Monde acabou aprofundando a discordância entre os dois dirigentes do jornal – Colombani tentando mudar a linha editorial do diário, Plenel acusando Colombani de má gestão dos ativos do jornal – e termina com a vitória (provisória?) de Colombani. Plenel deixa a direção, mas curiosamente continuará trabalhando no jornal – uma situação dificilmente aceitável em qualquer outra redação.

Agora Jean-Marie Colombani procura um novo diretor para o Le Monde, e também reconstruir a unidade da redação, dividida entre ‘plenelistas’ e colombanistas’. O presidente do Le Monde declarou semana passada que o jornal tem de voltar ao ‘rigor, perícia, vigor editorial, respeito e animação do pluralismo de idéias’.

Resta saber se a renúncia a certo sensacionalismo e a adoção de um tom mais reflexivo serão suficientes para o Le Monde recuperar o prestígio, e as vendas.

Os jornais diários no mundo inteiro vivem uma séria crise de identidade devido à concorrência da internet, entre outros fatores. Robert Thompson, diretor do tradicionalíssimo The Times, há 216 anos publicado em formato broadsheet, justificava recentemente a adoção do formato tablóide pela necessidade dos jornais aplicarem nas suas páginas as lições aprendidas na internet [veja abaixo remissão para matéria sobre a tabloidização do Times]. Foram-se as jóias.

Finalmente Colombani está bem colocado para saber que a recusa do sensacionalismo não é garantia de uma total ausência de deslizes. Afinal foi o próprio Le Monde que, no auge da sua tendência para o understatement [mitigação, atenuação], no dia 8 de agosto de 1945, quando os americanos lançaram a bomba nuclear sobre Hiroshima, publicou a notícia sob o seguinte título: ‘Uma revolução científica: os americanos lançam a primeira bomba atômica sobre o Japão’.

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Jornalista