‘Os leitores do O Povo são bastante sensíveis a fotos que julgam ofensivas do ponto de vista moral ou quando mostram algum aspecto chocante da realidade. A publicação de tais imagens é sempre controversa, também na Redação, e elas somente são impressas depois de um bom debate entre os editores sobre a relevância de divulgá-las.
Foi o que aconteceu com a fotografia publicada na capa da edição de quinta-feira: dois soldados armados de metralhadoras caminham por uma viela – na ocupação que o Exército promove em favelas da cidade do Rio de Janeiro – atrás, dois jovens fazem gestos obscenos. Um deles sorri – braços estendidos, os dedos médios esticados e os demais recolhidos –, o outro, sério, segura a genitália, com a mão sobre a bermuda, de modo agressivo. Dois gestos por demais conhecidos, dispensando explicações. Aparentemente, a zombaria injuriosa dirige-se aos militares.
‘Imoral’, ‘obscena’, ‘infeliz’, ‘melancólica’, ‘sensacionalista’, ‘pornográfica’, ‘indecente’ foram os adjetivos de vários leitores à foto que ocupou um quarto da Primeira Página. (Recebi seis críticas à fotografia, somente um leitor a elogiou.) Também falou comigo a jornalista e professora Adísia Sá, ombudsman emérita do O POVO e a primeira pessoa a ocupar o cargo no jornal. (Ela só telefona em ocasiões que considera de gravidade maior.) ‘Fiquei indignada com essa foto, é um desrespeito ao leitor, à história do jornal, me senti envergonhada, agredida como cidadã e jornalista’, disse a professora.
A foto
A fotografia – cujo autor é Vanderlei Almeida, da agência de notícias France Presse –, também foi publicada, com destaque, na primeira página do jornal Folha de S. Paulo. Sobre o assunto, o ombudsman do jornal paulista, Marcelo Beraba, fez uma curta observação em sua crítica interna: ‘Mesmo que o objetivo da Folha tenha sido o de mostrar o escárnio com que as tropas do Exército estão sendo recebidas nas favelas cariocas, a foto escolhida para ilustrar a primeira página não precisava ser tão grosseira’. Beraba, que mora e trabalha no Rio, reconhece, porém, ser ‘real a hostilidade demonstrada por parte da comunidade (moradores das favelas) em relação ao Exército’. E que a juventude, devido à falta de perspectiva e por viver sob a ‘rotina do tráfico’, é mesmo ‘desabusada’.
O diretor de Redação do O Povo, Carlos Ely Souto, defende a publicação. ‘É um caso clássico de fotojornalismo’, diz. ‘A fotografia mostra o repúdio de um segmento de moradores à presença do Exército nos morros’. Para ele, ‘trata-se da mais pura informação jornalística; é um equívoco achar que o objetivo foi agredir os leitores’. O editor interino de Fotografia, André Goldman, acrescenta: ‘A foto se justifica, às vezes, a imagem fala mais do que um texto’.
Apertando o disparador
Falei com o repórter-fotográfico Vanderlei Almeida e perguntei em qual contexto ele fizera a fotografia. Ele responde que os soldados estavam na favela de Manguinhos fazendo buscas na tentativa de encontrar as armas roubadas na semana passada de um quartel do Exército. Almeida diz que ao entrarem nos becos, os militares pediam aos jornalistas que aguardassem, por serem locais mais perigosos. ‘Em um desses momentos, fiquei na entrada da viela, quando os soldados saíram, os rapazes vieram atrás, fazendo os gestos’. Pergunto se foi uma atitude estudada, com os jovens posando para a fotografia. ‘Não, o gesto foi dirigido aos militares, espontâneo e tudo muito rápido, coisa de segundos, eu meti o dedo no disparador (da câmera) e os caras (os rapazes) correram’.
Pedi esclarecimentos, pois olhando a foto eu não conseguia concluir se os jovens estavam zombando dos soldados, da própria imprensa ou faziam os gestos apenas para chamar atenção do fotógrafo – como é comum em muitas coberturas jornalísticas, principalmente quando aparecem câmeras e holofotes.
Leituras
Dito isso, tenho de fazer uma confissão: a fotografia não me chocou, como a muitos leitores. O meu primeiro impulso foi verificar como o assunto seria abordado na notícia. Isto é, como seria justificada a necessidade de publicar a foto mostrando o desrespeito ao Exército, uma das possíveis leituras da fotografia. Nada foi escrito sobre o tema, nem na chamada de capa e nem nos textos das páginas internas. Levando-se em conta as informações adicionais aqui anotadas, chega-se à conclusão que há conflito entre os soldados e moradores. Portanto, a foto se proporia a revelar, de maneira crua, o que um segmento deles pensa da ocupação militar. Essa correlação seria importante, pois a fotografia dá margem a várias leituras, inclusive a de agressão gratuita aos leitores. (Nas edições seguintes foi divulgada a crescente tensão entre moradores e tropas do Exército.)
Mas, mesmo de forma contextualizada, a fotografia deveria ser publicada na Primeira Página? Não, se dependesse do entendimento dos leitores, cujos costumes têm de ser levados em conta. Mas é importante salientar que para dilemas desse tipo não existe resposta unívoca; cada situação tem de ser avaliada de acordo com as suas circunstâncias. Muitas vezes o que pode chocar um grupo de leitores tem de ser publicado devido à sua relevância pública e social – e o jornal tem de estar disposto a enfrentar tais polêmicas.’