Você já imaginou a entrevistadora Marília Gabriela se aposentando e cedendo o seu lugar para um jurado de reality show como Arnaldo Saccomani ou Luis Calainho? Guardando as devidas – e bem distantes – proporções, é isto o que está acontecendo na televisão norte-americana. Depois de 25 anos à frente de um dos mais icônicos programas de entrevistas deste tempo, o jornalista Larry King se despedirá no final do ano de seu Larry King Live – uma das estampas do canal a cabo CNN. Tão logo o apresentador de 76 anos anunciou em junho último a sua decisão de encerrar o ciclo no comando do programa, começaram as especulações selvagens sobre quem poderia ser seu sucessor. A presença na lista de poucos nomes de peso do jornalismo, como Katie Couric (editora-chefe e apresentadora do telejornal CBS Evening News) e John King (correspondente da própria CNN), e a de muitos do mundo dos reality shows acionou a desconfiança do mercado de que o outrora dominante canal a cabo estaria substituindo um grande jornalista por uma figura efêmera de programas de pouca credibilidade e busca desenfreada por audiência. O temor dos mais conservadores foi confirmado.
Na semana passada, a Cable News Network anunciou que o sucessor de Larry King será alguém conhecido do público americano exclusivamente pela sua atuação como jurado de um reality show de calouros e por ter vencido o Celebrity Apprentice, programa comandado pelo bilionário Donald Trump (uma espécie de O Aprendiz com pessoas famosas). Trata-se do britânico Piers Morgan. Um jornalista de 45 anos que ganhou fama nos Estados Unidos avaliando de maneira ríspida talentos de desconhecidos no programa America´s Got Talent, da rede NBC. Talvez ele seja mais conhecido do público brasileiro e mundial por ter participado da apresentação da cantora escocesa Susan Boyle no programa inglês Britain´s Got Talent como ‘o outro jurado, além de Simon Cowell’. A ele caberá preencher a lacuna que será deixada pelo maior entrevistador de todos os tempos da televisão norte-americana. O novo programa será produzido em Nova York, com possibilidade de ser eventualmente transmitido a partir dos estúdios da CNN em Los Angeles e Londres. Assim como Larry King Live, a atração também será exibida pela CNN internacional em mais de 200 países.
‘A honestidade brutal é fundamental’
Assim que o desfecho da história começou a ser definido, tanto o canal CNN quanto o próprio Morgan trataram de vir a público para reforçar imediatamente que o substituto tem ‘bala na agulha’. Que o novo apresentador é alguém com um currículo vasto no campo jornalístico. O britânico começou a carreira como repórter do jornal The Wimbledon News e mais tarde seguiu para o The Sun como colunista aos 24 anos de idade. Em 1995, aos 28, assumiu como o editor-chefe mais jovem da história do jornal sensacionalista News Of The World, de propriedade do magnata australiano Rupert Murdoch. No ano seguinte, transferiu-se para o tabloide concorrente Daily Mirror onde permaneceu por dez anos. Morgan se afastou do jornalismo impresso em 2004, quando foi demitido pelo Mirror. Apesar da carreira meteórica e promissora, o ‘prodígio’ sentiu na pele o preço de uma gafe na primeira divisão da imprensa da Inglaterra. Naquele ano, ele autorizou a divulgação de fotos de supostos soldados britânicos cometendo atos de tortura no Iraque. Após a publicação, ficou provado que as imagens eram falsas e imediatamente Morgan perdeu seu emprego. O escândalo motivou até uma carta aberta de um dos comandantes do exército inglês na qual dizia que a instituição se sentia vingada com a demissão de Piers Morgan do cargo. Envolvido em permanentes polêmicas e criticado por ter baixado ainda mais o nível dos tabloides por onde trabalhou, o jornalista chegou a ser classificado pelo jornal The Independent como ‘homem sem bússola moral’.
Outra credencial amplamente explorada nesta contratação pela CNN é a atuação de Morgan como apresentador de um programa estilo ‘arquivo confidencial’ chamado Life Stories, que vai ao ar na emissora ITV desde 2009. A atração explora detalhes emocionantes e íntimos da vida dos entrevistados com a participação de uma plateia. Pela cadeira dos convidados, já passaram nomes como Gordon Brown, Simon Cowell, Sharon Osbourne e Boris Becker. Numa declaração divulgada após o anúncio da contratação de Piers Morgan, o presidente do canal CNN Jonathan Klein disse que o novo funcionário ‘construiu seu nome fazendo perguntas contundentes para figuras públicas, tornando-as responsáveis pelas suas palavras e ações’. Klein alegou ainda que a escolha pelo inglês aconteceu justamente por causa dos empregos controvertidos que teve anteriormente. ‘Nunca tive dúvida, a partir do momento em que conhecemos Piers, de que ele seria o encaixe perfeito. Ele adora conversar com as pessoas e nos surpreender com as revelações que consegue conquistar’, afirmou ao sítio The Hollywood Reporter. Quando questionado sobre uma possível falta de credibilidade de Morgan por estar associado com tabloides sensacionalistas e programas de calouros, o presidente da emissora foi direto: ‘A honestidade brutal dele é fundamental para um grande programa de televisão.’
‘Quero ser motivo de manchetes’
A expectativa de gerar renovação – e um certo choque no público – é a maior aposta da CNN para recuperar a liderança de audiência no universo dos canais a cabo noticiosos norte-americanos. No começo deste ano, Larry King Live atingiu a audiência mais baixa desde que entrou no ar, em 1985. Segundo o instituto Nielsen, nos três primeiros meses de 2010 o programa marcou média de 771 mil telespectadores nos Estados Unidos – uma queda de 43% em relação ao mesmo período de 2009. E pior: os maus índices de audiência fizeram com que o talk-show caísse para terceiro lugar, sendo superado pelos concorrentes diretos das rivais Fox News e MSNBC.
Ciente das dificuldades, Piers Morgan tem se mostrado confiante em relação ao seu desempenho no novo trabalho. Quando indagado sobre quem será seu primeiro entrevistado, não houve modéstia. ‘Eu gostaria de entrevistar o presidente Obama. Adoraria fazer uma entrevista franca com ele, já que está passando por um período terrível. Também gostaria de ser o primeiro a entrevistar Mel Gibson ou Lindsay Lohan’, admitiu em entrevista ao sítio The Hollywood Reporter. Para o britânico, o passado profissional não mancha a sua integridade para conduzir um programa de entrevistas em uma emissora com uma estampa mais refinada, como a CNN. ‘Venho do jornalismo impresso. Então, tenho um certo rigor jornalístico na minha maneira de fazer as coisas que será surpreendente e entusiasmante para o público norte-americano’, justifica. Ambicioso, o recém-chegado vai além. ‘Quero que este seja o programa de entrevistas de maior credibilidade e mais popular ao redor do mundo. Quero ser motivo de manchetes e aumentar a audiência. Quero levar a CNN de volta ao primeiro lugar. Tudo que já fiz em televisão foi primeiro lugar.’
King apresentará programas especiais
Mesmo com esta convicção, o páreo será duro para Piers Morgan. Ocupando o horário das 21h na CNN a partir de janeiro, baterá de frente com adversários de peso nas emissoras noticiosas concorrentes. A Fox News, líder no segmento, tem no horário o programa de debates Hannity, que herda uma grande audiência do polêmico O´Reilly Factor, exibido às 20h. O canal teve no primeiro semestre deste ano um aumento de audiência de pelo menos 25% em comparação com o começo de 2009. Já no canal segundo colocado, MSNBC, toda a programação noturna é influenciada ascendentemente em termos de repercussão pelos contundentes programas de análise factual Hardball e Countdown. Nas duas emissoras melhor colocadas, a personalidade polêmica e hiper-subjetiva dos apresentadores constitui um pilar importante para justificar o bom desempenho de público. Mas nada que o sucessor de Larry King pretenda seguir. ‘O que acho divertido sobre estes programas é o nível de auto-indulgência dos apresentadores, o modo como só falam de si mesmos e de seus concorrentes ad nauseam. Não sei como isto pode agradar o telespectador’, argumenta Piers Morgan.
Para encarar a nova empreitada, Morgan precisou de uma liberação da rede NBC. Ele deverá prosseguir como jurado do programa America´s Got Talent, na medida em que as duas atividades não competem entre si e possuem públicos diferentes. O britânico também continuará como autor de duas colunas para o jornal Mail on Sunday, da Inglaterra. Quanto a Larry King, o veterano irá manter seu contrato com a CNN na condição de apresentador de programas especiais. Piers Morgan procura minimizar as comparações inevitáveis das quais será alvo. ‘Ele (Larry) é uma lenda. Não vou tentar substituí-lo. Pretendo apenas fazer o meu trabalho. E acho que esta é a razão pela qual conquistei este espaço, pelo menos do meu ponto de vista’, explicou ao The Hollywood Reporter.
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Jornalista