Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

O obituário em vida

O programa Fantástico produzido pela TV Globo e exibido no domingo (4/12) fez jus ao título, e com todas as letras: f-a-n-t-á-s-t-i-c-o. Assisti partes e pareceu que estava assistindo a todo o programa. Reconheço que continuei com a má impressão e o pé atrás que sempre tive em relação a essa produção global. Uma espécie de folhetim de variedades, um tipo de fim de feira noticiosa, um jeito de jornalismo camuflado em que não sabemos qual a abordagem adequada – seriedade ou pilhéria? – para um ou outro tema.

E também não é de hoje que a TV Globo arranja um jeito de homenagear seu contratado de longa data, o humorista Chico Anysio. Ele começou a trabalhar na Globo em 1969 e durante nada menos que 39 anos manteve no ar o seu sempre campeão de audiência Chico Anysio Show.

Há poucos meses, em julho de 2011, após 110 dias no hospital, Chico Anysio deu entrevista à revista Veja e não economizou nas farpas à Globo. “Foi muito ruim. De 1957, quando entrei na televisão, até 2002, quando extinguiram meus programas, sempre fui líder de audiência. Não sabia o que tinha feito de errado. Passei dias pensando em todos os diretores da Globo, um por um, para tentar chegar a quem teria me boicotado.” E completou: “Também pensei que os irmãos Marinho não gostavam de mim. Se o pai deles [Roberto Marinho, fundador da Rede Globo] estivesse vivo, eu não teria saído do ar”.

Questão de idade

É inegável que Chico Anysio é o maior humorista do país. E também o humorista mais ranzinza, muito chegado a reclamar em público – e a se desculpar em privado, dizem alguns. Chico Anysio diz ter sido muito ruim e nunca engoliu ter caído no ostracismo, a partir de 2002. A sua expectativa à época era a de que a emissora lhe daria um cargo de supervisor, mas isso não aconteceu. E outra decepção é com relação ao humor transmitido pelo canal, no formato de temporadas com poucos episódios. “Quero ver criarem fenômenos duradouros, capazes de lançar bordões que se repitam nas ruas, como faço”, alfineta.

As homenagens de agora têm um quê de forçado e não poderia ser de outra maneira, já que ao observador minimamente informado parece um ajuste de contas em sua sempre conturbada relação com o comediante: agora é o tempo de fazer as pazes, deixar ao largo as diatribes daquele que um dia pensou ser maior que a emissora e que, longe de a ela pertencer, ao menos a sua audiência muito devia a ele.

Conhecido como vaidoso às raias do extremo, egocêntrico a não mais poder, Chico Anysio nunca deixou de criticar a Globo. Ainda em 2009, para não retroceder muito no tempo, o versátil Chico chegou a fazer uma ponta na novela das 9, Caminho das Índias, mas nem isso lhe fez diminuir a artilharia contra a emissora. Chico não perdoa a juventude por estar ocupando seu espaço. “O elenco de Caminho das Índias é gigantesco, mas eu contraceno sempre com os mesmos. E, assim sendo, há pessoas que eu nunca vejo, como a [Letícia] Sabatella, a Laura Cardoso. Tem pelo menos uns 15 cujo nome eu nem sei, porque a Globo está cheia de jovens”, disse à época.

Vem de longe suas discussões com os diretores globais Daniel Filho, Jorge Fernando e Wolf Maia, para ficar em três apenas. Sobre Daniel Filho ele faz recair a culpa pelo que chama de “juvenilização” da emissora. “Levaram o Daniel a sério e isso tem sido uma tortura para quem tem mais de 50 anos. Por causa disso, o Marcos Palmeira já fez papel de avô numa novela. O que, aliás, o irritou a ponto de ele sair da Globo e ir para a HBO fazer Mandrake”, afirmou.

As farpas direcionadas a Jorge Fernando derrapam feio na cortesia e até no profissionalismo que deveria se esperar do veterano humorista. “Eu me pergunto por que me chamam de nepotista por ter três filhos trabalhando – dois como atores e um na direção de TV. Que nome se dá ao Jorge Fernando? Mamatista? Escalar a mãe é uma dose um pouco forte sob o meu ponto de vista”, disse.

Se um é culpado por rejuvenescer, ao menos em questão de idade dos atores e atrizes, outro é atacado por motivos menos usuais. Mas é para Wolf Maia que o veneno maior é destilado por Chico Anysio. Vejamos suas digressões: “Ele pega a novela, lê, olha bem e escolhe um papel para ele próprio interpretar. Não acho que ele faça mal, que não seja um grande ator, mas é uma covardia, por exemplo, com o José Mayer, o Humberto Martins e outros no mesmo nível e idades semelhantes. Isto não devia ser permitido, a não ser que ele entrasse para fazer papel de Wolf Maia – o que seria fácil de conseguir: bastava um telefonema para o autor”, completou.

Festa-surpresa

É nesse caldo de mágoa com ressentimento que os telespectadores da emissora (a maior parte da população brasileira) assistem à escalada de homenagens quando Chico Anysio é internado em hospital para tratar de sua frágil saúde, ou quando recebe alta deste e se dirige à residência. Chega a ser patético o esforço para produzir a imagem de que a relação Chico-Globo nunca esteve tão bem. Será mesmo?

O ponto que desejo realçar é que fiquei, vamos dizer assim, constrangido com a abordagem do Fantástico de domingo, dia 4. Não sei por que, mas, instintivamente, como quem zapeando pega o canal da Globo e se detém por alguns minutos, entretido com a locução e as imagens, de repente me vejo perguntando aos de casa: “Chico Anysio morreu?” Não sei se eu apenas tive essa funesta impressão, mas a verdade é que o tom da reportagem era como de despedida, como se fôssemos espectadores de um obituário ao vivo de uma pessoa viva. Recebendo a negativa de minha mulher, de que Chico continuava no mundo dos vivos e – graças a Deus – bem disposto, dando entrevista e tudo, fiquei pensando se não estava muitos tons acima do que seria uma reportagem, por mais que seu intuito fosse o de homenagear. Voltei a pensar na vaidade do homenageado e arrisquei: “É bem Chico Anysio, ele gostaria de receber todas as homenagens ainda em vida, e não na hora derradeira, inescapável a todos nós, meros humanos, meros mortais”.

Uma coisa é certa, existem coisas que não podem e não devem ser antecipadas. E uma delas é o obituário. A beleza – se é que há uma beleza nisso – é que o homenageado não deve tomar conhecimento dele, ficando para a história o reconhecimento real, feito em meio às lágrimas da partida. É como aquelas festas-surpresa: se acabar a surpresa, deixa de ser festa-surpresa. Simples assim.

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[Washington Araújo é mestre em Comunicação pela UnB e escritor; criou o blog Cidadão do Mundo; seu twitter]