Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Onde a liberdade, igualdade e fraternidade?

O sentimento de desconforto que toma conta do cotidiano francês emergiu mais fortemente há cerca de dois meses, quando começaram os protestos dos jovens e dos sindicatos contra a implementação do Contrato do Primeiro Emprego (CPE). O maior motivo da discórdia entre os opositores do projeto de lei (que deverá entrar em vigor em abril) e o governo francês é o fato de que jovens com menos de 26 anos podem ser demitidos sem justa causa durante o período de experiência (dois anos) do CPE – medida adotada para diminuir o desemprego juvenil na França, segundo o governo.

O assunto domina a agenda pública, ainda que um turista que passeie pela Avenida Champs Elysées não perceba que o terremoto político e a violência das demonstrações que tomaram conta da Praça da Sorbonne, no bairro estudantil da capital francesa, e da Praça dos Inválidos, próxima ao museu que guarda o túmulo de Napoleão Bonaparte, na última quinta-feira (23/3).

Nas filas de supermercados, esta observadora reparou num caixa que encorajava duas jovens que compravam maquiagens para pintar a cara contra o governo, no dia seguinte. E, mesmo quando se pede para instalar um telefone em casa ou se conversa com o proprietário do apartamento onde se mora, a propensão ao debate, característica tão típica francesa, se impõe com argumentos a favor ou contra a medida, cujo autor e ‘bode expiatório’ é o primeiro-ministro francês, Dominique de Villepin.

Mas é na imprensa e na televisão que, mais uma vez, o assunto causa furores e é responsável pelas maiores manchetes. Afinal, trata-se do movimento antigoverno mais importante desde a revolta das banlieues, em novembro do ano passado. E, numa linha de raciocínio cujo início remonta à rejeição, pelos franceses, da Constituição Européia (maio de 2005), a postura adotada na mídia local e internacional é de um alarmismo inconteste. E este já suscita debates sobre a sucessão de um Jacques Chirac derrotado, em 2007.

De olhos bem abertos?

Há bastante tempo o abismo entre a realidade social e a atitude das elites políticas é motivo de descontentamento entre os franceses. Na imprensa internacional, o fato também não passou despercebido. Não faltam dedos apontando a ‘má digestão’ da globalização no país dos direitos do homem.

Em 26/2, o diário espanhol La Vanguardia publicou duas páginas sobre uma França que ‘mergulha na depressão’, com um ‘olho’ que dizia: ‘A crise econômica, política e social submete os franceses ao temor e ao desânimo’. A análise, contundente, ainda dá conta de que…

‘…passados as épocas das vacas gordas e dos dias de glória, os franceses começaram a descobrir sua fragilidade frente aos desafios do novo mundo global. O medo do futuro e a desconfiança em relação a uma classe política incapaz de transmitir esperança mergulharam o país num profundo pessimismo.’

Por ocasião da rejeição francesa à Constituição Européia, em maio de 2005, a revista The Economist já se manifestava sobre o mencionado ‘abismo’:

‘Os franceses tinham muitos motivos para rejeitar a Constituição, mas há uma razão muito simples para o ‘não’: os tempos estão difíceis, os empregos raros, nada muda, promessas continuam não sendo cumpridas, estamos ‘de saco cheio’ e vocês – a classe política – se recusam a escutar’.

Este é o sentimento expressado por Bruno Julliard, presidente da UNEF (União Nacional dos Estudantes Franceses), num debate organizado pelo canal de televisão France 2. Na quarta-feira (15/3), o programa À vous de juger reuniu diversos convidados contra e favor do CPE. Na ocasião, Julliard, de 25 anos, disse ao ministro da Educação, Gilles de Robien:

‘Cuidado, senhor ministro. A situação atual pode se agravar ainda mais se diversas outras classes ficarem preocupadas com o abismo entre a realidade social e a visão que os políticos têm dessa realidade’.

Baderna em foco

Apesar do início pacífico, e dos protestos organizados de estudantes e de diferentes sindicatos, a baderna não pôde ser evitada. Os protestos estudantis, até agora, suscitam polêmica porque não são unânimes. As greves impostas nas universidades dividem estudantes preocupados com a obtenção do diploma, apesar da refutação do CPE.

Com ajuda da atenção da mídia, a violência no fim dos protestos dos estudantes se revela explosivamente aos olhos dos franceses e do mundo. Na última semana, foi o medo de uma nova insurgência nas periferias de Paris e de diferentes cidades do país que tomou conta das manchetes dos principais jornais franceses e internacionais. Confusão à vista: muitas vezes, os jornais e revistas, no meio do fogo cruzado, não conseguem deixar claro que, também entre os jovens de classe média, há pessoas a favor do novo contrato.

O International Herald Tribune, sediado na capital francesa, alertou sobre a violência que tomou conta de Paris na quinta-feira (23/3):

‘Os vândalos são uma mistura improvável dos jovens indignados das periferias de Paris, anarquistas de extrema esquerda, extremistas de direita e hooligans. (…) Ironicamente, o primeiro-ministro Dominique de Villepin elaborou a lei controversa [o CPE] em resposta ao caos que ocorreu em novembro. Os conflitos ocorreram principalmente em bairros desfavorecidos de imigrantes, nos quais o desemprego juvenil chega a 40%; a lei facilita a contratação e a demissão de funcionários com menos de 26 anos pelas empresas’.

A edição do fim de semana do vespertino Le Monde, nas bancas desde sexta-feira (24/3), refere-se a um grupo de jovens que participaram dos protestos pelo ‘prazer da violência’. Manchetes parecidas foram publicadas nas edições do Le Figaro (‘Manifestação: pesquisa sobre o desencadeamento da violência’) e do popular Le Parisien (‘Agora, é grave’).

Risco dos estereótipos

O risco desse tipo de cobertura fica por conta do estereótipo negativo, principalmente no que se refere aos jovens da periferia, traduzido no retrato desses jovens relacionado a novos e mais violentos protestos. Afinal, nem todos os estudantes ou jovens são contra o CPE. Ou, mesmo contra o projeto de lei, há jovens contra o movimento que paralisa as universidades.

Segundo o Courrier International, periódico que reúne artigos da imprensa mundial sob um determinado tema, a imprensa internacional também está com dificuldade de entender o motivo da dimensão exacerbada que os protestos do CPE tomaram na França.

‘Se alguns – principalmente na Alemanha, em Portugal ou na Grécia – abraçam a causa dos estudantes, muitos veículos vêem nos acontecimentos apenas uma manifestação de medo e conservadorismo.’

A profusão de manchetes bombásticas, que ajudam a vender jornais, mostra bem a temperatura ora vigente. No entanto, na confusão sobre os partidários e opositores ao CPE, a imprensa francesa e internacional já aponta, com razão, para as eleições presidenciais de 2007. Afinal, a crise atual, tanto como o ‘não’ à Constituição européia e os carros incendiados nas periferias, podem levar a decisões extremas como a que a França aprendeu a temer com o apoio massivo ao direitista Jean-Marie Le Pen, em 1995.

Ao que tudo – e a mídia – indica, o momento atual pode ser a grande chance de um Chirac ‘queimado’ sair de cima do muro. Ou de cair de vez.

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Jornalista, pós-graduada em Ciências da Informação e da Comunicação pela Sorbonne (Universidade Paris IV)