DOUTOR ADAMASTOR
(depois de ler uma crônica inédita de Sergius Gonzaga)
O vereador cantor
‘‘Das Leben is kurz, das Leben is schön’ (A vida é curta, a vida é bela),
gritava ele em alemão, ‘also, loss!’ (então vamos lá). E começava a cantoria,
entremeada de causos do Sul.
Chamava-se Adamastor. Não fossem os olhos cheios de verve, miudinhos,
apertados a cada risada, espalharem o bom humor ao redor, temperado pelo
vermelhão das faces e por uma risada que sacudia a pança enorme, ele talvez
espantasse os ouvintes com sua natural superioridade sobre os que o rodeavam, a
começar pelo tamanho, quase dois metros, e o número do sapato, 47!
Um dia chegou à cidadezinha um jornalista que logo se tornou o intelectual
local. Tinha vindo atrás de um rabo-de-saia, por quem se apaixonara.
Fatalmente acabou no ‘Bar Dois Pinguins’, onde todos bebiam e conversavam,
tentando espairecer a tristeza difusa de morar num lugar onde a vida de repente
se tornara tão insossa.
O intelectual local começou a pontificar sobre a Campanha da Legalidade. O
alemão, quieto, ouvia tudo com atenção, medindo o tipo dos pés à cabeça, cheio
de compaixão por quem chegara ali por amor. Doutor Adamastor admirava o amor,
que procurara em muitas namoradas, mas uma de cada vez, como gostava de
enfatizar.
O recém-chegado dizia o seguinte: ‘Nem bem o governador Leonel Brizola
discursou, abrindo a Campanha da Legalidade, em 27 de agosto de 1961, dois dias
depois da renúncia do presidente Jânio Quadros, em todos os municípios do Rio
Grande do Sul o povo foi às ruas, reunindo-se em comícios espontâneos na praça
central de cada localidade e…’.
Foi interrompido pelo Doutor Adamastor: ‘É verdade, assisti a um desses
comícios em Taquara, quando visitava meu amigo Rufus Sergius Maximus, que
adotara o nome latino depois de pagar uma pesquisa genealógica que espetou todos
os seus ancestrais, notórios ladrões de cavalo, em gente nobre da Roma antiga.
Um vereador dos mais aguerridos, durante o comício de apoio à Legalidade e pela
posse de João Goulart, nessa ocasião cantou com sua voz de barítono o Hino
Nacional, o Hino da Revolução Farroupilha e o Hino do Município de Taquara.
Animado com o aplauso popular, disse que sabia muitas outras canções e entoou na
sequência Boneca Cobiçada, Mi Buenos Aires Querido e Esta noche me emborracho.
Como o último tango de Gardel foi acompanhado de fortes tragos de cachaça,
continuou com umas milongas missioneiras, que dispensavam ritmo, afinação e
rimas. Foi noite inesquecível. Infelizmente os jornais não registraram aquele
grande momento da vida nacional’.
Desenxabido, o intelectual local pagou a conta, enfiou o chapéu na cabeça,
amarrou o cinto da capa gabardina – chuviscava naquela noite igualmente
memorável – e foi aninhar-se junto a seu desesperado amor, de quem se separaria
depois de dois filhos e seis anos de complicada convivência conjugal.
Ela foi viver com um dentista, que se apaixonou pela mulher tão logo reclinou
a cadeira para tratar de uma cárie. Os motivos foram os mesmos que tinham levado
o intelectual local à perdição: as suas lindas pernas.
Ele enamorou-se de uma gaúcha esquerdista que queria mudar o mundo com Marx
numa das mãos e Wilhelm Reich na outra, lutando por justiça social e orgasmo,
respectivamente, que, assegurava, não eram incompatíveis.
Doutor Adamastor ainda mora na cidadezinha, cada vez mais irônico e
divertido, para alegria de todos os que sabem saborear sua prosa, repleta de
imperdíveis recordações, muitas delas inventadas, é claro.’
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