Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Réquiem para um instrumento da mídia

Não conheço nada no mundo/ que tenha tanto poder quanto a palavra./ As vezes escrevo uma, e a olho,/ até quando não comece a resplendecer. [Emily Dickinson, poeta estadunidense 1830-1883]

A palavra perpetuou-se através da escrita, arte que modificou a humanidade. Os suportes para realizá-la também foram evoluindo: passaram da pedra para as lajotas de barro, desta para o papiro, depois para o pergaminho e finalmente para o papel, mas para chegar a esse último passaram-se milênios.

Os preceitos destinados à posteridade, geralmente longos e volumosos, eram reproduzidos por copistas – algumas obras levavam anos para serem copiadas. Com o advento da imprensa no século XV, esse problema deixou de existir: imprimiam-se livros às centenas, panfletos destinados ao grande público aos milhares, mas o meio de expressão para dirigir-se a uma pessoa ausente (carta, bilhete) continuava uno.

O exemplar mais antigo conhecido de um bilhete, que não trate contas comerciais ou inventariar de bens, data de 1759 a.C., quando a rainha Shibtu (filha do rei de Alepo) manda notícias escritas numa lajota de barro a seu marido que está fazendo guerra, dizendo:

“Ao meu senhor digo o seguinte: assim fala Shibtu, sua serva: que meu senhor bata seus inimigos e depois, são e salvo e na alegria de coração, meu dono torne a Mari! E por este correio, um traje e um manto que eu mesma fiz. Que meu senhor os coloque em seus ombros”.

Nobres e sórdidos

Para ter cópia das cartas, pessoais ou comerciais, era necessário que fossem reescritas como as originais. Tudo durou até 6 de outubro de 1806, quando, na Grã-Bretanha, o lingüista Ralph Wedwood patenteou um invento a que deu o nome de stylographic writer, nada mais que o nosso conhecidíssimo papel carbono.

No princípio era algo complicado: para duas cópias fazia-se um “sanduíche” com folhas de papel fino e entre estas uma pasta composta de negro-de-fumo, cera e óleo. Numa escrevia-se com um estilete (ponta seca), na outra a cópia aparecia de forma normal, mas aquela onde se calcava ficava com os caracteres ao contrário, portanto poderia tão-somente ser lida no espelho.

Em 1808, um nobre italianoconstruiu e deu de presente à sua amante, a condessa Carolina Fantoni, um “traste” que permitia de forma rudimentar a escritura mecânica. Este traste foi o ponto de partida para a máquina de escrever, que aperfeiçoada e divulgada (1870) deu ao papel carbono o seu triunfo mundial.

O canadense Herbert Marshall McLuhan (1911-1980), especialista em meios de comunicação, qualificou o papel carbono como um ponto alto da mass media: pôs em comunicação a humanidade, mesmo que para pequenos grupos (um máximo de 5 ou 6 cópias por vez).

Foi ainda instrumento da sutil hierarquia nos escritórios: quanto menos nítida é a cópia enviada, menor é a ordem de importância do destinatário. Um sistema indiferente à moral: trabalhou para a paz e para a guerra, para objetivos nobres e para os sórdidos. Mídia sem ideologia, mas com grandes méritos aos olhos dos historiadores. Arquivos inteiros, como o imenso de Winston Churchill, é composto de cópias em papel carbono. O que restou dos autógrafos dos romances de Mark Twain também são cópias carbono. A invenção, portanto, fez algo mais que escrever a história – duplicou-a.

Carta de amor

Agora o papel carbono está sendo vítima da implacável lei obsolescência tecnológica. O mundo ainda precisa de cópias em baixa tiragem, mas para isso recorre a fotocopiadoras e computadores. O papel carbono está chegando ao seu final. Na Itália consomem-se 3 milhões de unidades anuais, o que significa que um em cada vinte italianos consome uma folha por ano. A Romênia, com 18 milhões de habitantes, usa 10 milhões de folhas de carbono por ano; na Índia e na China a queda foi de 40%; do Brasil não tenho números, mas sei que são usadas por pequenas empresas na emissão de notas fiscais e pelos apontadores de jogo do bicho. A Kores, fundada em 1887, foi o maior fabricante de papel carbono e atualmente tem uma só fábrica, no México.

Quando tiver se juntado à pena de ganso e ao telégrafo no paraíso dos veículos de mídia falecidos, o papel carbono deixará uma marca indelével. A abreviatura “Cc” que se pode ver no cabeçalho do e-mail, onde escrevemos os endereços dos destinatários secundários, significa carbon copy, que era usado para indicar a quem seriam enviadas as cópias a carbono das cartas datilografadas, a homenagem da tecnologia a um antigo “colega”.

Todavia a verdadeira memória do papel carbono não ficará numa carta impessoal e burocrática. Assim como nas lajotas de escrita cuneiforme ficou o amoroso bilhete da rainha Shibtu, o papel carbono perpetuará algo que encerre lirismo.

Ralph Wedwood fez presente das primeiras folhas de sua invenção ao escritor Percy Bysshe Shelley, que as recebeu com entusiasmo. Por isso pode-se deduzir que o papel carbono não tenha tido seu começo com uma simples fatura comercial, mas certamente com uma poesia. Infelizmente do fato não restou documento, só ficou a história.

Na seção de manuscritos da Biblioteca Marciana de Veneza encontra-se uma carta do século XIX cujo destinatário(a) e remetente ficaram desconhecidos, mas que “diz” o seguinte:

“Te escrevo em papel carbono, porque de papel carbono gostaria que fossem meus lençóis e assim pudesse fazer a cópia dos sonhos que tenho contigo”.

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Jornalista