Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Sexo, adolescência e mídia

O início da terceira temporada do show da Fox Glee, nos Estados Unidos, trouxe de volta uma incômoda polêmica que mais uma vez retoma a atenção da imprensa: a iniciação sexual precoce dos adolescentes e o quanto a mídia vem contribuindo para isso. O programa, criado em 2009, foi bastante premiado naquele país. E um sucesso mundial. É um musical centrado na vida de adolescentes socialmente rejeitados: perdedores (losers) e rejeitados, cantores e músicos lutando para enfrentar o preconceito de seus colegas melhor integrados socialmente entre seus pares.

O cenário de fundo é uma escola pública americana de educação secundária. O programa tem seus méritos. É uma obra coletiva, onde artistas iniciantes não ofuscam as histórias, como as personalidades de grandes atores famosos muitas vezes fazem. A série ainda conta com uma trilha sonora de primeira, baseada em sucessos musicais consagrados nos anos de 1980 e 1990. Com esta proposta, eles acabaram 2010 como o show-sensação da temporada.

Neste ano, a coisa mudou. O primeiro programa da temporada mostrou cenas de dois casais de adolescentes em sua iniciação sexual: um gay, o outro heterossexual. E muita gente não gostou. O Entertainment Weekly publicou (08/11) matéria em que o show aparece condenado por organizações de pais mais sérias e vigilantes da mídia hiperconservadores. O site teve a prudência de separar os dois tipos de organização. O discurso do PTC (Conselho de Pais para Televisão) condenou a iniciação precoce do adolescente na vida sexual, mas afirmou claramente que não se tratava de uma posição antigay. “O gênero das personagens na escola é irrelevante”, disse Tim Winter, presidente do PTC. “Sexo adolescente agora é mais prevalente na TV que sexo adulto e o Glee está aproveitando esta tendência.” Winter acredita que a televisão poderá influenciar a decisão de um adolescente em tornar-se sexualmente ativo. “A Fox sabe que o programa naturalmente atrai crianças; celebrar sexo adolescente constitui imensa irresponsabilidade”, declarou Winter.

Requentado exaustivamente

Na realidade, foi o reacionário Instituto de Mídia e Cultura (CMI) que apresentou a cena como um show dirigido a promover a homossexualidade entre adolescentes: “Estúdio de Glee pronto para mostrar sexo gay”, diz a notícia, também do dia 8 de outubro. O instituto é um antro de conservadorismo, frequentado por Rush Limbaugh, o homem que dizem que ressuscitou a rádio AM na América. Na realidade, Limbaugh é uma verdadeira besta-fera reacionária do radialismo americano. Sean Hannity, o conhecido jornalista ultraconservador da odiosa Fox News, também faz parte da turma.

A Folha de S.Paulo online também manteve o foco de sua cobertura na questão do homossexualismo. O periódico publicou uma “matéria” em que o título proclamava: “Organizações protestam contra sexo gay em Glee”, em seu caderno sobre TV. Uma titulagem apelativa, errada e enganosa para uma microrreportagem que, em suas poucas linhas, resumiu o artigo da revista americana em todos os detalhes principais. O problema com este tipo de titulagem enganador é que o leitor lê a informação correta no corpo da matéria, mas sai com a ideia errada sobre o assunto gravada na cabeça graças a um título apelativo. Mas a versão online do periódico ainda cometeu outro equívoco: não foram “organizações” que protestaram contra o sexo gay. Foi apenas uma organização. A Folha errou duas vezes. Sua pequena nota publicada na web não pode a rigor ser chamado de “matéria”, ou “artigo”. Menção seria mais apropriado, tão pequeno foi o comentário. A Folha, então, mencionou, em seu comentário ligeiro de 16 linhas, que a nova temporada da série começa dia 23 no Brasil.

Mas a grande questão por trás da estreia da nova temporada desta série de TV americana ficou bem destacada: a precocidade sexual dos adolescentes contemporâneos. Independente de gênero. E a relação que isto tem (ou não..) com a mídia. No caso apresentado aqui, a televisão. A questão é um lugar comum, mas só o é porque os seus argumentos têm sido propostos de forma errada, ou tendenciosa. E nunca houve uma explicação convincente e definitiva no debate para afirmarmos se esta ou aquela posição está certa ou errada. O tema vem sendo requentado exaustivamente na imprensa até os dias de hoje.

Força de coerção

Se há uma relação causal direta entre mídia e iniciação sexual precoce, esta ainda está para ser desvendada de forma mais cabal. Será que podemos atribuir à mídia toda a responsabilidade pela formação do comportamento sexual dos adolescentes de hoje? Ou isto só não basta e outros fatores provavelmente também contribuem para o fenômeno, que tanto perturba e desconcerta pais e mães hoje em dia? Qual o tamanho, exatamente, da coerção social que a mídia possui, para impor padrões de comportamento?

O psicanalista e psicólogo Paulo Roberto Ceccarelli é um dos que acredita no poder determinante da mídia no comportamento dos adolescentes. Em seu artigo “Ética, mídia e sexualidade“, ele afirma o seguinte:

“A mídia tem uma responsabilidade ética com aquilo que exibe e não pode ignorar a sua participação na construção social, na formação de mentalidades e no desenvolvimento psicossocial da criança e do adolescente. Atrelar o que ela veicula unicamente aos pontos da audiência baseada na ideologia de uma cultura globalizante é desrespeitar a particularidade do tempo de maturação da constituição de cada sujeito.”

Raciocínio bem construído, mas não totalmente verdadeiro. O fenômeno da iniciação antecipada na vida sexual não se dá de forma uniforme em gênero, localização geográfica, culturas e classes sociais. Tampouco maior exposição à mídia implica em antecipação da iniciação sexual entre adolescentes. O caso do Brasil é emblemático: a sexualidade exuberante faz parte da identidade brasileira. Somos um país conhecido por nossa sexualidade à flor da pele. É uma força de coerção social que parte da sociedade para a criança, mediado pela família. A mídia não criou o fenômeno.

Imagens embaraçosas

Uma pesquisa do IBGE de 2009, feita nas capitais brasileiras e Distrito Federal, mostrou que a iniciação sexual dos nossos adolescentes segue um padrão peculiar. Um duplo padrão, derivado da educação patriarcal herdada dos tempos coloniais: as meninas perdem a virgindade mais tarde que os rapazes. A realidade também varia no espaço geográfico nacional: os adolescentes iniciam suas vidas sexuais mais cedo nas capitais das regiões norte, principalmente, e nordeste, em segundo lugar: em Rio Branco, Manaus, Boa Vista, Belém, Macapá, Salvador e São Luís, mais de 50% dos adolescentes entre 13 e 15 anos já experimentaram sexo. A proporção diminui para menos de 50% em São Paulo, Belo Horizonte, Curitiba, Florianópolis, Porto Alegre, Brasília e Goiânia. Já as mulheres apresentam um percentual bem inferior: menos de 30% delas têm sua primeira experiência com sexo antes dos 16 anos, em todas as capitais pesquisadas. A precocidade sexual também é maior entre as adolescentes nas capitais das regiões norte e nordeste.

O resultado mostra que os adolescentes mais expostos a mídia, no sudeste e sul do Brasil, apresentam menor precocidade sexual que os de regiões com menos exposição aos meios de comunicação social, o que nega a relação causal direta entre iniciação sexual antecipada e a influência da mídia. No caso brasileiro, acredito que o psicanalistaContardo Calligaris tenha o melhor entendimento sobre o comportamento sexual de nossos adolescentes. Ele acredita que nosso país “transmite a visão exótica de um lugar onde o prazer sexual é valorizado, mas isso se tornou um elemento da identidade nacional”. Para ele, esta situação, vivida no cotidiano, é parte da experiência de vida do brasileiro. É uma forma pela qual assumimos a nós mesmos, ou nossa identidade.

Esta é uma verdade comprovada em fatos. Uma inconveniente, embaraçosa e cruel verdade, difícil de aceitar: somos uma sociedade que se define pelo sexo, pelo prazer sexual. E isto tem um impacto pedagógico colossal nas crianças e adolescentes. Um impacto destrutivo. Exemplos óbvios não faltam para provar a veracidade do pensamento do pensador italiano. Todas as nossas festas carnavalescas (principalmente aqueles das grandes capitais do Sudeste) estão cheias de imagens embaraçosas e lamentáveis de crianças (meninas, principalmente) exibindo simulações de movimentos sensuais com seus corpos.

Forças poderosas

Estas crianças estão a criar seus sensos de limites a partir, principalmente, das experiências de seus pais, parentes e da comunidade mais próxima. Não foi a mídia ou a imprensa que incentivaram estes comportamentos nas crianças e dos adolescentes brasileiros. A própria sociedade brasileira o fez. Ou será que já esquecemos a infame “dança da garrafa”, apresentada em quase todos os nossos canais televisivos? Quantas crianças inocentes não foram filmadas exibindo-se como se estivessem num clube erótico noturno, nesta dança abominável? A mãe que sensualiza a vestimenta das pequenas, que deixa que usem maquiagem e saltos altos, não estaria também, inconscientemente, contribuindo para a exposição indevida de suas filhas? Os predadores estão lá fora, acompanhados de sua ajudante, a imprudência dos pais. Que parecem ter dificuldades em reconhecer o perigo que o mundo contemporâneo representa para a criança e o adolescente.

Entre a irresponsabilidade de alguns canais midiáticos, a precocidade sexual dos adolescentes e a erotização da infância, algumas mediações precisam ser estabelecidas e algumas considerações precisam ser feitas. Os meios de comunicação, sem dúvida, influenciam o comportamento de crianças e adolescentes. Mas o poder desta influência é potencializado por outras instâncias e novos comportamentos aceitos e incentivados socialmente. A mídia não é mais poderosa que a sociedade e suas pressões sobre o indivíduo. Não é ela que socializa as crianças e adolescentes. Não se trata de absolver a mídia de suas ações e omissões em sua responsabilidade de evitar a erotização de infantes, mas de demonstrar que outras forças sociais mais poderosas têm papéis mais determinantes no problema da erotização precoce da adolescência e infância por todo o planeta.

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[Sergio da Motta e Albuquerque é mestre em Planejamento urbano, consultor e tradutor]