Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Regular, sim. Cercear, não

Está em voga dizer que o escândalo Murdoch deveria inspirar legisladores brasileiros a criar mais controles na esfera midiática. Esse pretendido controle seria, na cabeça de alguns, pretexto para tentar tolher a independência jornalística. Nesse sentido, a ideia é devidamente refutada por colaboradores neste Dossiê (Carlos Eduardo Lins da Silva, “Controle estatal não é solução”, e Eugênio Bucci, “Das reações positivas aos efeitos colaterais autoritários”). Mas convém propor alguns ajustes conceituais.

Antes de mais nada, uma declaração pessoal: como jornalista, o caso do News of the World não me causou o menor abalo. Por sorte ou formação, não tenho nada a ver com o comércio de fofocas e denuncismo histérico que era o campo do tabloide (e o é de seus congêneres, que, como constata Caio Túlio Costa em “Poder sem responsabilidade”, estão vendendo mais). O mais perto que cheguei disso foi ser colega de um diagramador que fazia bico no Jornal do Carnaval.

Jornal do Carnaval, anos 80

Esse tabloide carioca saía uma vez por ano, na quarta-feira de Cinzas, com fotos escabrosas tiradas em bailes como o do Teatro Municipal ou o do Havaí, no Iate Clube do Rio de Janeiro. Nus grosseiros, sexo evocado em gestos e legendas, quase sempre gente desconhecida que talvez achasse engraçado −ou chamativo, no caso de moças de vida difícil −se expor assim. Uma versão paroxística, em preto desbotado e areia do papel vagabundo, da Manchete coloridíssima que saía na mesma época e, um nadinha menos descarada, tinha entrada livre nos lares.

O Jornal do Carnaval (o título ainda existe, em diferentes mídias) vendia bastante. Dava lucro sem ter anúncios. Mas sua principal fonte de receita, ouvi dizer, era a chantagem: pessoas pagavam somas consideráveis para que fotos em situação comprometedora não fossem publicadas.

Chamava-se jornal, mas seu parentesco com o jornalismo era só o suporte papel, a venda em bancas e o formato editorial: títulos, fotos, legendas, textos (quase nada). Os donos não eram publishers, eram bandidos chefes de uma quadrilha que faturava com o assanhamento carnavalesco.

Suponho que tenha morrido. Seria difícil resistir à concorrência do “maior espetáculo da Terra” transmitido pelas TVs, em tempo real, com fartura anatômica que seria, um belo dia, tantos anos atrás, condensada na Mulata Globeleza.

Circo não é jornalismo

Posso me lembrar de uma infinidade de páginas jornalísticas que me deixaram envergonhado. Ou até de páginas cuja inexistência lança uma luz muito crítica sobre o trabalho das redações. Um exemplo: a pior catástrofe natural da história conhecida do Brasil, provocada por temporais na serra fluminense, foi esquecida muito rapidamente. Tanto ainda está por fazer em Nova Friburgo e Teresópolis, mas a presença da mídia dita nacional durou só o tempo das imagens e dos relatos sensacionais, no início do ano, durante e pouco depois da chuva.

Recapitulando: a capotagem de Murdoch não se deu no jornalismo (onde ele também derrapa, com as bênçãos de forças políticas de diferentes matizes), mas no circo midiático. Os britânicos não pensam assim: o primeiro-ministro, James Cameron, fala em “criar um órgão independente para regular os jornais”, entre outras providências. E nomeou, para investigar as escutas ilegais, uma comissão de que fazem parte uma apresentadora da BBC e dois jornalistas propriamente ditos.

O que as leis não resolvem

Agora, o jornalismo. A imprensa no Brasil é, em tese, regulada por seus públicos, pelo Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (ler “Direito e responsabilidade”, Dalmo Dallari), pela Constituição e pelo Código Penal (injúria, calúnia ou difamação). Nada mais é necessário desde que a polícia judiciária (polícias civis estaduais e Polícia Federal), o Ministério Público e a Justiça façam seu trabalho. Não o fazem competentemente? Novas leis e regulamentos não os farão agir melhor do que hoje. Nos dois sentidos: tanto para investigar e punir condutas ilegais como para evitar prepotência e chantagens judiciais.

Houve, há e haverá manipulações? Com certeza. Mas isso não é do domínio legal. Não há lei que consiga coibir distorção, falácia, incitação velada. O mesmo se aplica a preferências, idiossincrasias, preconceitos não capitulados como crimes, etc. Alguma lei poderia coibir a escolha, por um editor, de uma fotografia feita de ângulo desfavorável, ou que capta uma careta? Nem Castelo Branco, o primeiro general, conseguiu (felizmente, no caso) escapar disso (veja aqui). Mal comparando: alguma lei conseguiria evitar que uma criança seja infeliz devido à criação que recebe?

Essas coisas se resolvem, ou não, no domínio sociopolítico.

Trepar no caixão do News of the World para pedir arrocho contra a imprensa brasileira é um expediente inaceitável.

O que é preciso regular

A discussão, porém, não termina aí.

As mídias que operam concessões do poder público precisam de uma regulação mais efetiva. O alvo dessa regulação não pode ser a liberdade jornalística, intelectual, artística ou comercial da Rede Globo, da RBS e de grupos ou emissoras menos importantes.

Se o passado político dessas empresas fosse critério de validação de sua atividade presente, todos os jornais, revistas, emissoras de televisão e de rádio que foram instrumentos do golpe de 1964 e/ou apoiaram o regime militar, com maior ou menor entusiasmo, deveriam sofrer alguma punição ou pagar algum tributo. Não aconteceu e não faz sentido que aconteça.

O que precisa ser enfrentado pelos representantes da sociedade no executivo e no legislativo são, na presente conjuntura, três situações bem definidas:

** Propriedade cruzada de meios em determinado território, que cria um sistema de forças midiático excessivamente “espaçoso”, maior do que a soma de suas partes, tendendo ao monopólio. Um órgão do Ministério da Justiça, o Cade, acaba de impor à Brazil Foods a renúncia a marcas e operações que seriam prejudiciais, por falta de concorrência, ao bolso do consumidor. Alimento para a mente é menos importante do que para o corpo?

** Coronelismo eletrônico. Não há notícia de país sério em que os detentores de mandatos sejam eleitos e reeleitos pela influência de seus próprios meios de comunicação (ou vice-versa: em que os donos de meios de comunicação se tornem ipso facto donos de mandatos).

** Venda de horários para programas religiosos. A Rede TV! vende 46 horas por semana, a Record, 32 horas, e a Band, 31 horas. Segundo a Folha de S. Paulo (Ilustrada, 21/7), “No total, os brasileiros têm quase 140 horas semanas de ladainha religiosa. Nenhuma emissora revela quanto fatura com a prática, que é permitida pela legislação a partir de nebulosas interpretações jurídicas da já obscura legislação vigente no assunto”.

Em resumo: imprensa livre e liberdade de expressão são “cláusulas pétreas” da democracia. A necessária regulação da mídia deve ser feita para ampliar e aprofundar a democracia, jamais para retroceder.

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[Mauro Malin é jornalista]