‘Vamos jogar essa mulher na cela das locas y tortilleras (loucas e sapatonas)… Para que aprenda de novo a escrever… Assim estabelecemos um precedente e outros jornalistas não vão mais se sentir como um Deus todo-poderoso. E ela enlouqueça até nos implorar paz…’
Estes são fragmentos divulgados pela imprensa mexicana, semana passada, retirados de 12 escutas e gravações telefônicas, cujas transcrições foram publicadas na íntegra, num furo arrasador, pelo combativo tablóide de esquerda La Jornada.
Protagonistas dos inacreditáveis e aterradores diálogos: o governador do estado de Puebla, Mario Marín e o empresário têxtil local Kamel Nacif, também conhecido como el rey de la mezclilla (o rei da calça jeans), além de outras figuras públicas do poder poblano, incluindo um jornalista freguês das benesses ‘jabasísticas’ de fontes sempre generosas. Deste se ouvem frases como: ‘E daí? Ninguém lê jornal mesmo…’
O governador e o muy amigo empresário falavam e se divertiam às custas da jornalista, escritora e ativista de movimentos sociais e feministas Lydia Cacho, 42 anos, seqüestrada (nunca houve intimação, jamais apareceu o mandado de prisão), presa e solta 30 horas depois, sob fiança, pela Justiça de Puebla, em circunstâncias truculentas, acusada de difamação e calúnia por Nacif, personagem principal do livro escrito por ela (Los demónios del Edén, Grijalbo-Mondadori, México, 2005) e no qual denuncia o envolvimento do homem de negócios numa rede de prostituição infantil no balneário de Cancún. Nesta atividade escabrosa, Nacif estaria ligado a Jean Thomas Succar Kuri, o ‘Johnny’, também mexicano-libanês, dedicado à pornografia infantil e lavagem de dinheiro, atualmente preso no estado americano do Arizona, à espera de extradição.
O incidente com a jornalista, para quem eles teriam organizado um estupro coletivo na ala mais feroz – e voraz – da penitenciária feminina local, inicialmente colocado no contexto da rotineira violência contra a imprensa no México não teria passado de uma primeira fase, quando Lydia Cacho, depois de solta ilesa – não se sabe como escapou da barbárie planejada –, armou o barulho que se esperava de sua personalidade forte e corajosa: pediu imediatas providências das autoridades federais, na fatalista certeza, veterana conhecedora do terreno que é, de que não aconteceria absolutamente nada.
Mas a revelação, via escuta telefônica, do plano bolado para tirar Lydia de cena de uma vez por todas trouxe à superfície (se destapó la cloaca, em fino mexicanês) uma série de inquietantes indagações e feias constatações que começam no conhecido e sórdido concubinato entre o poder político e o econômico, passam pela ilegalidade da espionagem eletrônica e terminam – e aqui o episódio esquenta –, no vale-tudo da acirrada disputa eleitoral presidencial de 2 de julho. Chegar lá, como bem sabemos no Brasil, não depende só do voto legítimo nas urnas. No caso mexicano, indícios de uma forte carga político-eleitoral e suas mutretas permeiam boa fatia do episódio.
Raposa velha
De fato, o governador Mario Marín, que garante não renunciar ao posto, mas concorda em ter sua participação no escândalo analisada pela Suprema Corte de Justiça, pertence às fileiras do ainda poderoso Partido Revolucionário Institucional (PRI), cujo candidato presidencial Roberto Madrazo, já meio cambaleante pelo deslanche do candidato de esquerda Andrés Manuel López Obrador, do Partido de la Revolución Democratica (PRD), sai chamuscado de toda essa enrascada, ficando, no mínimo, com a batata quente dentro de um partido já cheio de fissuras internas.
Gente da oposição obviamente quer torpedear o PRI em sua desesperada tentativa de recuperar o poder perdido, depois de 71 anos, para o velho inimigo na direita, o Partido de Acción Nacional (PAN), quando elegeu a Vicente Fox, há cinco anos. Madrazo, contudo, raposa velha que é, já se desligou publicamente de Marín e diz que o assunto deve ser mesmo estudado pela Suprema Corte.
‘Yo no fui’
Em meio à impunidade gerada pela cumplicidade do Poder Judiciário, debilitado pela irresistível corrupção do narcotráfico (milhões de frescas verdinhas numa maletinha negra resolvem, com um único movimento, a soltura ou absolvição de um delinqüente da pesada), as ameaças e execuções de jornalistas mais atrevidos pelos cappi da droga, a disposição de certos setores do governo e não poucos políticos para comprar e calar consciências profissionais e arrumar a vida de jornais à beira da falência, em meio a tudo isso predomina um cinismo cômico e a mais incrível cara-de-pau dos principais participantes de toda essa sujeira.
O governador Marín, que a principio reconheceu sua própria voz nas gravações, agora nega e se diz vítima de uma ‘vil infâmia, produto dos truques da moderna eletrônica’, além de uma flagrante violação de seus direitos humanos! Pressionado pela opinião pública de seu estado para pedir o boné, ele jura aos poblanos que o elegeram que essa história toda não passa de maquinações eleitorais, intrigas da oposição.
O porta-voz do homem, na defesa do sagrado leitinho das crianças, diz aos repórteres mais questionadores que ‘se trata de uma montagem, pois o governador costuma usar um vocabulário educado, cortês, sem palavrões’. Vários trechos das gravações de fato são versados no pouco familiar, saboroso e picante linguajar popular mexicano. Até aí, nada contra. Mas a conversa também é pontuada por uma repugnante misoginia e vulgar desrespeito à pessoa de Lydia Cacho e ao ofício jornalístico.
Tráfico de influência
Mas o chocante não é só a linguagem do governador e as coisas que diz e ouve do empresário Nacif. Por meio desse trato íntimo e coloquial se percebe sua estreita ligação pessoal com o industrial abonado, grande financiador de suas campanhas políticas, o que naturalmente confere a este uma imprópria e perigosa influência na política estadual, ao ponto de interferir nos negócios da Justiça local.
Nacif, ofendidíssimo com o conteúdo do livro de Lydia, pediu ao governador cuatacho (amigão) que acionasse a Justiça estadual forjando uma prisão rápida e rasteira, sem maiores complicações burocráticas. Tarefa para a qual o governador contou com a diligente colaboração de procuradores, advogados, juízes e até coleguinhas da jornalista Lydia. Em suma, um pérfido esquema para vingar-se da repórter, ‘uma fofoqueira barata’.
Pior ainda: a forma viscosa como Nacif trata a Marín, chamando-o de ‘meu governador precioso, meu herói’, garantindo-lhe para logo o envio de duas garrafas ‘daquele conhaque finérrimo’, revela uma proximidade inquietante e inaceitável entre o mundo empresarial e o político de alto escalão.
Encostado contra a parede, o governador agora também se exime de qualquer ligação com o empresário, imaginem, como ele iria se meter com um degenerado como esse tal de Nacif… Este, retraído e mal-articulado, ‘de maneiras delicadas’, como insinuam alguns maledicentes, prefere não aparecer e quando o faz se esquiva de falar, como aconteceu na inauguração recente de uma de suas fábricas, ocasião em que o próprio presidente Fox, convidado de honra do ágape, o tratou com uma atenção pouco compatível com a investidura presidencial.
Aliás, há rumores de que Nacif tenha sido também um dos grandes patrocinadores da fundação ‘Vamos México’, criada e dirigida pela controvertida primeira-dama mexicana Marta Sahagún, ela própria às voltas com escândalos de corrupção de um de seus filhos do primeiro casamento, Manuel Bribiesca, acusado de tráfico de influência e negócios obscuros, aproveitando que mamita chula (mãezinha querida) manda e desmanda no pedaço.
Estatura moral
Como era natural em um país como o México, onde hoje a liberdade de expressão é ampla e irrestrita, gerando por isso mesmo, ironicamente, mais perseguições e hostilidades aos jornalistas, a repercussão dos desdobramentos do caso tem sido grande, tanto na imprensa como nos meios políticos e intelectuais, além da igreja católica, desolada com os casos de pedofilia. Durante toda a semana passada, os grandes chargistas da imprensa mexicana deitaram e rolaram, ilustrando o caso com caricaturas fortíssimas.
Ela própria, Lydia, que ainda enfrenta o processo iniciado por Nacif e que pode acabar em quatro anos de prisão, afirma que ‘a perseguição política de que tenho sido vítima bem poderia converter-se no motor de alguma coisa mais importante, mais transcendente, deixando para trás essa absurda mordaça ou ameaça ao exercício jornalístico e ao direito da sociedade de ser informada sobre as más práticas e os vícios da vida pública’.
A escritora e pesquisadora da Universidad Nacional Autónoma de México (UNAM) Sara Sefchovich, por exemplo, ao abordar um dos aspectos críticos do caso – a espionagem eletrônica – diz o seguinte em sua coluna semanal no jornal El Universal:
‘O México não merece a ignomínia de tantos maus-caracteres, mas por outro lado se orgulha da estatura moral de pessoas como Lydia Cacho. A espionagem é coisa ruim e não podemos nem devemos aceitá-la. Pois embora neste caso ajudou a mocinha do filme, em outros casos pode acontecer o contrário. E por cada ilegalidade que aceitemos, mais abrimos as portas aos sem-vergonhas.’
Outro influente colunista do mesmo jornal, Jorge Zepeda Patterson, escreveu no domingo (19/2):
‘O que mais preocupa em tudo isso é constatar como bastariam uns cem sujeitos como Kamel [Nacif] para nos condenar a corrupção endêmica. São reis Midas do avesso, que convertem em podridão tudo o que tocam. Dois ou três destes personagens por entidade federativa seria suficiente para que se perpetuem o opróbrio e a impunidade. Os políticos precisam de dinheiro para suas campanhas e negócios paralelos para se enriquecer. Em todos lados existem os Kamel com dinheiro de sobra e sem convicções que os atrapalhem, para se converterem em donos de governadores tipo Mario Marín que pululam no território’.
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Jornalista e escritor brasileiro radicado na Cidade do México