Num melancólico e frustrante fim de festa – só mais 18 meses de mandato pela frente –, o presidente mexicano Vicente Fox poucas vezes se viu tão pressionado e desprestigiado como agora, acuado em meio a uma saraivada de críticas, gozações e desqualificações, na verdade nem sempre justas ou equilibradas, dentro e fora do país. Mal abre a boca e lá vem pau, obrigando-o, nos últimos tempos, antes de falar, a pedir de brincadeira licença aos jornalistas para continuar se manifestando no seu estilo coloquial de sempre, salpicado de ditos e expressões acaipiradas, além de alguns penosos lapsus linguae (‘Borgues’, em lugar de Borges, por exemplo, ao referir-se ao escritor argentino), escorregões que dão arrepios aos zeladores de plantão do bem-falar.
Fox é censurado pela oposição por favorecer seu partido, o PAN, na já acirrada campanha presidencial de 2006, aparecendo em manifestações populares a favor dos aspirantes a candidato. Não lhe perdoam tampouco os comentaristas influentes da imprensa – com o ácido reforço dos colegas chargistas – sua excessiva tolerância, para não dizer falta de autoridade, com as pisadas na bola de ministros e secretários, que andam as turras publicamente. A situação é agravada pelo porta-voz presidencial, Rubén Aguilar, que, em sua delicada função de explicar o que quis dizer ou o que fez ontem o presidente – ‘corrijo os meios de comunicação, não ao presidente’ –, acaba enrolando ainda mais a situação. Além disso, há a discreta mas manjadíssima força política de sua mulher no governo, Marta Sahagún, influindo em decisões de Estado, ingerência indevida criticada até mesmo por outras figuras femininas de realce no país, também tem causado incômodas saias-justas a Fox.
O vacilante manejo do problema da guerrilha chefiada pelo subcomandante Marcos, no estado sulino de Chiapas, com exagerados cuidados para não melindrar sobretudo certos setores da opinião pública internacional que apóiam o movimento, só faz crescer a figura do guerrilheiro, que agora finalmente depõe as armas e parte para a legitimação política do seu projeto, viajando pelo país e lutando, na retórica de palanques, para ‘construir com outras forças um programa político de esquerda para o México..’
Quanto às críticas vindas de fora, Fox dribla como pode as investidas recentes da comunidade negra americana, com aberto apoio da Casa Branca, todos indignados com o que consideram atitudes ofensivas do governo mexicano, por eles tachado de racista, por conta de uma velha e popular história em quadrinhos sobre um crioulinho beiçudo, Memín Pinguín, revivido numa nova emissão de selos, primeira de uma singela e genuína homenagem oficial aos grandes caricaturistas mexicanos dos últimos 50 anos.
E o Speedy González?
Mas a turma dos politicamente corretos, mexicanos aí incluídos, vê na imagem do alegre e bondoso neguinho, sempre disposto a ajudar os pobres e combater discriminação de qualquer tipo, a perpetuação dos estereótipos sobre a raça negra. Exigem que Fox suspenda a emissão dos selos e peça desculpas aos negros americanos – como fez há pouco, constrangido, diante do reverendo Jesse Jackson, depois de dizer que os imigrantes mexicanos topavam qualquer tarefa para sobreviver nos Estados Unidos, grande parte delas recusadas até pelos negros nativos.
A resposta popular mexicana ao escândalo de Minguín Pinguín é que os selos, 750 mil exemplares nessa primeira emissão, se esgotaram em dois dias, disputados no tapa, em longas filas, por colecionadores e cambistas. ‘E por que los gringos não param de mostrar nos filmes de Hollywood a imagem de mexicanos de chapelão, sonolentos, preguiçosos, violentos, quando não a figurinha fanfarrona do Speedy González?’ – perguntam irritados os cidadãos nas ruas da Cidade do México, entrevistados pela televisão.
Os americanos também cobram, e duro, os ainda insatisfatórios resultados do governo mexicano na tentativa de pelo menos diminuir, numa aparatosa operação policial-militar chamada ‘México Seguro’, o clima de terror e morte implantado na região, fronteira com os Estados Unidos, pelos capi do narcotráfico na luta feroz para preservar e expandir o mercado da droga, gerando um nível assustador de insegurança para o turismo e os negócios dos dois lados.
Transparência a caminho
Nesse clima político agitado, candente até, mas de enorme, surpreendente e indiscutível liberdade de expressão em todos os níveis, no qual a imprensa deita e rola como nunca pôde fazer durante os 70 anos de sinistro e absoluto domínio do Partido Revolucionário Institucional (PRI), as boas iniciativas do presidente mexicano acabam escondidas num balanço de saída medíocre, com pouca difusão na imprensa, perdem espaço para assuntos triviais do show business local ou de maior relevância política internacional, principalmente considerando a fronteira de 3 mil quilômetros com o que os mexicanos, fatalistas, chamam el imperio.
Por essa razão, passam agora quase em branco os dois primeiros anos de uma iniciativa da maior importância do governo de Fox, por ele pessoalmente estimulada: a criação do IFAI – Instituto Federal de Acesso a Informação Pública, cujos conceitos básicos, por coincidência, conformam um sistema a ser implantado pelo governo do presidente Lula, num momento crítico de sua gestão, hoje envolvida em graves escândalos de corrupção.
O IFAI, esclareça-se, não foi uma idéia exclusiva de Fox, pois seus primeiros contornos surgiram em 1994, graças aos esforços conjuntos do governo anterior, de Ernesto Zedillo, e entidades da sociedade civil, mas ganhou grande impulso no governo atual, dentro de uma plataforma de total e irrestrita liberdade de opinião e manifestação – esta sim uma das obsessões pessoais de Fox, trunfo maior com que ele defende os logros de sua gestão, para enterrar de vez os nocivos resíduos de tantos anos de opressão e repressão, sobretudo na área da informação ao público pagante.
Antes, o cidadão comum, com freqüência vítima da prepotência e ineficiência da máquina oficial, não tinha a quem reclamar ou protestar. E em casos de necessidade mais premente, tudo se resolvia com uma generosa ‘molhada de mão’ para o funcionário público…
A criação do IFAI parte de um direito fundamental do cidadão dentro de um regime democrático moderno: o espaço governamental deve ser efetivamente público, de todos, sem privilégios nem favorecimentos particulares, no exercício do governo. Trata-se também, segundo o próprio Instituto, ‘de uma exigência civilizatória: de uma sociedade e um Estado que sabem respeitar estritamente os dados pessoais’.
Cultura da ilegalidade
Assim, a Lei Federal de Transparência e Acesso a Informação Pública Governamental, criada em 12 de junho de 2003, obriga o governo a abrir seus arquivos. Agora, todo cidadão pode solicitar as instituições federais quaisquer documentos que contenham informação pública, obtendo-a de forma rápida e simples. Dentro desse esquema, o governo está obrigado a entregar a informação sobre sua forma de trabalho e, principalmente, o uso dos recursos públicos e seus resultados. Informações do tipo quanto ganha um ministro, como este ou aquele ministério utiliza suas verbas, quais são os resultados práticos dessa aplicação do dinheiro.
No exercício desse direito elementar, o cidadão pode, munido de dados confiáveis, melhor avaliar seus governos, fazendo com que a transparência reduza a impunidade e a corrupção – esta a praga que o respeitado analista político Federico Reyes Heroles define como uma das grandes tragédias mexicanas,’a cultura da ilegalidade’.
Em casos excepcionais, contudo, o governo mantém a informação em nível reservado ou confidencial – quando se trata, por exemplo, de segurança nacional ou da vida de alguma pessoa. Mesmo assim, esse conceito de ‘confidencial’ se refere a dados pessoais cuja divulgação lesionaria o direito à privacidade do cidadão.
Nesses primeiros dois anos, o IFAI recebeu um total de 80 mil consultas, tentando vencer, com dificuldades e resistências, uma acendrada desconfiança e forte temor por parte dos cidadãos, acostumados a reagir de forma indiferente ou cética diante do poder de um funcionário público menor mas nem por isso menos metido a besta, dono do pedaço, senhor da vida dos contribuintes.
As consultas se fazem via internet diretamente ao IFAI, que por sua vez as encaminha, conforme o caso, a uma das 220 dependências do governo federal. Num prazo de 20 dias úteis, o cidadão tem resposta da primeira parte de sua solicitação, ou seja, a notificação positiva de que a informação requerida é pública. Até dez dias depois, a dependência consultada deve fornecer as respostas solicitadas.
Funciona também um recurso de revisão, quando uma dependência governamental se recusa a abrir seus arquivos. O cidadão recorre então outra vez ao IFAI, para que este emita, num prazo de 50 dias úteis, uma resolução final sobre o caso. Em todo esse processo, o cidadão não gasta mais de 10 pesos – algo como o equivalente a 1 dólar.
Paciência oriental
O dado irônico de tudo isso, prós e contras de Vicente Fox como presidente à parte, é que, de forma involuntária, ele sai de cena pessoalmente afetado por uma de suas grandes preocupações: a liberdade de expressão total e irrestrita. Dentro desse conceito, tem suportado, com uma paciência admirável, todos os ataques dirigidos a ele e a sua mulher, não abrindo mão da postura de, como magistrado maior, trabalhar para garantir a manifestação aberta de idéias e opiniões.
Agüentou até mesmo que uma jornalista argentina, Olga Wornat, escrevesse dois livros contra os supostos mandos e desmandos de sua mulher Marta, e ainda viesse ao México para apresentar as referidas obras em concorridas noites de autógrafos e farta promoção em rádio e televisão. Nos tempos negros do autoritarismo do PRI, Olga Wornat nem desceria do avião no aeroporto Benito Juárez, da Cidade do México.
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Jornalista e escritor brasileiro radicado na Cidade do México