Quando ouço Querelas do Brasil, de Aldir Blanc e Maurício Tapajós, na impecável interpretação de Elis Regina, um verso fica repicando na cabeça: ‘O Brazil não conhece o Brasil…’ Elis teve de exagerar na pronúncia arrevesada pra diferenciar o Brazil com ‘z’, território supostamente brasileiro sob dominação cultural norte-americana, do Brasil com ‘s’, o Brasilzinho desse monte de luizes: Luiz Gonzaga, Luiz Carlos Prestes, Luiz Melodia, Luiz Inácio. Mas, se o Brazzzil não conhece o Brasil, o próprio Brasil, esse não sabe chongas do… Brasil. Exemplos não faltam.
O Jornal Nacional estreou no final dos anos 60 do século passado com Hilton Gomes e Cid Moreira falando de tempo bom e tempo ruim. Como o jornal era feito no Rio de Janeiro, onde fica uma certa Copacabana, a Princesinha do Mar, tempo bom era tempo de sol, sem nuvens nem chuva, bom pra pegar uma praia, jogar um vôlei ou erigir castelos de areia, essas coisas que se fazia nas praias antes que os bandidos nos obrigassem a passar o tempo fugindo dos arrastões. Ronan Soares, mineirinho admirável, um de seus primeiros e mais inteligentes editores, me contou que só depois que os nordestinos chiaram foi que o JN parou de falar em tempo bom e tempo ruim. Pela simples razão de que tempo bom para os nordestinos é o tempo de chuva, ‘chuva boa, criadeira’, no verso maravilhoso de Jobim. Tempo ruim é a seca que traz a fome e a morte. Por isso, no meu Piauí se diz apropriadamente: ‘Está bonito pra chover.’
Abaixo os preconceitos idiotas
Pois esta chorumela toda aí em cima é só pra abrir passagem à minha indignação diante da bobagem feita pelos coleguinhas de alguns jornais de uma tal de ‘grande imprensa’ (existe imprensa menor?). Eles classificaram de ‘mirabolante’ um projeto que dá o título de ‘capital da rapadura’ à cidade piauiense de Boa Hora, e ‘capital da melancia’ à também piauiense cidade de Jatobá. A estranheza dos coleguinhas tem cheiro de preconceito. Basta lembrar que nos anos 60 Flávio Cavalcanti quebrou discos de Luiz Gonzaga por não considerar a sanfona um instrumento musical… digno! Como se o bandoneón dos argentinos não fosse um tipo de sanfona. Bandoneón pode ser (e é) digno. A sanfona, não.
Mas era só o que faltava! Limeira (SP) pode ser a capital da laranja. Bento Gonçalves (RS), pode ser a capital do vinho e da uva. Monte Alto (SP) pode ser a capital do mamão e Codajás (AM) pode ser a capital do açaí. Ou seja: todo mundo pode ser a capital do que quiser. Mas duas cidades piauienses que produzem deliciosas rapaduras e sumarentas melancias não podem ser a capital da rapadura e a capital da melancia. Por quê? O que há contra a rapadura e a melancia? Seriam produtos menores? Menos ‘dignos’ do que a laranja, o vinho, a uva e o açaí? Olha, já que o presidente da gente – esse aí, da maior popularidade desde Getúlio – e o presidente dos outros (o tal de Chávez) podem falar palavrão, eu também posso. Lá vai: que tal se esses que ainda celebram o preconceito e não conhecem o Brasil fossem simplesmente à merda? Mirabolante é a mãe, ora.
Abaixo os preconceitos idiotas. Viva o Nordeste. Viva o Brasil. Salve Boa Hora e Jatobá, no querido Piauí, dignas capitais da doce rapadura e da deliciosa melancia! Ah, sim: falar de tempo ruim é tão preconceituoso quanto falar que negro tem cabelo ruim. E chega.
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Jornalista, escritor e professor de telejornalismo na UnB