Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Paulo Machado

‘Dia 18 de abril: repórteres e cinegrafistas de alguns veículos de comunicação privados estavam presentes no local dos acontecimentos antes mesmo que eles acontecessem. Bola de Cristal?

Dia 19 de abril: a Agência Brasil publicou a matéria Conflito armado entre sem terra e seguranças de fazenda deixa pelo menos sete feridos, dando conta de ‘Um conflito armado entre trabalhadores sem terra e seguranças da Fazenda Espírito Santo’, aparentemente, cumprindo com sua obrigação de registrar o acontecido. Nada além disso, ou seja, sem ouvir o proprietário da terra que mantém uma milícia armada, sem nomear as vítimas, sem ouvir seus parentes, sem contextualizar os fatos dentro do processo histórico da reforma agrária e sem discutir a responsabilidade do Estado brasileiro na ocupação da Amazônia por grandes grupos econômicos e financeiros e na execução da política pública da reforma agrária.

Dia 20 de abril: a pauta da Empresa Brasil de Comunicação, 48 horas depois de que os fatos ocorreram, trazia a notícia sem muito destaque, informando que dois dias antes tinha havido um confronto entre seguranças da Fazenda Espírito Santo, ligada ao grupo Opportunity, pertencente ao banqueiro Daniel Dantas, localizada em Eldorado dos Carajás no Pará, e camponeses sem terra ligados ao MST. Informava ainda que possivelmente os sem terra estivessem bloqueando a estrada de acesso à fazenda.

É na pauta que tem início todo o processo de produção da notícia. Na pauta diária da EBC os assuntos são priorizados em ordem decrescente, ou seja, o assunto pautado em primeiro lugar é tido como o mais importante, o item dois é o segundo em importância e assim sucessivamente. Essa é uma decisão editorial tomada em uma reunião da qual participam todos os chefes de veículos e os responsáveis pelo jornalismo da empresa. Na pauta definem-se também quais são as possíveis abordagens de um assunto, quem deve ser ouvido, qual o contexto histórico, onde encontrar informações, dados, estudos e estatísticas e a forma que as matérias devem ser apresentadas de acordo com as especificidades da linguagem do veículo a que se destinam (texto, áudio, imagem etc.).

A partir da pauta, toda uma equipe de profissionais se mobiliza para pesquisar e apurar os fatos, recuperar o processo histórico, localizar as fontes, marcar entrevistas e realizá-las, redigir as matérias, editá-las, checar tudo e finalmente publicá-las. Isso é feito com base no referencial fornecido pela pauta que norteia todo o trabalho, garantindo-se dessa maneira a linha editorial determinada lá no início do processo, na reunião de pauta. A qualidade e a profundidade das discussões que se travam ali serão decisivas para a qualidade e profundidade da informação que chegará ao cidadão.

No caso em questão, a orientação editorial dos responsáveis pelo jornalismo era para que a reportagem acompanhasse e monitorasse a situação no Pará.

Enquanto isso, os leitores Osvaldo da Costa e Herbert Brüggemann enviaram para esta Ouvidoria uma mensagem manifestando sua indignação com o que classificaram de ‘um ataque à consciência dos telespectadores’, referindo-se à cobertura dada pelo programa Fantástico da Rede Globo ao episódio.

Herbert diz: ‘Eu vi a matéria dessa famigerada emissora, e também fiquei perplexo com a cobertura. É por isso que minha esposa fala que eu não deveria ver esses jornais, porque me irritam. Mas é necessário que vejamos, para justamente podermos divulgar essas barbaridades. Esses jornais desinformam mesmo. Lembrei de algo que vi em uma revista. Em uma pesquisa, o entrevistador perguntou ao cidadão qual o jornal de TV que ele mais gostava. E o sujeito respondeu: Nenhum, sou desinformado autodidata.’

Já Osvaldo vai mais fundo. Sob o título: ‘Rede Globo e Daniel Dantas: um caso de polícia’ ele afirma: ‘Não se trata de cobertura dos fatos, se trata de um ataque à consciência dos telespectadores. Na noite de 19 de abril o programa de variedades Fantástico, da Rede Globo, apresentou uma suposta reportagem sobre um conflito ocorrido numa fazenda do Pará, envolvendo ‘seguranças’ (o termo procura revestir de legalidade a ação de jagunços) da fazenda do banqueiro Daniel Dantas e militantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).Só pude descobrir que se tratava de propriedade do banqueiro processado por inúmeros crimes e protegido por Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, após ter vasculhado algumas páginas na internet em busca de meu direito de escutar o outro lado da notícia, a versão dos fatos dos sem terra, pois na reportagem eles aparecem como invasores, baderneiros, seqüestradores da equipe de reportagem da Rede Globo, assassinos em potencial, e ao final, corpos de militantes aparecem baleados no chão, agonizantes, sangrando, sem nenhum socorro, e a reportagem não fornece nenhuma informação sobre o estado de saúde das vítimas.

Sem ter acesso às causas do conflito, e a nenhum dos dois lados envolvidos, o telespectador se vê impelido a acompanhar o julgamento que o narrador da reportagem e a câmera nos sugere. No caso, tendemos a concordar com a punição dada aos desordeiros: ‘que sangrem até morrer!’, ou ‘quem mandou brincar com fogo?!’ podem ser algumas das bárbaras conclusões inevitáveis a que os telespectadores serão levados à chegar. … Seguem questionamentos à reportagem, com o intuito de expor o arbítrio de classe da Rede Globo, para que esse texto possa endossar a documentação que denuncia a irregularidade das emissoras privadas e protesta contra a manutenção de concessões públicas para empresas que não cumprem com as leis do setor:

1º) Por que a Globo protege Dantas? Por que a emissora não tornou evidente que as terras pleiteadas pelo MST para Reforma Agrária são de Daniel Dantas? Qual o grau de envolvimento da emissora nas manobras ilícitas do banqueiro?

2°) Por que o MST não foi escutado na reportagem? Quais os motivos do movimento para decidir ocupar aquela fazenda?

3°) As imagens contradizem os fatos. A câmera da equipe de reportagem aparece sempre posicionada atrás dos seguranças da fazenda, e nunca à frente dos sem-terra.

E vejam informação da Agência Estado: ‘ A polícia de Redenção informou a Puty [Cláudio Puty, chefe da Casa Civil do governo do Pará] não ter havido cárcere privado de jornalistas e funcionários da Agropecuária Santa Bárbara, pertencente ao grupo do banqueiro Daniel Dantas e que tem 13 fazendas invadidas e ocupadas pelo MST. Os jornalistas, porém, negam a versão da polícia e garantem que ficaram no meio do tiroteio entre o MST e seguranças da fazenda’ ( http://br.noticias.yahoo.com/s/19042009/25/manchetes-pm-desarmar-mst-segurancas-no.html ). Quer dizer, nem mesmo os grandes jornais conservadores estão fazendo coro com a cobertura extremamente parcial da Rede Globo.

4°) Ocorreu um tiroteio mesmo? Só aparecem os jagunços da fazenda atirando, e com armas de calibre pesado. E a imagem dos feridos mostra os sem terra baleados e um jagunço de pé, com pano na cabeça, possivelmente contendo sangramento de ferimento não causado por arma de fogo, dado o estado de saúde do homem.

5º) Por que os feridos não são tratados com o mesmo direito à humanidade que as vítimas de classe média da violência urbana? Eles não têm nomes? O que aconteceu com eles? Algum morreu? Quem prestou socorro? Em que hospital estão? Por que essas informações básicas foram omitidas?

6°) Por que mostrar como um troféu a agonia de seres humanos sangrando no chão, sem nenhum socorro?’.

A princípio perguntamo-nos por que os telespectadores recorreram à Ouvidoria da empresa pública de comunicação para manifestar sua indignação? Mas na própria mensagem dos leitores estava a resposta: ‘Nós, em nossas casas, consumidores do que a televisão aberta nos apresenta, não temos direito ao juízo crítico, porque o protocolo básico das regras do jornalismo não é mais cumprido. Nós somos atacados em nosso direito de receber informações e emitir julgamentos, nós somos saqueados por emissoras privadas que mobilizam nosso sentimento de medo, ódio e desprezo, para em seguida nos exigir sorrisos com a próxima reportagem. Como um exercício de manutenção da capacidade de reflexão, precisamos nominar esse tipo de ataque fascista com os termos que ele exige. A ilusão de verdade deve ser desmontada, a suposta neutralidade deve ser desmascarada, caso a caso, na medida de nossas forças.’

Consideramos essas palavras muito mais que um desabafo. São uma grave denúncia contra a maneira como se faz jornalismo em empresas concessionárias de bens públicos, outorgadas pelos poderes constituídos que deveriam, por lei, apurar e fiscalizar denúncias como essa. Hoje os leitores já encontram nesta Ouvidoria pública um canal para desaguar suas críticas e manifestar sua opinião contra um modelo de comunicação que começa a mudar, mas que ainda tem um longo caminho a percorrer para que se cumpra o que está escrito em nossa Constituição. Assim, talvez um dia chegue a que, em vez de ter de optar por ser um desinformado autodidata, o público possa optar por ser um cidadão bem informado pela mídia.

Respondemos aos leitores que entendemos sua indignação, mas que não cabe a esta Ouvidoria tratar da cobertura de outros veículos que não os da EBC. As pautas dos dias 21 e 22 ignoraram o assunto. Será que a estrada vicinal que dá acesso à fazenda foi desbloqueada? A resposta a essa pergunta da pauta não foi respondida, pois a EBC não enviou repórteres ao local apesar de chegarem ao público inúmeras versões contraditórias do conflito por meio de outros veículos de comunicação.

Ontem, dia 23, o assunto voltou à pauta da EBC, com menor prioridade e recomendando acompanhar e monitorar o Ministério da Justiça, a CNA (Confederação Nacional da Agricultura) e a PGR (Procuradoria Geral da República). Ou seja, a partir de Brasília, sob o ponto de vista do governo federal, que enviará trinta homens à região, e dos ruralistas da CNA que pedem intervenção federal no estado do Pará para que se cumpra 111 mandados de reintegração de posse a favor dos fazendeiros, provavelmente, provocando mais conflitos.

Dentre as diversas versões circulando na mídia algumas dão conta de que no meio, entre os sem terra e a milícia armada estão ‘jornalistas’ levados ao local em avião da fazenda Espírito Santo, pela assessoria de imprensa do banqueiro Daniel Dantas, sob encomenda, para registrarem o confronto.

Mas na pauta da EBC não há indicação para que se esclareçam os fatos e suas versões, para que se apure o estado de saúde das vítimas baleadas, para que se faça um balanço sobre a reforma agrária e a situação fundiária na Amazônia. A pauta também não manifestou nenhuma intenção de enviar repórteres para o local. Se depender da agência pública de notícias parece que o Pará continuará sendo tão distante quanto Gaza ou o Afeganistão onde se cobrem os conflitos de maneira virtual, a partir da visão de outros veículos que têm algum tipo de interesse na questão.

Até a próxima semana.’