O Estado de S.Paulo, 27/04 Fernanda Bassette Quadro da MTV satiriza autistas; Ministério Público vai investigar Um jovem corre de um lado ao outro, uma moça grita compulsivamente em frente ao espelho e outro aparece jogado inerte no canto da sala. Eles são atores tentando representar pessoas com autismo. O quadro Casa dos Autistas foi veiculado no programa Comédia da MTV e provocou polêmica e reações. Ontem, o Ministério Público Federal de São Paulo instaurou um procedimento para investigar o quadro que durou cerca de três minutos e fazia uma alusão ao Casa dos Artistas. O programa foi ao ar no dia 22 de março. ‘Foi uma manifestação de mau gosto e de completa ignorância sobre o assunto. Retratou o autista como um completo idiota, um imbecil. Um total desserviço’, diz o psiquiatra Estevão Vadasz, coordenador do Programa de Autismo do Instituto de Psiquiatria da USP. Segundo Vadasz, estima-se que o autismo atinja 1 em cada 110 crianças. ‘Fiquei chocado com o que vi porque, aparentemente, essas pessoas possuem algum nível de instrução.’ Mãe de uma moça com autismo e vice-presidente da associação Autismo e Realidade, Paula Balducci de Oliveira soube do programa pela repercussão na internet. Diz que a filha assistiu ao vídeo, não se manifestou verbalmente, mas ficou com os olhos cheios de lágrimas. ‘O programa vai contra tudo aquilo que lutamos diariamente: para acabar com o rótulo e com o preconceito. Como mãe senti revolta e tristeza. Como associação, faço um convite para que o programa conheça a causa e informe os jovens corretamente.’ Carolina Dutra Ramos, coordenadora pedagógica da Associação de Amigos do Autista, diz que as mães estão revoltadas. ‘Fizeram uma chacota com um problema tão sério, que traz sofrimento às famílias. Foi uma total falta de respeito’, diz. Zico Goes, diretor de programação da emissora, reconheceu o erro e pediu desculpas às famílias. De acordo com ele, ontem mesmo entraria no ar um pedido de desculpas por escrito, antes de o Comédia começar. Além disso, para minimizar a repercussão negativa, a emissora fará hoje uma reunião com a associação de familiares para ouvir as reclamações e traçar uma maneira de reverter o problema. ‘Erramos e vamos tentar compensar de alguma maneira. Extrapolamos o limite do humor, que ficou sem graça, ficou grosseiro. A nossa ideia é fazer campanhas de esclarecimento ao longo da programação’, afirmou. Repercussão negativa ZICO GOES – DIRETOR DE PROGRAMAÇÃO DA MTV: ‘Percebemos que pisamos na bola, mas o estrago já está feito. Tiramos o quadro da reprise.’ Folha de S.Paulo, 1/5 Roberto Kaz Para comediantes, não há tabu no humor No começo da semana passada, um quadro do ‘Comédia MTV’, apresentado por Marcelo Adnet, causou celeuma entre parentes de pessoas com autismo. Na cena, de três minutos, cinco humoristas se faziam passar por participantes de uma suposta atração televisiva, a ‘Casa dos Autistas’ (um trocadilho com o reality show ‘Casa dos Artistas’). Após ameaça de investigação do Ministério Público Federal, a MTV se retratou publicamente. Para Ana Ruiz, do Movimento Pró-Autista, o evento serviu para ‘mostrar a união do grupo’. A partir desse fato, a Folha procurou atores, apresentadores e roteiristas que trabalham com humor para pensar se há, na área, um território sagrado, onde jamais se pode pisar. Marcelo Madureira, do ‘Casseta & Planeta’, vê uma histeria social: ‘Quando criamos o jornal ‘Casseta Popular’, nos anos 1970, fizemos uma lista de piadas sobre negros. Hoje não posso caçoar de aeromoça, garçom, enfermeira, porque há uma indústria do processo’. Madureira diz já ter feito piada com autistas. ‘E isso que uma amiga minha tinha um filho autista. O problema do ‘Comédia MTV’ não foi a piada, mas a duração. Esticaram demais. Perdeu a graça. E o limite do que pode ou não ser dito é a graça.’ TV PIRATA Quando integrava o ‘TV Pirata’, nos anos 1980, o ator Ney Latorraca protagonizou uma cena icônica, em que se irritava com seu filho, vivido por Diogo Vilela, pela decisão dele de ‘se assumir negro’. Um detalhe: ambos, no esquete, eram de fato negros. ‘Era um tipo de humor que só poderia existir naquela época’, lembrou Latorraca. ‘O país havia ficado tanto tempo diminuído pela ditadura que, quando a liberdade explodiu, podia tudo. Havia um trauma da censura.’ Ele lamenta o fim da permissividade. ‘Hoje, acho pouco provável que houvesse espaço para uma Dercy Gonçalves (1907-2008) no país. Se você fala mal de uma árvore, todas as árvores se reúnem para reclamar. As pessoas estão mais atentas.’ ‘Não é o assunto que é o limite. É como você o aborda’, disse Hugo Possolo, criador do grupo teatral Parlapatões. ‘O humorista pode fazer piada com autista, negro ou homossexual, dependendo da posição que tome.’ A posição, segundo ele, tem de ser contra o preconceito. ‘Temos, no nosso grupo, um anão, o Hélio Pottes, que fez um filme mostrando as dificuldades dele no metrô. Não havia humilhação. Era diferente do ‘Pedala Robinho’ [quadro do ‘Pânico na TV’ em que um anão era estapeado pelos apresentadores, sob gritos de ‘Pedala, Robinho!’]’. Miguel Falabella, criador dos programas ‘Sai de Baixo’ e ‘Toma Lá Dá Cá’, da Globo, acredita que é impossível haver humor sem mágoa. ‘A base do humor é o politicamente incorreto. Ao pé da letra, qualquer piada de gay ou de gordo pode ofender.’ Ele diz, citando seu personagem em ‘Sai de Baixo’, que o segredo está na forma como a piada é conduzida: ‘O Caco Antibes vivia reclamando de pobre, só que de uma forma farsesca, que cabia no personagem. O tom influencia o fim da piada.’ Gregório Duvivier, integrante do conjunto humorístico Z.É. (Zenas Emprovisadas), concorda: ‘Acho ótima a piada de uma casa de autistas onde nada acontece. O problema foi a interpretação realista. Se o tom fosse jocoso, as pessoas entenderiam’. Ele considera isso um problema: ‘O humor no Brasil é fraco. Tudo tem que ter um tom caricato, cinco oitavas acima do normal.’ Roberto Kaz Folha de S.Paulo, 1/5 ‘O humorista é um agente de saúde’, diz Tas O humorista Marcelo Tas, apresentador do programa ‘CQC’, da Band, diz que a comédia vive de apontar a fragilidade humana. ‘É assim, de Chaplin a Tiririca’, ensina. Ele diz que não faria a piada com autistas, mas reclama do patrulhamento: ‘O humorista é um agente de saúde, no sentido de nos lembrar que somos precários, imperfeitos. Mas as pessoas querem viver em um mundo sem imperfeição’. Folha – Tudo pode ser tratado com humor? Marcelo Tas – Tudo. No ‘CQC’, costumamos dizer que o Marco Luque é especial. Quando isso acontece, ele fala: ‘Eu sou especial’, como se tivesse um retardo mental. Recebemos e-mails de pais reclamando de preconceito, mas não é a única possibilidade de resposta. Qual é a outra? A outra é a da Sylvia Pires, uma fã que costuma comparecer à gravação do programa. Ela quase cai da cadeira de rodas, de tanto rir, quando o Luque faz essa piada. Algumas pessoas se sentem incluídas ao serem tratadas assim. Homossexualidade também pode render piadas? Pode. O Rafael Cortez sempre brinca com isso. E semanas atrás, dei um depoimento sobre o orgulho que tenho da minha filha homossexual. Sabe o que aconteceu? Recebi e-mails de movimentos gays me acusando de promoção às custas dela. Para mim, não há diferença entre um nazista e um homossexual que me ataca dessa forma. Ambos acham que a verdade sobre o assunto pertence apenas a eles. A que você atribui o crescimento dessa fiscalização? Às pessoas que querem se blindar da imperfeição, como quem lida com a injustiça social blindando o próprio carro. Isso é viver dentro de uma camisinha que te protege da realidade. E o problema é que, quando a realidade se impõe, as pessoas não sabem lidar com ela. Folha de S.Paulo, 30/4 Hélio Schwartsman Choque entre contextos é da natureza de todas as pilhérias OK. Eles pegaram pesado. Fazer troça com autistas é quase tão ruim quanto passar rasteira em cego. Mas o simples fato de alguém ter achado que isso seria engraçado já revela um paradoxo: por que somos capazes de rir da desgraça alheia? Comecemos, no rastro do escritor Arthur Koestler (1905-1983), tentando estabelecer a ‘gramática’ do humor. De um modo geral, rimos quando percebemos um choque entre dois códigos de regras ou de contextos, todos consistentes, mas incompatíveis entre si. Um exemplo: ‘O masoquista é a pessoa que gosta de um banho frio pelas manhãs e, por isso, toma uma ducha quente’. Cometo agora a heresia de explicar a piada. Aqui, o fato de o sujeito da anedota ser um masoquista subverte a lógica normal: ele faz o contrário do que gosta, porque gosta de sofrer. É claro que a lógica normal não coexiste com seu reverso, daí a graça da pilhéria. Uma variante no mesmo padrão, mas com dupla inversão, é: ‘O sádico é a pessoa que é gentil com o masoquista’. Outro bom exemplo é o do médico que conforta seu paciente dizendo: ‘Você está com uma doença muito grave. De cada dez pessoas que a pegam, apenas uma sobrevive. E você está com sorte, acabo de perder nove pacientes com essa moléstia’. O gozado aí emerge da oposição entre a abstração estatística e o a concretude do caso real do paciente. Sabemos que a estatística só vale se não a tentarmos aplicar a casos concretos. Também sabemos que as chances de um dado evento ocorrer independem de eventos anteriores. A piada confunde todos esses planos. Essa estrutura de choque de contextos excludentes entre si está presente em todas as pilhérias. Até no mais infame trocadilho há um confronto inesperado entre o significado da palavra e o seu som: ‘A ordem dos tratores não altera o viaduto’. Podemos agora traçar uma escala do humor, dos mais primitivos aos mais sofisticados. Bebês, que também são capazes de rir, deliciam-se com caretas e imitações. Garotos pré-adolescentes deliciam-se com piadas escatológicas. Quanto mais cocô, xixi e xingamentos, melhor. Já adolescentes gostam de anedotas sexuais. À medida que crescem, vão -espera-se- buscando formas mais sofisticadas e cerebrais. Essa ‘gramática’ dá conta da estrutura intelectual das piadas, mas há outros aspectos em jogo. O humor também encerra dinâmicas emocionais. Ele de alguma forma se relaciona com a surpresa. Kant, na ‘Crítica do Juízo’, diz que o riso é o resultado da ‘súbita transformação de uma expectativa tensa em nada’. Rimos porque nos sentimos aliviados. É nesse contexto que se torna plausível rir de desgraças alheias. Em alemão, até existe uma palavra para isso: ‘Schadenfreude’, que é o sentimento de alegria ou prazer provocado pelo sofrimento de terceiros. Não necessariamente estamos felizes pelo infortúnio do outro, mas sentimo-nos aliviados com o fato de não termos sido nós a vítima. Mais ou menos na mesma linha vai o filósofo francês Henri Bergson (1859-1941). Em ‘O Riso’, ele observa que muitas piadas exigem ‘uma anestesia momentânea do coração’. A crueldade é explícita nos chistes mais primitivos (como a ‘Casa dos Autistas’), mas sobrevive mesmo nos gracejos mais elaborados, na forma de malícia (caso das piadas em que se comparam diversas nacionalidades), autodepreciação (típica do humor judaico) ou, mais simplesmente, na suspensão da solidariedade para com a vítima (sim, piadas geralmente têm vítimas). Há, por fim, a dinâmica social. Bergson vê o riso como um ‘gesto social’. Para o filósofo, o temor de tornar-se objeto de riso reprime as excentricidades do indivíduo. É uma espécie de superego social portátil. É claro que o esquema perde o sentido quando a vítima não tem condições de reagir à provocação humorística, como no caso dos autistas. Mas a ineficácia social não faz com que, no plano da gramática, a piada deixe de ser engraçada. Daí os inevitáveis choques entre humor e adequação social.