Pelas velhas regras do jornalismo, as mensagens eletrônicas particulares enviadas por George W. Bush à sua família talvez nunca fossem publicadas – com certeza, jamais sem sua permissão. A maioria das organizações de mídia teria pensado duas vezes antes de publicar mensagens pessoais que eram, essencialmente, tesouros roubados.
Mas isso era antigamente. As comunicações particulares e fotos do ex-presidente americano enviadas a membros da família foram bem longe na internet, na semana passada (8/2), quando foram divulgadas pelo site Smoking Gun, que se especializou em desenterrar assuntos criminais e legais. O Smoking Gun divulgou a correspondência pessoal da família Bush obtida por um hacker que se identificou apenas como “Guccifer”. Seguiu-se uma gigantesca, previsível e quase instantânea onda de disseminação das informações privadas.
Poderia seguir-se uma pergunta igualmente previsível: ainda existem padrões a serem respeitados? Das revelações feitas pelo site TMZ sobre celebridades mal comportadas às provas de estudantes de ensino médio pipocando em algum fórum local, qualquer assunto que seja excitante, tabu ou pessoal pode parecer razoável para alguém.
O direito à privacidade
A matéria do Smoking Gun é, ostensivamente, uma reportagem sobre a quebra de segurança eletrônica envolvendo a família Bush. O site informa que o material invadido pelo hacker incluía listas confidenciais de endereços residenciais, números de telefones celulares e e-mails enviados a “dúzias” de membros da família Bush, incluindo ambos os ex-presidentes. O site, no entanto, não revelou detalhes sobre as listas.
Mas o Smoking Gun – fundado em 1997 e de propriedade da Time Warner – foi além de uma mera descrição da profundidade com que o hacker penetrara nos assuntos pessoais da família. Foram publicadas fotos íntimas dos Bush, como uma imagem de George H.W. Bush sentado em uma cama de hospital. A matéria também fez citações de e-mails que revelavam as profundas preocupações da família com a saúde de Bush pai, incluindo uma de Bush filho organizando um tributo a ele, e divulgou imagens de pinturas feitas por Bush filho enviadas à irmã, Dorothy, que incluíam um homem no chuveiro e outro numa banheira.
“Avaliamos profundamente antes de decidirmos usar parte do material”, disse William Bastone, editor e cofundador do site. “A natureza do empreendimento do hacker era tão abrangente e extraordinária – uma vez que dois ex-presidentes tiveram seus e-mails ilegalmente acessados – que decidimos que era válida como notícia. Decidimos usar uma pequena porção do material que fosse ilustrativo da natureza das várias incursões e de sua seriedade.”
Especialistas em ética, no entanto, optaram por uma abordagem diferente: mesmo as pessoas famosas “devem gozar de algum direito à privacidade”, declarou Richard Wald, professor da Faculdade de Jornalismo da Universidade de Columbia e ex-presidente da NBC News. “Se o produto do hacker tivesse revelado um grande malefício, você diria ‘ainda bem que publicaram’. Mas em se tratando de uma coisa apenas trivial, fere a noção de civilidade.”
Ações criminais contra hackers
O Washington Post noticiou a matéria, mas dispensou a prática habitual de criar um link para o artigo original e não republicou as fotos. De acordo com o editor-executivo do diário, Martin Baron, embora o material seja válido como notícia, “não vejo motivo para divulgar as fotos. Isso é coisa particular da família Bush. Não há qualquer tipo de implicação pública”. Baron estabeleceu uma diferença entre publicar documentos importantes coletados sem autorização – tais como os Papéis do Pentágono e os telegramas diplomáticos vazados pelo WikiLeaks – e material particular coletado de uma fonte privada. O primeiro revela o comportamento de ações do governo, disse ele, enquanto o último não o faz.
O New York Times pareceu ignorar a matéria por completo por boa parte da sexta-feira. A única menção foi feita num blog de arte no final do dia, abordando os talentos de George W. Bush como pintor.
A ética é uma questão complicada em uma época em que virtualmente qualquer indivíduo pode publicar ou transmitir qualquer informação, diz Stephen Ward, diretor do Centro pela Ética no Jornalismo, da Universidade de Wisconsin, em Madison. “Eu já disse que a ética da mídia já não é somente para a mídia”, afirma. “É para todos.”
Em dezembro, um indivíduo anônimo conseguiu obter e divulgar o gabarito das provas finais de milhares de estudantes de ensino médio no condado de Fairfax. O documento, de 2.100 páginas, apareceu no fórum online Fairfax Underground, que também publicou os nomes de estudantes acusados de produzirem vídeos deles próprios fazendo sexo com várias garotas. O site retirou o documento com o resultado das provas depois que autoridades do colégio de Fairfax obtiveram um mandado.
O Smoking Gun é um site de notícias muito mais consolidado e respeitado do que o Fairfax Underground. Embora muito conhecido por publicar fotos bobas de celebridades detidas, também faz um trabalho investigativo considerável. Usa fontes do governo e legais, tais como documentos oficiais de tribunais e pedidos à Lei da Liberdade de Informação, para obter material exclusivo sobre trâmites criminais e cíveis. Além da matéria sobre a família Bush, na semana passada o site divulgou documentos judiciais de ações criminais tomadas contra hackers acusados de se intrometer nas contas de correio eletrônico de pessoas como Mila Kunis, Miley Cyrus, Scarlett Johansson e Sarah Palin.